quarta-feira, 12 de julho de 2023

Democracia cultural

Frei Betto*

Multiculturalismo na escola – Colégio Oswald de Andrade
 

 "Os pen­te­cos­tais fun­da­men­ta­listas atacam os um­ban­distas e 
certos se­tores da Igreja cristã olham com so­lene des­prezo o can­domblé, 
como se seus fiéis ainda es­ti­vessem na­quele es­tágio pri­mi­tivo da cons­ci­ência re­li­giosa 
que não lhes per­mite des­frutar a be­leza do canto gre­go­riano ou a or­to­doxia 
te­o­ló­gica da Uni­ver­si­dade Gre­go­riana de Roma."

 

O homem e a mu­lher são os únicos seres vivos que se con­tra­põem à na­tu­reza. Os de­mais, das abe­lhas ar­qui­tetas aos ma­cacos afri­canos que or­denam seus re­cursos de so­bre­vi­vência, são todos de­ter­mi­nados pela na­tu­reza. Esse dis­tan­ci­a­mento hu­mano frente ao mundo na­tural faz a re­a­li­dade re­vestir-se de sim­bo­lismo e produz a emer­gência trans­cen­dental do ima­gi­nário.

Do in­te­resse pelo fogo pro­du­zido pelo re­lâm­pago nasce o co­nhe­ci­mento que des­perta a cons­ci­ência. Vol­tada sobre si mesma, a cons­ci­ência hu­mana sabe que sabe, en­quanto os ani­mais sabem, mas ig­noram a re­flexão. Através do sím­bolo e do sig­ni­fi­cado, o ser hu­mano se re­la­ciona com a na­tu­reza, con­sigo mesmo, com os se­me­lhantes e com Deus.

Nasce a cul­tura, o toque hu­mano que faz do na­tural, arte. A vida so­cial ganha con­tornos de­fi­nidos e ex­pli­ca­ções ca­te­gó­ricas. Do do­mínio das forças ar­bi­trá­rias da na­tu­reza chega-se às armas que per­mitem a im­po­sição de um grupo cul­tural sobre o outro. Porém, cul­tura é iden­ti­dade e, por­tanto, re­sis­tência. Mesmo assim, a ab­so­lu­ti­zação de sis­temas ide­o­ló­gicos ofe­rece o pa­raíso e induz o do­mi­nado a sentir-se ex­cluído por não pensar pela ca­beça alheia.

No Brasil colônia, os mé­todos de ca­te­quese cristã in­tro­du­ziam entre os in­dí­genas o vírus da de­sa­gre­gação e, hoje, os donos de ga­rimpos, ma­dei­reiras e em­presas do agro­ne­gócio se per­guntam, per­plexos, por que os povos in­dí­genas ne­ces­sitam de tanta terra se nada pro­duzem...

Os pen­te­cos­tais fun­da­men­ta­listas atacam os um­ban­distas e certos se­tores da Igreja cristã olham com so­lene des­prezo o can­domblé, como se seus fiéis ainda es­ti­vessem na­quele es­tágio pri­mi­tivo da cons­ci­ência re­li­giosa que não lhes per­mite des­frutar a be­leza do canto gre­go­riano ou a or­to­doxia te­o­ló­gica da Uni­ver­si­dade Gre­go­riana de Roma.

A queda dos go­vernos dos países so­ci­a­listas do Leste eu­ropeu as­si­nala, não o fim do so­ci­a­lismo, como pro­paga a mídia ca­pi­ta­lista, mas sim da ab­so­lu­ti­zação de sis­temas ide­o­ló­gicos. De­sabam, com a he­rança es­ta­li­nista, todas as es­tra­té­gias de he­ge­mo­ni­zação da cul­tura, e a pró­pria ideia de "evo­lução cul­tural". Não há cul­turas su­pe­ri­ores, há cul­turas dis­tintas. Ago­nizam as ver­sões to­ta­li­za­doras em todos os ter­renos da pro­dução de sen­tido - po­lí­tico, econô­mico e re­li­gioso.

Quem pre­tender ig­norar os si­nais dos tempos terá de apelar ao au­to­ri­ta­rismo para in­fundir temor. Sa­bemos agora que mesmo na Amé­rica La­tina não há uma cul­tura única, mas uma mul­ti­pli­ci­dade de cul­turas - in­dí­gena, negra, branca, sin­cré­tica - que se ex­plicam por seus pró­prios fa­tores in­ternos. Essa po­lis­semia de sis­temas de sen­tido é uma ri­queza, em­bora ameace o poder da­queles que ima­gi­navam res­taurar a uni­for­mi­zação me­di­eval.

A mais de 500 anos da che­gada de Co­lombo às Amé­ricas - uma in­vasão ge­no­cida que al­guns chamam de "en­contro de cul­turas" - convém re­lem­brar esses con­ceitos an­tro­po­ló­gicos. E, hoje, a de­mo­cracia im­pregna também a cul­tura. Cada homem e mu­lher, grupo ét­nico ou ra­cial, des­cobre que pode ser pro­dutor do pró­prio sen­tido de sua vida. O di­fícil é res­peitar isso como valor, so­bre­tudo nós, cris­tãos, que ainda não sa­bemos dis­tin­guir Jesus Cristo do ar­ca­bouço ju­daico e greco-ro­mano que o re­veste e tanto fa­vo­rece o eu­ro­cen­trismo ecle­siás­tico.

Fe­liz­mente, o pró­prio Jesus nos en­sina a di­fe­rença entre im­po­sição e re­ve­lação. Impõe-se ao per­verter a na­tu­reza do poder (Ma­teus 23, 1-12). Mas re­ve­lação sig­ni­fica "tirar o véu": ser capaz de captar os frag­mentos cul­tu­rais de cada povo e re­co­nhecer as pri­mí­cias evan­gé­licas aí con­tidas, como afirmou o Con­cílio Va­ti­cano II.

Aliás, Deus não fala latim. Pre­fere a lin­guagem do amor e da jus­tiça. E esse di­a­leto toda cul­tura in­cor­pora e en­tende.

*Frade dominicano. Escritor.  Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

Fonte: https://correiocidadania.com.br/2-uncategorised/15511-democracia-cultural

Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")
Assessor de movimentos sociais. Autor de 53 livros, editados no Brasil e no exterior, ganhou por duas vezes o prêmio Jabuti (1982, com "Batismo de Sangue", e 2005, com "Típicos Tipos")

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