Figura mítica do teatro brasileiro, José Celso Martinez Corrêa, mais conhecido como Zé Celso, morreu na última sexta-feira, em São Paulo. Dramaticamente. Em 2018, fiz minha última entrevista com ele. Zé Celso estava na capital gaúcha para um especial do “Porto Alegre em Cena”, no Teatro do Sesi, com a montagem de “Rei da Vela”, peça maior de Oswald de Andrade. Nesta entrevista, aos 81 anos de idade, parecia um guri transbordando de tesão pelo teatro. Minha pequena apresentação terminava com “Zé Celso incendeia-se de paixão pela arte”.
Juremir Machado da Silva – Qual o lugar do teatro na sociedade dos youtubers?
Zé Celso –
O lugar do teatro é o da natureza, da cosmopolítica, conceito que
permite ver além do ponto de vista social, também do ponto de vista
político, pois a grande contradição hoje é entre o capitalismo selvagem,
rentista, e as lutas dos indígenas pela terra, essa terra-planeta, essa
coisa concreta que estamos pisando agora. Eu me considero um índio.
Minha avó era índia. Assumi o Teatro Oficina há 60 anos. Faz quatro
décadas que lutamos por uma área com um personagem do capitalismo
videofinanceiro, que é o Sílvio Santos. É uma luta muito bonita. Ela
revela o capitalismo financeiro. Sílvio quer construir edifícios em
torno do nosso teatro. Ele havia desistido. Aceitava trocar o terreno
dele por outro do mesmo valor. Conseguimos. Aí veio o impeachment e tudo
mudou. Geraldo Alckmin e João Dória ofereceram para ele o monopólio de
revitalização do bairro Bixiga. É uma periferia central onde nasceu o
teatro moderno brasileiro. O umbigo de São Paulo. Essa revitalização é
um genocídio. Prédios de cem metros. O teatro está em luta contra a
especulação financeira.
JMS – Onde está a arte na sociedade de mercado?
Zé Celso –
A arte é uma potência da natureza. Ela está na infraestrutura da vida,
no chão que se pisa, no ar que se respira, em toda parte com força
inspiradora e de onde tiramos a nossa energia.
JMS – Dá para fazer a antropofagia do mercado?
Zé Celso – É o que acontece no “Rei da Vela”, peça montada 51 anos atrás e que é
absolutamente contemporânea de maneira poética. A arte é essa potência
que a natureza tem de ver o mundo através da poesia. Em épocas de crise,
o teatro lota por ser o lugar do encontro corpo a corpo. Enquanto a
internet se desmoraliza com as fake news, o teatro dá corpo. Aqui, de
Porto Alegre, passamos um whatsapp para o Caetano Veloso propondo uma
ação comum. Ele se indignou com o assassinato daquele capoeirista, na
Bahia. Depois, escreveu uma carta criticando o Olavo de Carvalho. Esse
boçal respondeu esculhambando o Caetano. A antropofagia atual tem a ver
com tudo isso, com comer este momento.
JMS – O que “Rei da Vela”, montada em 1967, diz hoje?
Zé Celso – Montada
durante a ditadura do Castelo Branco, no ano anterior ao AI-5, diz hoje
tudo e mais, muito mais. Oswald de Andrade dizia que há um momento em
que a burguesia se declara cansada de carregar a velha máscara liberal,
as conquistas da civilização e outras besteiras e se organiza como
classe policialmente. Ele escreveu a peça em 1933, começo da ascensão do
nazismo, e publicou em 1937. Acontece uma primavera cultural quando o
público vê o espetáculo.
JMS – O que significa essa imagem?
Zé Celso – Uma
primavera do país. É o momento da transfiguração. Oswald de Andrade
dedicou o Rei da Vela a esse enjeitado, o teatro brasileiro. Foi assim
que ele escreveu. É um enjeitado que as pessoas procuram nos momentos de
crise e aí acontece essa primavera. Percebo isso também no carnaval de
rua de São Paulo. Há vários sintomas. Em 1965, na Cinelândia, o povo
cantava “tristeza, por favor, vá embora”.
JMS – O significado de Oswald de Andrade na sua vida?
Zé Celso – Na
minha vida, assim como na brasileira e na mundial, Oswald de Andrade
conta muito. Ele, Nietzsche e Artaud foram os filósofos que me
alimentaram. Antropofagia pura. Oswald tem uma dimensão desconhecida.
Agora, vai ser editado pela Cia das Letras e ficará mais conhecido. A
leitura dele não é fácil. O grande romance dele, “Serafim Pontegrande”, é
uma obra-prima, parece um filme de Godard. A leitura exige considerar o
espaço, o título, toda uma coisa nova. O Brasil sempre foi muito
acostumado com a literatura realista. Ele tentou se adaptar ao escrever
“Marco Zero”, um livro lindo com a mistura de todos os sotaques de São
Paulo da época no grande encontro entre os integralistas, de verde, na
Avenida Paulista, e os operários vindos do Brás, marco zero da cidade.
Um filosofo antimessiânico.
JMS – Ele foi o nosso Homero?
Zé Celso – Ele é o nosso Homero. Inclusive pelas teses filosóficas dele. Nada mais atual do que a situação da filosofia messiânica.
JMS – Resistir não adianta. O que é reexistir?
Zé Celso –
Eu sempre digo: não adiante resistir. O importante é reexistir.
Resistir é ficar segurando uma ideia. Quando o inimigo muda, é preciso
mudar também. A mudança exige uma nova estratégia.
JMS – O teatro reexiste?
Zé Celso – O teatro se
reinventa em função dos dias, da hora, do instante. O ator em cena
absorve o público presente e capta a energia da época. O Rei da Vela
capta essa energia da primavera do Brasil. Só a cultura produz viradas. A
cultura foi considerada dispensável. Os candidatos nem a mencionavam.
Mas voltou com o incêndio do Museu Nacional. Cultura é o cultivo da
vida. Não existiu revolução sem grandes acontecimentos culturais. Depois
da revolução russa se viveu o maior momento de arte pública no mundo,
com Maiakovski, com o cinema, os escultores. Maiakovski, nessa época,
inventou a publicidade.
JMS – Por que preferir “presentação” à representação?
Zé Celso – Dá
para representar, colocar uma máscara, porém teatro é o ato de estar em
cena fazendo emanar uma energia, um combustível acumulado nos ensaios.
Isso produz paixão e uma cultura nova. Cada peça faz nascer uma cultura
se for feita criadoramente. Há coisas na cultura que são eternas. A
cultura de “Rei da Vela” de 1967 e de 2018 é a mesma. Monto e remonto
“As Bacantes”. São várias reexistências. O teatro é a eternidade do
tempo. No tempo de hoje, “Rei da Vela” é ainda mais contundente. Em
Porto Alegre, vai ser extremamente contundente. E assim será em três
dias em São Paulo, no auditório Ibirapuera.
JMS – E “Roda Viva”?
Zé Celso – É irmã do “Rei da
Vela”. Texto de um jovem poeta, Chico Buarque, que se inspirou no “Rei
da Vela”. Tenho certeza de que ele viu “Rei da Vela” antes de escrever.
Já tinha trabalhado comigo em “Os inimigos”. Foi uma revolução no
teatrinho Princesa Isabel: não tinha separação de palco e plateia,
tocavam os corpos. E tudo isso foi esmagado em São Paulo, em 1968, pelo
Comando de Caça aos Comunistas, grupo paramilitar, e em Porto Alegre.
Bateram nas mulheres, sobretudo em Marilia Pêra. Quando voltei da
estreia em Porto Alegre, houve a invasão do hotel pelo exército, bateram
nas pessoas e raptaram a atriz, o violinista, levaram para o mato e
quiseram estuprar. Botaram todo mundo ferido num ônibus e mandaram para
São Paulo. Estou fazendo de nova essa peça que trata da fabricação de
mito. É importante.
JMS – Como se explica que as pessoas voltem ao teatro nestes tempos de sociedade do espetáculo e de cultura digital?
Zé Celso – Porque
as pessoas têm corpo. Elas precisam de um lugar onde o corpo exista e
transmita alguma coisa. Necessitam da concretude. Eu sou um anarquista
coroado, como Artaud, e me remeto a Oswald de Andrade, que, em 1928, no
“Manifesto Antropofágico”, declarava: “eu não sou mais moderno, sou o
primeiro poeta pós-moderno do mundo”. Era o retorno ao tupi, ao índio.
Uma perspectiva que desdenha o poder. O Oficina é assim. Quando
começamos a virar instituição, desbundamos. A grande política é a arte.
Maquiavel já sabia disso.
*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário
Fonte: https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/juremir-entrevista-ze-celso-2018/?login=success
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