Paulo Rebêlo*
| julho 2023
A morte de Milan Kundera, em 11 de julho de 2023, me trouxe à memória o quanto ele detestou a adaptação americana de A Insustentável Leveza de Ser (The Unbearable Lightness of Being), filme de 1988 baseado em seu livro de 1984.
Parece óbvio que adaptações de livro não funcionem muito bem. Mesmo assim, na época a informação me pegou de surpresa e nunca fez sentido para mim. Sempre achei o filme incrível, além de ter uma das melhores fotografias que já vi no cinema. Mas procurar sentido nas coisas que não fazem sentido é justamente tudo que Kundera sempre escreveu, então talvez faça um pouco de sentido, afinal.
Kundera ficou tão insatisfeito, mas tão insatisfeito, a ponto de nunca mais se envolver em nenhuma adaptação. Talvez seja informação inútil e certamente é notícia velha, mas na época foi uma frustração imensa saber que ele odiou o filme que sempre esteve no topo da minha lista de obras primas do cinema, dividindo o pódio com Dersu Uzala, a versão de Akira Kurosawa em 1975; As Pontes de Madison (The Bridges of Madison County), de Clint Eastwood em 1995; Hana-Bi, de Takeshi Kitano em 1997; El Secreto de Sus Ojos (O Segredo dos Seus Olhos), de Juan José Campanella em 2009.
Quando cheguei no Leste Europeu, na metade da década de 2000, pude finalmente entender melhor, e sentir um pouco na pele, o quanto Kundera era idolatrado no ex-bloco comunista. Quando mais jovem, os escritos dele alimentaram minha curiosidade sobre a região e, anos depois, se tornaram uma das principais razões que me levaram a passar um longo tempo em Budapeste, capital da Hungria, estrategicamente localizada no miolo da Europa Central e com fronteiras para a maioria dos países do Leste.
Também me surpreendeu que, apesar de idolatrado em toda a Europa, ele não era uma assumidade em seu país de origem, a Checoslováquia, hoje República Tcheca. Há algumas razões para isso, depois entendi melhor, mas sempre me pareceu uma controvérsia similar a se Portugal renegasse José Saramago, por exemplo. A Eslováquia também se tornou independente e a capital, Bratislava, é um lugar que muito me cativou e vez por outra escrevi nas minhas crônicas ranzinzas. Aliás, Bratislava também é o título de um capítulo do PENSE GORDO, tem muitas memórias sobre o Leste Europeu nesse meu livrinho.
Minha frustração pelo desprezo de Kundera continua presente, porque A Insustentável Leveza de Ser não envelhece, permanece lindo, roteiro incrível, ambientação majestosa, fotografia perfeita, com atuações maravilhosas que entraram para a história do cinema e cravaram tantas verdades humanas na minha memória — a qual boa parte deles só fui entender (e viver) anos depois.
Aqui na América Latina, a maioria das pessoas só ouviu falar em Milan Kundera por causa do filme de 1988. Eu fui um deles. Ainda demorei bastante, porque em 1988 eu evidentemente não tinha como captar (e entender) a imensa quantidade de sutilezas e belezas desse filme e nem dos livros de Kundera. Quando assisti pela segunda vez, em meados dos anos 1990, é que entendi um pouco melhor de onde vinha aquilo tudo, aquela avalanche de sentimentos sobre peso e leveza, então fui procurar a origem.
O filme também levou ao estrelato à insuperável Juliette Binoche, no papel de Tereza, uma garçonete entediada pela falta de estímulo intelectual, pela ausência de um mínimo de neurônios para conversar e pela busca de um “amor de verdade” para mergulhar de cabeça como se não houvesse amanhã. Essas francesas tiram qualquer um do sério.
Tereza sempre me parece tão atual e cada vez mais presente entre as pessoas que nos cercam. Ninguém nunca conseguiu representar tão bem essa espécie de “medo de retorno à ignorância” quanto a Tereza de Kundera, no livro e no filme. E a cena da dança na taberna? São poucos minutos que equivalem a vários anos de compreensão humana. É para ficar revendo várias vezes.
Ainda hoje, muitas pessoas têm uma impressão errada sobre o filme. Porque até meados dos anos 1990, a gente ainda era refém de várias restrições de mercado, logística e distribuição, então era comum os filmes chegarem no Brasil em versões cortadas ou versões “adaptadas”, que depois sofriam ainda mais cortes quando iam para televisão. Foi o caso de A Insustentável Leveza de Ser.
Primeiro, pelo erro de tradução: o correto é “leveza DE ser” e não “leveza DO ser”, como foi traduzido e até hoje, 35 anos depois, continua sendo escrito errado. Essa sutileza faz uma diferença enorme quando você mergulha nos sentimentos de Tereza e no livro de Kundera. Segundo, pela nada sutil redução de quase uma hora no filme que a maioria assistiu em videocassete (VCR). O corte original tem quase 3 horas de duração (2h50), mas a versão “adaptada” tem 50 minutos a menos. Em termos de narrativa, é outro filme. Muda bastante seu olhar sobre o resultado final e entrelaça o roteiro de um jeito perfeito.
É verdade que também tem muita coisa, nas obras de Kundera, que muitos leitores não gostam, talvez por achar estranho. Kundera sempre escreveu essencialmente sobre a completa falta de lógica nas relações humanas e na falta ainda maior de sentido em tentar extrair, justamente, alguma lógica sobre nossas ações e relações. Enquanto as pessoas estão sempre procurando respostas e motivos para as traições conjugais, por exemplo, Kundera mostrava o quão inútil é essa busca, eternamente fadada ao fracasso e frustração. Tanto a traição, quanto a paixão, nunca fizeram o menor sentido porque não precisam de motivo para ocorrer, contrariando o romantismo ocidental (e talvez terapêutico?) de que precisamos ter motivos ou razões para tudo.
Não tem sentido porque é assim que a gente é. E talvez por isso eu tenha sido fisgado tão cedo pelas palavras de Kundera, por enxergar esse fracasso de querer procurar sentido ou razão no que as pessoas fazem com quem dizem amar. É muito difícil levar isso para as palavras e mais difícil ainda é fazer você sentir e entender esse sentimento através da escrita. O que muita gente acha loucura em algumas passagens dos livros de Kundera — e por tabela na vida de outras pessoas — sempre foi claro como a luz do dia e óbvio como 1+1 sempre vai ser igual a 3 nas relações humanas. O problema é que a gente é programado a vida inteira para procurar sentido, a exemplo de Tereza. E aí começa um ciclo infinito de lamentações e frustrações, até ficar insustentável qualquer tipo de convivência, com o perdão do trocadilho.
É exatamente o peso que tantas Terezas e Terezos carregam na vida.
Tereza passa a vida inteira tentando compreender esse sentimento que a deixa aflita e a faz duvidar de sua própria existência. É o extremo oposto de Sabina (Lena Olin) que sempre soube, cultivou e viveu ciente do fracasso de qualquer peso e consciente de sua própria leveza, enquanto Tomás, o personagem principal, talvez seja o espelho da maioria de nós: não pensamos sobre o assunto, apenas vivemos nossa própria humanidade e sobrevivemos ao fluxo dos acontecimentos que a gente nunca escolhe muito bem.
FOTO EM DESTAQUE
Janeiro de 2007.
Um café em Praga, República Tcheca.
Sony a100 | 18mm | f/3.5 / | ISO 400
* Sou originalmente da área de tecnologia (programação, código, sistemas, hardware), depois migrei e trabalhei como jornalista entre 1997 e 2016, sempre entre jornais, revistas e internet; e na maior parte do tempo cobrindo política, tecnologia e desenvolvimento social. Dou palestras desde 1998, cursos e treinamentos diversos desde 2003.
Fonte: https://rebelo.org/cronicas/terezas-kundera/ 18/07/2023
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