Por Alysson Oliveira*
Barbie não quer uma utopia feminista, não quer opressão dos homens, mas, apenas, a conciliação, na qual homens e mulheres vivam em pé de igualdade. É uma saída amena para uma narrativa que se mostrava tão ácida até então.
Escrevendo, no começo dos anos de 1990, sobre o gênero como posição de consumo, Susan Willis diz em seu livro Cotidiano: Para Começo de Conversa: “Quando uma menina compra a Barbie ou recebe como presente de aniversário ou Natal, vivencia o consumo em relação a uma coletividade de meninas que têm ou querem ter a Barbie.” O que a autora aponta aqui, entre outras coisas, é a ideia de aproximação de pares pelo consumo. Mesmo que estejam brincando sozinhas com sua boneca, as meninas fazem parte de uma rede maior de todas as outras milhares no mundo todo que fazem o mesmo.
Barbie, o filme de Greta Gerwig, potencializou essa ideia de coletividade, numa outra chave: a de colocar dezenas – às vezes, centenas – de pessoas numa mesma sala vendo o mesmo filme. Os números de bilheteria são avassaladores, não se via algo assim desde antes da pandemia. Estima-se que, no primeiro final de semana, mundialmente, o longa lucrou inesperados US$337 milhões. Até os executivos da Mattel e da Warner, que o produziram, se impressionaram: “Esperávamos algo em torno de US$ 75 milhões [apenas nos EUA]. Ninguém imaginava os US$155 [que foi a bilheteria apenas no país]”, disse um deles à revista Variety.
É inegável que Barbie se tornou o evento cultural do ano. Assim como a guerra cultural da atualidade, com a qual muito se lucrou também. O filme estreou no mesmo final de semana que Oppenheimer, o drama sério e longo (mais de 3 horas) de Christophen Nolan sobre o “pai da bomba atômica”. Surgiu um embate, mas nem tanto. A disputa chamada de Barbenheimer, na internet, retroalimentou os dois longas, que saíram ganhando com isso em suas bilheterias – muitos cinemas fizeram sessões duplas, inclusive.
Mas, voltando ao comentário de Willis, quando ela escreveu isso, a boneca já estava numa fase, digamos, de seu rebranding. Em 1992, foi lançada, pela primeira vez, a Barbie Presidente, que vinha com um vestido para a posse e um terno vermelho para o trabalho no Salão Oval, na Casa Branca. A campanha de ressignificação do brinquedo, no entanto, já havia começado há uns bons anos. Em 1965, foi lançada a Barbie Astronauta, 4 anos antes do homem pisar na Lua. Em meados da década de 1980, no auge da consolidação do neoliberalismo, surgiu a campanha publicitária “Girls can do anything”, que se tornou uma espécie de lema do brinquedo. De marca da opressão feminina, com um corpo impossível de se alcançar, aos poucos, Barbie se tornou uma espécie de ícone inesperado do feminismo. E a coroação veio com o filme.
Escrito por Gerwig e seu marido, o cineasta Noah Baumbach, Barbie é um longa que captura de forma impressionante o presente. Um ano atrás, digamos, não se esperava muito dele, até o surgimento do primeiro teaser, no final de 2022, inspirado na famosa cena do começo de 2001 – Uma odisseia no espaço, trocando o monólito por uma Barbie gigante (Margot Robbie) e os homens-das-cavernas por garotinhas brincando com bonecas sem graça, com as quais a única coisa que podiam fazer era o papel de mamãe.
A ideia, já nesse pequeno trailer, era de que a Barbie revoluciona a brincadeira – mas, não apenas isso, revoluciona o papel social da mulher. Quer ser presidente? Tudo bem. Escritora? Vai ganhar um Nobel. Ter um filho? Claro, houve Barbie eternamente grávida, chamada Midge, que foi descontinuada pela Mattel. Médica? Sim, também é possível. Ou seja, uma infinidade de possibilidades, e também de produtos vendidos separadamente. Não adianta apenas ter A Casa da Barbie. Qual é graça sem comprar Os Móveis da Barbie ou o Carro da Barbie?
O filme dialoga com todo esse consumismo, fazendo dele combustível para seu roteiro e, em certo sentido, a sátira de Gerwig vai muito bem. Mas até um ponto. Muito já se falou e escreveu sobre o potencial feminista e contestador do longa. O roteiro, sagazmente, coloca a Barbielândia como uma utopia, na qual os papéis de gênero estão invertidos em relação ao Mundo Real, e também não há distinção de raça, nem de classe – todos e todas estão no mesmo patamar socioeconômico.
As mulheres se chamam Barbie, e os homens, Ken (exceto um tal de Allan, mas esse é um dos personagens mais mal desenvolvidos do filme). Elas ocupam cargos de poder e relevância, enquanto eles são apenas eles. O principal Ken (Ryan Gosling) “trabalha” na praia. Ele não é salva-vidas ou surfista, seu trabalho é simplesmente estar em pé na praia e ficar lá o dia todo. Eles não tem casa, nem consciência de sua posição.
A vida de plástico deixa de ser fantástica quando coisas estranhas começam a acontecer com a principal Barbie – também conhecida como Barbie Estereotipada. O ápice do fracasso é quando seu pé toca o chão, deixando de ter a anatomia perfeita para o encaixe perfeito no salto alto – outra impossibilidade humana – e o aparecimento de celulite. O roteiro é muito bem construído especialmente no sentido de seu humor cínico e ácido sobre os papéis de gênero. Ao escancarar de forma tão gritante a opressão feminina – por meio da opressão masculina na Barbielândia – é impossível negar sua existência.
A única maneira de Barbie resgatar o corpo e a vida perfeita é indo para o Mundo Real, encontrar a menina que brinca com ela, descobrir por que a garota está triste, e a salvar. Ken se esconde no carro dela, e acaba indo também para o outro lado da fronteira. E é lá que eles entram em contato com o oposto da Barbielândia: homens com poder, e mulheres, oprimidas.
A discrepância entre os dois universos gera algumas das melhores piadas do filme – como Barbie horrorizada ao descobrir que o presidente da Mattel é um homem, e Ken ficar encantado ao perceber que existe algo chamado Patriarcado, que dá o privilégio aos homens de mandar e desmandar como bem entenderem.
Há, no entanto, um diálogo extremamente revelador, que também sintetiza, talvez involuntariamente, o aspecto formal do longa. Dois homens de terno e gravata, ou seja executivos poderosos, conversam, e um deles diz, basicamente, que as posição das mulheres mudaram apenas para disfarçar, mas, no fundo, quem manda são os homens mesmo. Ou, para usar a famosa máxima do filme O Leopardo: as coisas mudaram para continuar as mesmas. Essa manutenção de poder – abrir mão de alguns anéis para não perder a luva, os dedos, o braço todo – é a ideia cara ao filme.
(A partir daqui, a fim de discutir o longa, o texto terá spoilers.)
Depois de encontrar sua dona atual e a filha dela, Barbie retorna ao seu mundo, para o descobrir dominado por Ken, que instaurou aquilo a que ele mesmo chama de O Patriarcado – despois de ler sobre o tema em alguns livros –, fez uma lavagem cerebral nas Barbies, que agora são apenas suas bimbos, enquanto ele e os demais Kens agora tomaram suas casas e trabalhos. Horrorizada, a Barbie Estereotipada precisa armar um plano para resgatar suas amigas e o mundo perfeito em que viviam.
É aí que o filme ameniza no seu discurso. Barbie não quer uma utopia feminista, não quer opressão dos homens, mas, apenas, a conciliação, na qual homens e mulheres vivam em pé de igualdade. É uma saída amena para uma narrativa que se mostrava tão ácida até então. Quando tocado pelo Mundo Real, Ken descobriu que estava sendo oprimido, e resolveu radicalizar, Barbie, por sua vez, resolveu fazer concessões. Ou seja, nem numa fantasia – tão alardeada feminista – a mulher consegue sua posição de poder.
Isso, no entanto, é explicável. Barbie é um filme caro, bancado por um grande estúdio e uma fábrica de brinquedos – ou seja, duas organizações não apenas inseridas no sistema, mas, também, que ajudaram a moldar o sistema como tal no presente. Por mais que Gerwig quisesse radicalizar – e ela faz até onde pode – não haveria como, digamos, um final à la Clube da Luta, com prédios sendo explodidos. A lógica aqui é outra.
O que, no entanto, não quer dizer que seja um filme inócuo. A semente está plantada. E, de qualquer forma, tal qual Nora Helmer, Barbie abandona a casa de bonecas ao perceber que pode crescer no mundo real. A cena final é hilária e, em certa medida, transgressora – especialmente para qualquer pessoa que, quando criança, tenha olhado o que há debaixo do vestido da Barbie.
***
Alysson Oliveira
é jornalista e crítico de cinema no site Cineweb, membro da ABRACCINE –
Associação Brasileira de Críticos de Cinema, e escreve sobre livros na
revista Carta Capital. Tem Mestrado e Doutorado em Letras, pela
FFLCH-USP, nos quais estudou Cormac McCarthy e Ursula K. LeGuin,
respectivamente. Realiza pesquisa de pós-doutorado, na mesma
instituição, sobre a relação entre a literatura contemporânea dos EUA e o
neoliberalismo, em autores como Don DeLillo, Rachel Kushner e Ben
Lerner. Publicado em 28/07/2023
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2023/07/28/bem-vinda-a-casa-da-boneca/
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