quinta-feira, 13 de julho de 2023

“Agora é só escrever”. Mentira

Por Isabel Clemente*
 — Foto: Kelly Sikkema na Unsplash

Foto: Kelly Sikkema na Unsplash

Escrever dá um trabalho danado. Exige tempo, paciência, resignação, concentração, ideias, criatividade, organização e coragem

Quantas vezes você ouviu isso? Depois de reunir as informações que precisava, depois de entrevistar clientes para uma ação na Justiça, de estudar a fundo um tema ou, pior, depois de concluir a pesquisa do mestrado ou do pHD, alguém disse para você “então, agora é só escrever”.

Vai soar absurdo, mas até eu já disse isso para mim mesma. Por muitos anos, como repórter, eu estava tão ocupada apurando e reunindo informações, procurando pessoas e documentos, entrevistando pessoas e documentos, que só me restava buscar conforto na ilusão de que, agora, só faltava escrever. Como se escrever fosse um detalhe. Escrever nunca é um detalhe.

Escrever dá um trabalho danado. Exige tempo, paciência, resignação, concentração, criatividade, organização. Requer tanta coisa que vou parar a lista para não te desanimar.

Se você procurar um pouco, vai encontrar escritores e escritoras confessando dificuldades muito parecidas, que vão do bloqueio criativo à procrastinação. A tentação de fazer qualquer coisa em vez de escrever ataca até essa gente que veio de fábrica com o dom de lidar bem com as palavras. Parte dessa gente é salva pelos prazos, outra parte não cumpre. Mas deixar a escrita para a última hora é como estudar para a prova na véspera. Altas chances de dar errado.

Talvez um bom começo para mudar esse enredo seja rejeitar a ideia de que “só falta escrever”. Falta sobretudo escrever. Falta principalmente escrever, ou seja, falta coisa à beça. Reserve um tempo para isso. Você precisa de calma para rever, se arrepender, mudar começo, meio e fim. Organizar pensamento e escolher as melhores palavras é uma arte e requer mais dedicação do que você gostaria. Não subestime essa etapa e dê a ela a importância merecida porque você está prestes a entregar para o mundo – ou para parte pequenina dele – muito de você, do seu trabalho, daquilo que exigiu suor e preparo.

E que tipo de texto você quer escrever?

Muita gente divide a leitura entre prazer e obrigação. De um lado, textos que você precisa ler para se informar, entender, aprender. De outro, textos da diversão, leves, que prometem emoções. Eu vivo a ilusão de que todo mundo que escreve deve se esforçar para oferecer também algum prazer para o público-leitor.

David Morley é (um premiado) professor do Programa de Escrita da Warwick University, no Reino Unido. Ele começou a vida profissional como cientista e enveredou pela escrita criativa, sendo autor de um livro referência sobre o assunto, "The Cambridge Introduction to Creative Writing". Morley lembra que a ciência, pela abundância de metáforas que produz, é um campo naturalmente inspirador para a produção de uma escrita de não-ficção capaz de gerar leitura e engajamento. Muitos dos estudantes de seus cursos de escrita vêm da matemática, da física e da computação, ele diz, “e recorrem a narrativas ficcionais para contar histórias baseadas na ciência.”

Ainda nos anos 80, surgiu no Reino Unido o movimento “Writing Across the Curriculum” (Redação em todo currículo) para fechar as lacunas de deficiência de escrita em estudantes universitários. Esse movimento inspira, até hoje, muitas iniciativas. Morley relata, no livro, como a instituição onde trabalha botou escritores para ensinar estudantes, da graduação e da pós-graduação, de departamentos como medicina, negócios, biologia, computação, engenharia e física, a usar a escrita de forma mais clara e envolvente. Mais do que ensinar regras da boa redação, as aulas estimularam a escrita de poemas e ficção para trabalhar a linguagem mais ampla e estratégias mais criativas. Apesar do ceticismo inicial, escreve Morley, os cientistas “rapidamente perceberam que seus alunos estavam com um melhor desempenho em escrita, comunicando seus achados de forma mais clara e se beneficiando do contato humano e de uma pegada mais criativa como pesquisadores.”

Essa experiência interdisciplinar reforça a ideia de que, independente do campo de atuação, a boa escrita é essencial para comunicar com mais autoridade e charme o seu conhecimento. E a boa escrita rouba estratégias que muitas pessoas julgam ser exclusividade da literatura. Não são. É esse campo onde a realidade encontra o literário que mora a tal da escrita criativa de não-ficção.

Se encararmos todo texto como um ato de comunicação criativa, entenderemos que ele não pode (ou não deveria) ser previsível. Pode ser formal, mas pode ter ritmo, por exemplo, porque ritmo dá agilidade à leitura. Com um misto de pontuação, variação do tamanho das frases e palavras certas, você nota quando um texto fica fácil de ler. É a mesma lógica da música. Alguma repetição é bem-vinda, desde que isso não aconteça do início ao fim. Erudição demais assusta. Nada supera a força da naturalidade dos discursos, falados ou escritos. Uma palavra ou outra pouco usual no meio de um texto claro e preciso tem lá seu charme, mas nunca abuse. Aliás, nunca abuse de nenhum recurso. Se você já viu por aí a metáfora que acabou de usar, apague. Se você lembra de já ter usado a expressão, e ficado feliz com ela, apague também.

Frases longas com muita informação tendem a produzir textos cansativos. Frases longas que dão voltas demais antes de entregar o interessante da história são enfadonhas. Frases longas bem escritas, enxutas, sem advérbios enormes, jargões e tecnicalidades, que entregam uma sucessão de informações curiosas são bem-vindas para quebrar sequências de frases curtas, percebe? Comece com o ponto forte do que você tem a dizer porque, na disputa pela audiência, sai na frente quem diz ao que veio de primeira. Então cuidado com essa fórmula de começar a contar uma história pelo histórico lá de trás porque gera bocejo. Ordem cronológica pode ser um perigo se o mais legal estiver no fim. Fatie as informações e encontre a ordem mais amigável para apresentá-las. Termine amarrando bem o que foi exposto, ou com o que pode ser a ponta de um novo raciocínio, ou aquilo que você gostaria que ficasse repercutindo na mente de quem leu, mais um pouquinho.

Clarice Lispector escreveu, certa vez, que o processo de viver “é feito de erros, de coragem e preguiça, desespero e esperança”. Portanto, coragem. Isso se aplica totalmente à escrita. Entre erros e acertos, você precisa acreditar que tem algo relevante a dizer. E precisa de tempo para isso.

 *Carioca, é formada em Jornalismo pela PUC-Rio e mestre em Escrita Criativa pela Royal Holloway, University of London

Fonte: https://valor.globo.com/opiniao/isabel-clemente/coluna/agora-e-so-escrever-mentira.ghtml  13/07/2023

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