segunda-feira, 10 de julho de 2023

Por um pensamento planetário.

Artigo de Yuk Hui 

 https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2023/07/08_07_nascer_terra.jpg

 Foto do nascer da Terra visto da órbita lunar em 1968 pela Apollo 8. (Goddard Space Flight Center (GSFC) / NASA/Divulgação)

"A humanidade já começou a fugir da Terra e a se lançar rumo à matéria escura, da qual não sabemos praticamente nada. A diversificação é o imperativo para um pensamento planetário que está por vir, e isso, por sua vez, exige um retorno à terra", alerta o filósofo

10 Julho 2023

"O pensamento planetário não é a iluminação zen ou a revelação cristã. É o reconhecimento de que estamos e permaneceremos em estado de catástrofe. De acordo com Schmitt, Deus já passou seu poder ao ser humano, e o ser humano o passou às máquinas. O novo nomos da terra deve ser pensado de acordo com a história da tecnologia e seu futuro. Resta discutir como desenvolver novas práticas de design e corpos de conhecimento, desde a agricultura até à produção industrial, que não atuem a serviço da indústria, mas sejam capazes de transformá-la".

A opinião é de Yuk Hui, professor de Filosofia da Tecnologia e da Mídia na City University de Hong Kong. Obteve seu doutoramento no Goldsmiths College London, na Inglaterra, e sua habilitação em filosofia na Leuphana University Lüneburg, na Alemanha. É autor de várias obras que foram traduzidas para uma dezena de idiomas, inclusive ao português, como “Tecnodiversidade” (Ubu Editora, 2020).

O artigo foi publicado por e-Flux Journal, n. 114, de dezembro de 2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o artigo.

1. A condição planetária

Se a filosofia foi levada a termo pela planetarização tecnológica (como Heidegger proclamou em seu tempo), ou mais recentemente por uma virada histórica impulsionada pela computadorização planetária (como muitos autores entusiastas têm proclamado em nosso tempo), então nos resta refletir sobre sua natureza e seu futuro, ou, nas palavras do próprio Heidegger, sobre o “outro começo” (anderer Anfang). [1] Nesse outro começo que Heidegger buscava, o Dasein humano adquire uma nova relação com o Ser e uma relação livre com a tecnologia. Heidegger reposiciona o pensamento voltando-se aos gregos, o que pode parecer, à primeira vista, reacionário: esse passo atrás é suficiente para enfrentar a situação planetária que ele mesmo descreve? Duvidoso. Para Heidegger, escrevendo nos anos 1930, essa planetarização implica uma falta planetária de reflexão [2] (Besinnungslosigkeit), que não se limita à Europa, mas é aplicável também, por exemplo, aos Estados Unidos e ao Japão. [3] Essa falta de reflexão é ainda mais óbvia hoje. Mesmo que a filosofia europeia se reinvente completamente, as tecnologias disruptivas continuarão em alta em todo o mundo. Qualquer proposta de retorno ao Ser pode parecer embaraçosa, senão ridícula. [4] Não porque a Europa tenha chegado tarde demais, mas porque chegou cedo demais e não tem mais controle sobre a situação planetária que ela começou. Essa situação lembra o que Heidegger disse sobre o outro significado do fim da filosofia: “O começo da civilização mundial baseada no pensamento da Europa ocidental”. [5]

A reflexão (Besinnung) não pode ser restaurada por meio da negação da planetarização. Em vez disso, o pensamento tem de superar essa condição. Essa é uma questão de vida ou morte. Podemos chamar esse tipo de pensamento, que já está tomando forma, mas ainda não foi formulado, de “pensamento planetário”. A fim de elaborar como será o pensamento planetário, assim como sua relação com a planetarização tecnológica, devemos entender melhor a essência da planetarização.

Acima de tudo, a planetarização é a mobilização total de matéria e energia. Ela cria diferentes canais para todas as formas de energia (petrolífera, hidráulica, elétrica, psíquica, sexual etc.) acima e abaixo da terra. Ela é amplamente intercambiável com o termo “globalização”, ou aquilo que Bruno Latour chama de “globalização-menos”, que não é uma abertura, mas sim um fechamento de várias perspectivas. [6] A globalização tem aparecido sob o disfarce de um embaçamento de fronteiras, uma abertura aos outros que facilita os fluxos de capital e de materiais. No entanto, é em grande parte impulsionada por considerações econômicas. A conquista dos mercados chegou junto com a conquista da terra: a história mostra que o comércio e a colonização sempre estiveram profundamente interligados. Quando a terra, o mar e o ar são apropriados e circunscritos com fronteiras – um indicador de que os Estados-nação modernos são a única realidade pós-colonial – a única forma que a colonização pode continuar assumindo é a conquista de mercados. A diplomacia moderna alimenta esse processo por outros meios além da invasão militar direta, ou seja, o “soft power” ou a “soft culture”.

A conquista de mercados significa uma mobilização mais rápida e suave de bens materiais e capitais, o que necessariamente cria déficits e superávits comerciais. Depois da Guerra Fria, a globalização acelerou enormemente essa mobilização. Hoje, a civilização não pode mais suportá-la. Imagine um país cuja população teve um aumento de quase 50%, de menos de um bilhão para 1,4 bilhão de pessoas, em apenas 40 anos. Quanta exploração da terra, do mar e dos seres humanos foi necessária para acomodar esse aumento de população e de consumo? Do outro lado do globo, o desmatamento da Amazônia aumentou 16% durante o mesmo período de 40 anos e agora [em 2020] acelerou para três campos de futebol por segundo no governo Bolsonaro. Quantas espécies desapareceram permanentemente como resultado disso? A globalização significa o esgotamento dos recursos à medida que a espécie humana caminha rumo à aceleração máxima. A fim de manter essa ordem geopolítica, algumas partes interessadas continuam negando que uma crise ecológica sequer esteja ocorrendo. Quer gostemos ou não, a “planetarização” provavelmente é a condição mais significativa do filosofar hoje. Essa reflexão não nasce de uma demonização da tecnologia moderna ou de uma celebração da dominação tecnológica, mas sim de uma vontade de abrir radicalmente a possibilidade da tecnologia, hoje cada vez mais ditada pela ficção científica.

2 A dialética do desconhecimento

A mobilização total é possibilitada pela rápida aceleração tecnológica; ela também exige que humanos e não humanos se adaptem a uma evolução tecnológica cada vez mais intensa. A indústria da tele-entrega de alimentos e suas plataformas online fornecem um exemplo claro de como a carne humana é usada para compensar as imperfeições dos algoritmos. O nômade humano-bicicleta é impulsionado por pedidos feitos com aplicativos humanos. Tudo isso é impulsionado por uma psicogeografia ditada pela fome e pelo desejo. O nômade arrisca a morte por acidente de trânsito para evitar a punição pelos dados. O entregador sofre mais misérias quando sua bicicleta estraga do que quando seu corpo orgânico sofre. A dor vem da incapacidade de alcançar cotas de eficiência para pedidos e entregas. O que Marx descreveu na fábrica, que ainda ocorre na Foxconn e em outras empresas, é generalizado em todas as indústrias. Em outras palavras, os trabalhadores de todas as áreas são automaticamente monitorados e punidos pelos dados. Essa prática promete uma governança mais eficiente em todos os níveis, dos objetos aos seres vivos, dos indivíduos ao Estado, com base na calculabilidade universal. Também exibe aquilo que Heidegger chama de Gestell, ou “enquadramento”: a essência da tecnologia moderna segundo a qual cada ser é considerado como uma reserva permanente ou um recurso submetido à calculabilidade.

A Gestell se expressa como política cinética, que Peter Sloterdijk descreve como a característica-chave da modernidade. Sloterdijk associa esse cinetismo à “mobilização total”, um termo que Ernst Jünger notoriamente usou para descrever a cinética da guerra. [7] A mobilização total se expressa em termos de “disponibilidade” e “acessibilidade” de materiais, informações e bens financeiros. No exemplo da entrega de comida, a mobilização total permite ostensivamente que a comida mais “autêntica” apareça na mesa da cozinha de uma pessoa, com todas as suas promessas de calor e sabor. A mobilização total das mercadorias é também a circulação do trabalho humano e seu duplo, ou seja, a negação da “natureza”. Essa mobilização total também estabelece uma episteme e uma estética globais, movidas pela necessidade de aceleração. A realização do mundo como um globo tem sido um projeto metafísico contínuo desde a antiguidade. A conclusão desse projeto por meio da tecnologia moderna não implica uma mudança suave para um mundo pós-metafísico livre da metafísica. Pelo contrário, essa força metafísica mantém seu controle sobre o destino do ser humano.

Uma pergunta constante permanece: para onde está indo essa força metafísica? Ou, para onde ela deseja ir?

Argumentei em outro lugar que a globalização, que tem sido celebrada como um processo unilateral de colonização, está agora se confrontando com uma dialética do senhor-escravo. A relação senhor-escravo é finalmente subvertida pela superdependência de um determinado país tanto como fábrica quanto como mercado. O desejo (Begierde) do “escravo” por reconhecimento (que é nacionalista neste caso), realizado por meio do trabalho e da tecnologia, subverte a relação senhor-escravo. O “senhor”, despertado desse momento contraditório, tem que restabelecer seus próprios limites e reduzir sua dependência, para que o escravo não possa mais ameaçá-lo e volte a ser seu subordinado. Esse momento poderia ser facilmente interpretado como o fim da globalização: o Ocidente precisa se reposicionar e reorganizar suas estratégias, localizando e isolando as ameaças à sua dominação. A globalização pode ter chegado ao fim, não pela robustez de um movimento antiglobalização (que se extinguiu silenciosamente), mas porque, como uma etapa histórica, expõe mais defeitos do que os benefícios que promete. Esse momento contraditório e conflituoso ainda não foi resolvido ou, melhor, reconciliado, no sentido hegeliano. A palavra alemã para reconciliação, Versöhnung, que o próprio Hegel usa, expressa plenamente esse processo: uma parte da equação terá que reconhecer a outra como pai e se identificar como filha.

Não importa quem desempenhe o papel de filho nesse drama, a natureza da política cinética pode não mudar. Enquanto perdurar a forma anterior de globalização, os países escravos apelarão à globalização e acusarão os países senhores de agirem contra a globalização. Quando eles se separam dos países escravos, os (antigos) países senhores também sofrem: perdem os benefícios de que gozavam no século passado. Uma consciência infeliz emerge e permanece sem solução. Podemos observar essa dialética de longe, mas ainda temos que questionar sua natureza e seu futuro. Não temos nenhuma razão para culpar Hegel – pelo contrário, devemos continuar admirando seu método de empurrar a racionalidade rumo ao Absoluto –, mas devemos analisar os erros cometidos por seus seguidores. Em primeiro lugar, o movimento dialético do espírito do mundo é apenas uma reconstrução histórica. Assim como a coruja de Minerva que abre suas asas apenas quando o crepúsculo cai, sempre já é tarde demais. E, quando se projeta para o futuro, esse movimento dialético poderia facilmente ser vítima do Schwärmerei (excesso de sentimento ou entusiasmo), como ocorreu com Francis Fukuyama com seu “O fim da história e o último homem”. Em segundo lugar, o movimento dialético senhor-escravo não muda a natureza do poder, apenas a configuração do poder (caso contrário, a sociedade burguesa que sucedeu à feudal não deveria ter sido abolida). Como na clássica dialética hegeliano-marxiana, vemos que a vitória do proletariado não vai além de seu próprio domínio do poder. Essa dialética pressupõe uma superação do senhor, sem perceber que o mesmo poder se reencarna em um novo monstro. Esse é um ponto cego comum entre os marxianos. O desejo de superar o “senhor” pode resultar em nada mais do que o “triunfo” do mercado, porque então os países senhores serão acusados de ser antimercado e antiglobalização. Essa mudança de poder é apenas uma promessa de abertura do mercado, levando a uma planetarização e a uma proletarização mais intensas. Estamos diante de um impasse que demanda transformações fundamentais de conceitos e práticas.

3. O imperativo da diversificação

O pensamento da globalização, que é ao mesmo tempo o início e o fim do impasse, não é um pensamento planetário. O pensamento global é um pensamento dialético baseado na dicotomia entre o global e o local. Tende a produzir monstros gêmeos: o imperialismo, de um lado, e o fascismo e o nacionalismo, de outro. O primeiro universaliza sua epistemologia e ética; os segundos exageram as ameaças externas e os valores tradicionais. A pandemia do coronavírus acelerou a recente mudança geopolítica. Ao anunciar o fim da globalização, a pandemia não promete uma visão verdadeira, exceto pelo sentimento de que ela marca o início de uma época de catástrofe. Pelo contrário, todos os apelos para salvar o “ancien régime” que ressoam entre as elites não passam de uma luta por uma política regressiva.

Um pensamento planetário é acima de tudo um imperativo para as diversidades. O conceito de diversidades, a fachada da globalização, se baseia na separação entre tecnociência e cultura. Nesse sentido, a cultura é reduzida a rituais, relações sociais, costumes, culinárias e outras formas de troca simbólica “livres de tecnologia”. O multiculturalismo se baseia na suposição moderna da separação entre tecnologia e natureza. Aqui a tecnologia é entendida apenas como a tecnologia moderna que surgiu a partir da revolução industrial. A natureza, nesse caso, é concebida apenas como um ambiente externo ou como um conjunto de entidades não feitas pelo ser humano. Entramos imediatamente em uma dialética da natureza, por meio da qual a natureza terá de “consumir-se como uma Fênix a fim de emergir dessa exterioridade rejuvenescida como espírito”. [9] Essa é uma natureza da lógica totalmente compatível com a ciência e a tecnologia modernas. A diversidade que a globalização prometia, encontrada na natureza do multiculturalismo, está longe de ser a verdadeira diversidade, pois se baseia nesse conceito desarticulado de natureza e tecnologia. É por isso que Eduardo Viveiros de Castro, por meio de sua pesquisa sobre o perspectivismo ameríndio, propõe o multinaturalismo em contraste com o multiculturalismo. De acordo com Viveiros de Castro, o primeiro afirma uma multiplicidade de naturezas, enquanto o segundo é construído sobre o conceito moderno de natureza homogênea. Sem reabrir a questão da natureza e da tecnologia, ficamos presos em um sistema mantido por ciclos de feedback positivos, como os alcoólatras que não conseguem parar de beber depois de experimentarem o álcool mais uma vez.

Nós, modernos, somos alcoólatras. E provavelmente é verdade que a aceleração é considerada uma saída, por meio de um gesto quase trágico que abarca aquilo que Gilles Deleuze e Félix Guatarri censuraram certa vez em Samir Amin: “Talvez os fluxos ainda não estejam suficientemente desterritorializados (...) é preciso acelerar o processo”. [10] Um pensamento planetário não envolve uma mera aceleração, mas sim uma diversificação. É convocado pela planetarização e, simultaneamente, convoca todos os esforços para ir além e transformá-lo. As três noções de diversidade que constituem o que chamamos de pensamento planetário são biodiversidade, noodiversidade e tecnodiversidade.

A biodiversidade é fundamentalmente uma questão de localidade. É definida por um ambiente geográfico específico e mantido pelas relações particulares entre humanos e não humanos. Essas relações são inscritas e mediadas por meio de invenções técnicas, que são parte constitutiva de um povo, em termos de rituais, costumes e instrumentos. A modernização e sua metafísica produtivista reconheceram essas diferenças, mas as tornaram contingentes. Isso não significa que o pré-moderno ocidental ou o não ocidental não moderno seja melhor do que o moderno ocidental, mas sim que não se deve abrir mão do valor de nenhum deles tão rapidamente. A espécie humana faz parte de um sistema maior, e, portanto, um gesto anti-humano não nos levará longe. Uma relação humana e não humana renovada é muito mais urgente e crucial hoje, como muitos estudiosos já disseram. Destacam-se entre eles os antropólogos da “virada ontológica” como Philippe Descola e a escola das “multiespécies” representada por Donna Haraway, formando dois campos divididos por uma “preferência” pelo culturalismo ou pelo naturalismo.

Há cerca de 100 anos, Pierre Teilhard de Chardin propôs a noção de noosfera. Em suma, a ideia é que o envolvimento tecnológico do globo desde o início da hominização irá convergir e culminar em um “supercérebro” emergente. Aqui, essa evolução tecnológica significa ocidentalização. De acordo com Teilhard, o Oriente é “antitempo e antievolução”, enquanto o caminho ocidental é “um caminho de convergência incluindo o amor, de progresso, de síntese, de tomar o tempo como real e a evolução como real, reconhecendo o mundo como um todo orgânico”. De um ponto de vista religioso, a noosfera de Teilhard de Chardin pretende ser uma cristogênese, uma universalização do amor; de um ponto de vista tecnológico, é a universalização de um conjunto de visões de mundo e de epistemologias particulares. O “supercérebro” ou o “cérebro de todos os cérebros” é testemunha da realização do Reino de Deus na terra, mas também do triunfo do pensamento ocidental evolutivo e progressivo. A culminação da noosfera certamente não é uma diversificação, mas sim uma convergência confundida com o amor cristão universal ou “o Uno”. A noosfera deve ser fragmentada e diversificada, e tal fragmentação ou diversificação só será possível quando levarmos em frente a diversidade de pensamento e o pensamento da tecnodiversidade. Podemos reconfigurar as relações humanas e não humanas, assim como a economia política, por meio do desenvolvimento da tecnodiversidade.

Tanto a biodiversidade quanto a noodiversidade são condicionadas pela tecnodiversidade. Sem tecnodiversidade, temos apenas formas homogêneas de lidar com agências não humanas e com o próprio mundo – como se homogêneo fosse igual a universal. Se considerarmos a tecnologia como neutra e universal, então podemos repetir o que Arnold Toynbee disse no século passado sobre a importação ingênua de tecnologia ocidental pelos países asiáticos no século XIX. Ou seja, ele afirmou que os extremo-orientais no século XVI rejeitaram os europeus porque estes queriam exportar tanto a religião quanto a tecnologia, enquanto, no século XIX, quando os europeus exportavam apenas tecnologia, os países do Extremo Oriente consideravam a tecnologia como uma força neutra que poderia ser dominada pelo próprio pensamento deles. [13] Carl Schmitt citou a mesma passagem de Toynbee para descrever como a revolução industrial e o avanço tecnológico levaram ao domínio do Dasein marítimo: “O Oriente deve se permitir ser desenvolvido por nós”. [14]

4. Diplomacia epistemológica

O “Nomos da Terra” de Schmitt começava e terminava com uma reflexão sobre a história da tecnologia; depois de séculos de forças terrestres e marítimas competirem, no século XX vemos o surgimento da força aérea, indo de aeronaves de combate a mísseis de longa distância. O poder no século XXI não está no parlamento, mas na infraestrutura. Alguns escritores perspicazes notaram que as cédulas bancárias europeias emitidas em 2003 e 2013 não apresentam mais retratos de figuras políticas ou históricas, mas sim infraestruturas. Mais do que nunca, a concorrência tecnológica é um campo de batalha em todos os níveis, desde as empresas até a defesa militar e a administração estatal. A infraestrutura não é apenas um conceito materialista; além de seus propósitos econômicos, operacionais e políticos, ela também incorpora conjuntos complexos de pressupostos axiológicos, epistemológicos e ontológicos que podem não ser imediatamente visíveis. É por isso que o conceito de diversidade, central para o pensamento planetário, ainda deve ser pensado. Para descrever melhor o que é o pensamento planetário, uma tarefa que não podemos realizar totalmente aqui, podemos começar a partir do que ele não é. Dessa forma, podemos dar um contorno ao pensamento planetário.

O pensamento planetário não tem a ver com a preservação da diversidade, que se posiciona contra a destruição externa, mas sim com a criação da diversidade. Essa diversificação se assenta no reconhecimento da localidade – não simplesmente para preservar suas tradições (ainda que sejam essenciais), mas também para inovar a serviço da localidade. Nós, como seres terrestres, sempre já aterrissamos, mas isso não significa que sabemos onde estamos; estamos desorientados pela planetarização. Assim como no ato de olhar a Terra a partir da Lua, não percebemos mais a terra debaixo dos nossos pés. Desde Copérnico, o infinito do espaço tem permanecido como um grande vazio. A insegurança e a tendência niilista inerentes a esse vazio foram contrabalançadas pela subjetividade cartesiana, que devolve todas as dúvidas e medos ao próprio ser humano. Hoje, a meditação cartesiana é sucedida por uma celebração do Antropoceno, o retorno do humano após um longo período de “rolamento do centro rumo a X”. A infinitude do espaço hoje significa possibilidades infinitas de exploração de recursos. A humanidade já começou a fugir da Terra e a se lançar rumo à matéria escura, da qual não sabemos praticamente nada. A diversificação é o imperativo para um pensamento planetário que está por vir, e isso, por sua vez, exige um retorno à terra.

O pensamento planetário não é um pensamento nacionalista. Em vez disso, deve ir além do limite já estabelecido pelo conceito de Estado-nação e sua diplomacia. Qual é a finalidade da existência de um povo ou de uma nação? É apenas o reavivamento de um nome próprio? Foi assim que a diplomacia se expressou no século passado, desde que o Estado-nação se tornou a unidade elementar da geopolítica. A diplomacia tem se baseado em um forte interesse nacional e em um forte sentimento nacionalista, o que tem levado à negação da crise ecológica e da disseminação global da pandemia. Portanto, paradoxalmente, a súbita afirmação da crise atual pode advir também de uma necessidade diplomática. O sentimento nacionalista é alimentado pelo crescimento econômico e pela expansão militar, vistos como os únicos meios de defesa contra ameaças externas. Uma nova diplomacia deve surgir: uma diplomacia epistemológica fundamentada no projeto da tecnodiversidade. É mais provável que essa nova diplomacia seja iniciada por produtores de conhecimento e intelectuais do que por diplomatas, que estão se tornando cada vez mais consumidores e vítimas das mídias sociais.

O pensamento planetário não é a iluminação zen ou a revelação cristã. É o reconhecimento de que estamos e permaneceremos em estado de catástrofe. De acordo com Schmitt, Deus já passou seu poder ao ser humano, e o ser humano o passou às máquinas. O novo nomos da terra deve ser pensado de acordo com a história da tecnologia e seu futuro – e é precisamente esse futuro da tecnologia que Schmitt nunca abordou suficientemente. Resta discutir como desenvolver novas práticas de design e corpos de conhecimento, desde a agricultura até à produção industrial, que não atuem a serviço da indústria, mas sejam capazes de transformá-la. Isso nos leva a questionar igualmente o papel das universidades e sua produção de conhecimento hoje, além do fato de agirem como fábricas de talentos para a disrupção e a aceleração tecnológicas. Essa reestruturação do conhecimento e da prática é o principal desafio para repensar a universidade no século XXI.

Biodiversidade, noodiversidade e tecnodiversidade não são domínios separados, mas estão intimamente interligados e são mutuamente dependentes. Os modernos conquistaram a terra, o mar e o ar com uma inconsciência tecnológica. Eles raramente questionavam os instrumentos que inventavam e usavam, até que um primeiro tratado sobre a filosofia da tecnologia oficialmente surgiu a partir do hegelianismo. A filosofia da tecnologia, que teve início oficialmente com Ernst Kapp e Karl Marx, começou a ganhar força significativa na filosofia acadêmica. Mas essa “consciência tecnológica” é suficiente para nos levar a uma direção diferente depois da modernidade? Ou ela simplesmente torna o projeto moderno mais central, como no modo como a tecnologia foi considerada a principal força produtiva nos países em desenvolvimento? A planetarização provavelmente continuará por um tempo relativamente longo. Provavelmente, não seremos despertados pelas suas misérias irreversíveis, uma vez que estas sempre podem ser subsumidas sob o vão desejo humano de reafirmar o papel do herói trágico. Em vez disso, teremos de iniciar outros modos de acomodar novas formas de vida em um mundo pós-metafísico. Essa continua sendo a tarefa do pensamento planetário.

Notas do autor

[1] Cf. Yuk Hui, “Philosophy and the Planetary”, Philosophy Today 64, no. 3 (nov. 2020).

[2] No original em inglês, “planetary lack of sense-making”. Assumimos aqui a tradução do conceito de Besinnung como “reflexão” conforme apresentada pelo “Dicionário Heidegger”, de Michael Inwood (Ed. Jorge ZXahar, 2002). Mas há tradutores que também optam pela expressão “pensamento do sentido” (n.d.t.).

[3] Martin Heidegger, GA66 Besinnung (1938/39) (Vittorio Klostermann, 1997), 74.

[4] Trato detalhadamente dessa questão em Art and Cosmotechnics (University of Minnesota Press, 2021).

[5] Martin Heidegger, “The End of Philosophy and the Task of Thinking”, in On Time and Being, trad. Johan Stambaugh (Harper & Row, 1972), 59.

[6] Bruno Latour, Down to Earth: Politics in the New Climatic Regime, trad. Catherine Porter (Polity, 2019), 15.

[7] Peter Sloterdijk, Infinite Mobilization: Towards a Critique of Political Kinetics, trad. Sandra Berjan (Polity, 2020).

[8] Yuk Hui, “On the Unhappy Consciousness of Neoreactionaries”, e-flux journal, n. 81 (abr. 2017). Disponível aqui.

[9] Hegel, Philosophy of Nature, vol. 3, trad. M. J. Petry (George Allen and Unwin, 1970), §376.

[10] Gilles Deleuze and Félix Guattari, Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia, trad. Robert Hurley, Mark Seem e Helen R. Lane (University of Minnesota Press, 2004), 239-40.

[11] Pierre Teilhard de Chardin, The Future of Man, trans. Norman Denny (Image Books, 2004), 151: “Quando o Homo faber surgiu, a primeira ferramenta rudimentar nasceu como um apêndice do corpo humano. Hoje, a ferramenta se transformou em um envelope mecanizado (coerente em si mesmo e imensamente variado) pertencente a toda a humanidade. De somático, tornou-se ‘noosférico’”.

[12] Joseph Needham, “Preface”, in Ursula King, Teilhard de Chardin and Eastern Religions (Seabury, 1980), xiii.

[13] Arnold Toynbee, The World and the West (Oxford University Press, 1953), 67.

[14] Carl Schmitt, Dialogues on Power and Space (Polity, 2015), 67.

[15] Isso também diferencia a nossa abordagem do pensamento terrestre [ou terrano, n.d.t.] de Bruno Latour. O terrestre é o denominador comum de tudo: esquerda e direita, moderno e não moderno. Ele contrasta o terrestre ao local e ao global. Cf. Latour, Down to Earth, 54.

[16] Friedrich Nietzsche, The Will to Power, trad. Walter Kaufmann e R. J. Hollingdale (Vintage Books, 1968), 8.

[17] Schmitt, Dialogues, 46.

[18] Em The Question Concerning Technology in China: An Essay in Cosmotechnics (Urbanomic, 2016), eu usei “consciência tecnológica” para caracterizar o projeto pós-moderno de Jean-François Lyotard.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/630319-por-um-pensamento-planetario-artigo-de-yuk-hu

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