Frei Betto*
- 06/07/2023
O homem e a mulher são os únicos seres vivos que se contrapõem à natureza. Os demais, das abelhas arquitetas aos macacos africanos que ordenam seus recursos de sobrevivência, são todos determinados pela natureza. Esse distanciamento humano frente ao mundo natural faz a realidade revestir-se de simbolismo e produz a emergência transcendental do imaginário.
Do
interesse pelo fogo produzido pelo relâmpago nasce o
conhecimento que desperta a consciência. Voltada sobre si mesma, a
consciência humana sabe que sabe, enquanto os animais sabem, mas
ignoram a reflexão. Através do símbolo e do significado, o ser
humano se relaciona com a natureza, consigo mesmo, com os
semelhantes e com Deus.
Nasce a cultura, o toque humano que
faz do natural, arte. A vida social ganha contornos definidos e
explicações categóricas. Do domínio das forças arbitrárias da
natureza chega-se às armas que permitem a imposição de um grupo
cultural sobre o outro. Porém, cultura é identidade e, portanto,
resistência. Mesmo assim, a absolutização de sistemas
ideológicos oferece o paraíso e induz o dominado a sentir-se
excluído por não pensar pela cabeça alheia.
No Brasil colônia, os métodos de catequese cristã introduziam entre os indígenas o vírus da desagregação e, hoje, os donos de garimpos, madeireiras e empresas do agronegócio se perguntam, perplexos, por que os povos indígenas necessitam de tanta terra se nada produzem...
Os pentecostais
fundamentalistas atacam os umbandistas e certos setores da Igreja
cristã olham com solene desprezo o candomblé, como se seus fiéis
ainda estivessem naquele estágio primitivo da consciência
religiosa que não lhes permite desfrutar a beleza do canto
gregoriano ou a ortodoxia teológica da Universidade
Gregoriana de Roma.
A queda dos governos dos países
socialistas do Leste europeu assinala, não o fim do socialismo,
como propaga a mídia capitalista, mas sim da absolutização de
sistemas ideológicos. Desabam, com a herança estalinista, todas
as estratégias de hegemonização da cultura, e a própria ideia
de "evolução cultural". Não há culturas superiores, há culturas
distintas. Agonizam as versões totalizadoras em todos os
terrenos da produção de sentido - político, econômico e
religioso.
Quem pretender ignorar os sinais
dos tempos terá de apelar ao autoritarismo para infundir temor.
Sabemos agora que mesmo na América Latina não há uma cultura única,
mas uma multiplicidade de culturas - indígena, negra, branca,
sincrética - que se explicam por seus próprios fatores internos.
Essa polissemia de sistemas de sentido é uma riqueza, embora
ameace o poder daqueles que imaginavam restaurar a uniformização
medieval.
A mais de 500 anos da chegada de Colombo às
Américas - uma invasão genocida que alguns chamam de "encontro de
culturas" - convém relembrar esses conceitos antropológicos. E,
hoje, a democracia impregna também a cultura. Cada homem e mulher,
grupo étnico ou racial, descobre que pode ser produtor do próprio
sentido de sua vida. O difícil é respeitar isso como valor,
sobretudo nós, cristãos, que ainda não sabemos distinguir Jesus
Cristo do arcabouço judaico e greco-romano que o reveste e tanto
favorece o eurocentrismo eclesiástico.
Felizmente,
o próprio Jesus nos ensina a diferença entre imposição e
revelação. Impõe-se ao perverter a natureza do poder (Mateus 23,
1-12). Mas revelação significa "tirar o véu": ser capaz de captar os
fragmentos culturais de cada povo e reconhecer as primícias
evangélicas aí contidas, como afirmou o Concílio Vaticano II.
Aliás, Deus não fala latim. Prefere a linguagem do amor e da justiça. E esse dialeto toda cultura incorpora e entende.
*Frade dominicano. Escritor. Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Fonte: https://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/15511-democracia-cultural
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