Por Ronaldo Lemos*
Ambição maior pelo pirata é sintoma da erosão da autenticidade e da autoria
"Dupe". Se você está ativo no TikTok ou no Instagram, esse termo provavelmente já apareceu no seu feed.
Um "dupe" é uma cópia de um produto — uma tentativa de replicar ou substituir um item mais caro ou de luxo. Com preços em geral inferiores aos originais, os "dupes" (diminutivo de "duplicação") tornaram-se uma febre entre os usuários das redes sociais, especialmente entre a Geração Z.
O que antes era visto como pirataria deslavada, inclusive infringindo direitos de propriedade intelectual, agora tem se tornado objeto de culto especialmente entre quem tem de 16 a 30 anos. Uma mudança cultural curiosa.
Muita gente hoje ambiciona ter mais o pirata do que o original. Entre os apreciadores de "dupes", há uma busca por diferenciar a qualidade das falsificações.
Nas redes sociais, há especialistas em "dupes" que analisam se as costuras de uma falsificação foram feitas em ponto atrás, mais sofisticado, em vez de ponto corrido, mais comum, e assim por diante. Surgiu assim o fenômeno das "cópias de colecionador", que ambicionam ser superiores aos originais.
O fenômeno dos "dupes" não se restringe ao universo online ou à informalidade das ruas. Grandes lojas, como a Ikea, oferecem cópias de móveis de design renomado por preços bem mais acessíveis.
Marcas de fast fashion replicam os modelos das grifes de luxo e, por sua vez, são copiadas pelos fabricantes de dupes. E essa lógica se estende a diferentes segmentos: perfumes, maquiagens, acessórios, eletrônicos e mais. O que antes era vergonha vai virando ostentação.
Essa explosão do culto às réplicas é sintoma de um fenômeno mais profundo e inquietante: a erosão da autenticidade e da autoria. Com a chegada das ferramentas de inteligência artificial, esse processo só se acelerou. Hoje, há empresas que criam cópias digitais de nós mesmos com base nos dados que geramos, como textos, vídeos e fotos. Essas réplicas podem ser usadas em ligações de Zoom, vídeos nas redes sociais e até para responder a emails com nosso estilo próprio.
A normalização das "deepfakes" é outro exemplo desse fenômeno. Recentemente, o Conar abriu um processo ético em relação ao comercial em que aparece uma réplica ("dupe"?) de Elis Regina cantando a célebre canção de Belchior. Esse mesmo recurso está sendo usado em Hollywood para rejuvenescer atores e até ressuscitar os que já faleceram.
Em outras palavras, estamos entrando na sociedade dos "dupes" de pessoas, incluindo nós mesmos.
A lógica pode se tornar a mesma dos produtos piratas vendidos no chão das cidades. Cópias nossas ou de outras pessoas proliferando sem controle, diluindo a ideia de identidade. Esse é mais um sintoma da "grande ruptura". Toda criação intelectual e cultural se transforma em matéria-prima a ser reprocessada em conteúdos desacoplados do seu sentido original.
Neste momento estamos encantados com a multiplicação das réplicas. É um efeito parecido com a origem do cinema, quando as pessoas saíam correndo das salas quando viam a imagem de um trem se aproximando na tela. Mas o encanto vai passar. Quando isso acontecer, a réplica poderá ter tomado o lugar e a função do original.
Já era A necessidade de autenticidade para ostentar luxo
Já é A explosão do culto às réplicas e "dupes" na moda e além
Já vem A proliferação das réplicas de pessoas, diluindo a ideia de identidade
* Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ronaldolemos/2023/07/dupes-e-o-culto-ao-falsificado-chic.shtml 16/07/2023
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