Por Roberto Cetera
«Temos medo de levar a carne de Cristo até às últimas consequências. É mais fácil ter uma piedade espiritualista, uma piedade de matizes; mas entrar na lógica da carne de Cristo, é difícil!». Estas poucas palavras do Papa Francisco são suficientes para restituir o sentido profundo do conceito teológico de carne. Não é por acaso: a carne, entendida como corpo e terra, é uma das pedras angulares do ensinamento do Pontífice. Pedimos a Giovanni Cesare Pagazzi, professor de teologia e estética, que nos explicasse melhor esta centralidade, remontando às origens desta reflexão.
Monsenhor Pagazzi, porque considera o tema da carne central na teologia do Papa Francisco?
Porque é frequente no seu magistério, como era já nas suas homilias como arcebispo de Buenos Aires. É a centelha de muitas das suas imagens, a nota na qual se afinam os diferentes instrumentos musicais do Credo. Um exemplo: para perceber algo da ressurreição de Jesus e da nossa, para imaginar o Paraíso, para Francisco é necessário entrar na «lógica da carne de Cristo», na «lógica da carne». O Santo Padre fala de uma «doutrina da carne», cujo desrespeito «desencarna a Igreja», talvez em nome de «uma piedade espiritualista», alimentada pelo «medo da carne». E ainda: «A fé na ressurreição da carne é a raiz mais profunda das obras de misericórdia». Por isso, dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede... é outra forma de confessar: «Espero a ressurreição dos mortos e a vida do mundo que há de vir. Amém». A insistência de Francisco nas obras de misericórdia tem pouco a ver com filantropismo genérico. De facto, deriva do respeito pela carne destinada à ressurreição. Assim, o não misericordioso não é simplesmente egoísta; antes, é alguém que acredita menos de quanto presume na ressurreição dos mortos.
A realidade teândrica tem sido o motivo de grandes heresias. No entanto, o senhor inverte o pensamento comum de que o primeiro desafio ao mistério de Cristo dizia respeito à sua divindade, afirmando, ao contrário, que foi o gnosticismo que sacrificou a carne de Cristo, a sua humanidade, desde o início.
Na realidade, este é um dado histórico — teológica e espiritualmente muito relevante — comummente aceite pelos estudiosos. O primeiro grande ataque à verdade do Evangelho não foi a negação da divindade de Jesus, como aconteceu durante a crise ariana, mas a desvalorização da humanidade do Filho de Deus, como se a sua carne fosse apenas uma aparência, um instrumento a abater logo após o uso, uma concessão temporária à matéria, que de qualquer modo não tocava minimamente a identidade divina. Contra esta falsidade lutaram Inácio de Antioquia, especialmente Ireneu de Lião (proclamado Doutor da Igreja precisamente pelo Papa Francisco) e Tertuliano.
Em que sentido a carne continua a ser aviltada no discurso sobre Deus?
Por exemplo, afastando a fé do que é visível, tangível, sensível. Imaginando-a como indo “adiante”, “mais além”, “nas profundezas”, “atrás” de tudo o que aparece. Mas o que aparece é obra do Criador. Ele deve ter querido dar-nos, dizer-nos, mostrar-nos alguma coisa graças a este abençoado mundo sensível!
O senhor releva, no pensamento de Francisco, uma distinção necessária entre a carne e o corpo, e também uma ligação entre a terra e o corpo através da carne. Pode explicar melhor?
Comecemos pela segunda pergunta. Falando da Criação, Francisco (e o então cardeal Bergoglio) refere-se à carne como o único plasma que liga o homem e o mundo. Nisto ecoa o parentesco que se entrevê na Bíblia, entre Adam (o terroso) e a adamá (a terra) de onde foi tirado. Ele afirma: «A terra é o nosso corpo. Também nós somos a terra»; «somos terra que caminha». No homem e na mulher, a carne — a terra — torna-se corpo, necessidades, respiração, linguagem, sensibilidade, emoção, voz, palavra, inteligência, gesto e cultura. Corpo e mundo são uma só carne; por isso, Francisco descreve a desertificação «como uma doença» e a extinção de uma espécie «como uma mutilação». Sobre a distinção que Francisco faz entre carne e corpo: por que ela é tão requintada e importante? Porque se a carne coincidisse com o corpo, teríamos uma edição renovada do dualismo moderno entre “sujeito” e “objeto”: de um lado estaria o corpo, do outro o mundo. Duas realidades autónomas por direito próprio, de modo que seria necessário conceber formas artificiais de as unir, dando razão ora a uma, ora a outra. Não. O corpo e o mundo já estão ligados antes de se colocar a questão. A carne, o único plasma que os compõe, liga-os desde a sua origem. Pensar que são independentes e autossuficientes significa não ver como as coisas são. «Ninguém separe o que Deus uniu» (Mt 19, 6).
Por que na sua opinião um princípio de transcendência do humano se exprime nas necessidades do corpo?
Antes de mais, a fome e a sede são uma manifestação especial da carne, o elo entre o corpo e o mundo. De facto, o nosso corpo come e bebe as coisas do mundo porque lhe são consubstanciais. Ora, é precisamente na experiência carnal da fome e da sede que se dá a gramática elementar da transcendência. O corpo faminto e sedento, sentindo-se ele mesmo, já deseja outra coisa, já pensa noutra coisa: no pão e na água, realidades que lhe são exteriores, diferentes dele e, no entanto, necessárias e vitais para ele. “Externo”, “diferente”, “necessário”, “vital”, são as primeiras palavras da transcendência... e todas elas são tão carnais como a fome e a sede. Não é por acaso que Cristo se designa a si mesmo como o Pão e descreve a vontade do Pai como o seu alimento.
Jesus exprime frequentemente estas necessidades nos Evangelhos. O Papa Bergoglio parece particularmente fascinado pela necessidade que o Ressuscitado tem de comer.
A propósito, Francisco proferiu duas homilias deslumbrantes. Uma como arcebispo de Buenos Aires e outra como Papa. Explica a aparição, infelizmente pouco comentada, do Ressuscitado, a seguir à que fez aos discípulos de Emaús (Lc 24, 36-47). É uma cena pouco comentada, talvez por ser demasiado carnal? Aparecendo, Cristo pede para ser tocado, para convencer os discípulos de que não é um fantasma, mas «carne e osso». Vendo a falta de reação dos discípulos, Jesus pede algo para comer. Dão-lhe um peixe assado e o Ressuscitado come-o à frente deles. Francisco reage com palavras encantadas, ousadas, palavras que não se ouviam há muito, muito tempo. Se o Ressuscitado come, é carne de verdade. Se o Ressuscitado come, não quer desligar-se deste mundo trágico e magnífico. Se o Ressuscitado come, há também uma forma totalmente carnal de o encontrar: honrar a fome e a sede dos seus irmãos mais pequeninos.
No âmbito do corpo, Francisco atribui um significado, diria ontológico, às mãos, ao tocar, ao tato.
Considero que este seja um dos legados teológicos mais promissores do seu pontificado. Francisco subverte a hierarquia dos sentidos da Revelação e da fé. Normalmente, os primeiros lugares são ocupados pela audição/ouvido e pela visão/contemplação. Em último lugar está o tato, considerado o sentido mais grosseiro. Diz-se que o tato foi criticado até por Jesus, em detrimento de Madalena e do apóstolo Tomé. Temos a certeza disto? Então por que, no Evangelho de Lucas, o próprio Ressuscitado pede para ser tocado e toca ele mesmo na comida que vai comer? Por que, no Evangelho de Mateus, as mulheres abraçam os pés do Ressuscitado e ele deixa-as abraçar? Para Francisco, sem dúvida, o tato é o sentido fundamental da Revelação e da fé. Isso também é evidente na importância que ele atribui à força evangelizadora da piedade popular. Ela não se contenta com um Deus que se ouve e que se vê, mas deseja também um Deus que se toca (um lugar, uma imagem, uma relíquia...). O tato exprime a reciprocidade típica de qualquer vínculo: o tato é sempre um contacto. Dá uma sensação de certeza: uma coisa tangível não engana. O tato é o antídoto contra a preguiça, a tentação de não estar aqui e agora, mas sim para a frente ou para trás no espaço ou no tempo. Nem a visão nem a audição protegem completamente contra a acédia, favorecendo as ilusões óticas e acústicas que idealizam o passado ou o futuro. Para tocar alguém ou alguma coisa, aquele que toca e aquele que é tocado devem estar presentes um para o outro: aqui, agora. Ao contrário dos outros sentidos, o tato está espalhado por todo o corpo. Habita não só a posição imponente do rosto e da cabeça, mas também a baixeza dos pés, enquanto vibra na agilidade tão humana e apenas humana das mãos. As mãos estão sempre em contacto com as coisas (eis de novo a carne!). O tato é tão primordial e sintético que descreve o estilo de uma pessoa, a sua qualidade de experiência, o seu empenho e a sua missão. De facto, há homens e mulheres “com tato” ou “sem tato algum”. Uma alusão ao “toque” inconfundível de um artista. Fazem-se experiências tocantes, ou que absolutamente não tocam. Quanto é tocante, mais cedo ou mais tarde, toca-me como uma tarefa: “Agora toca a mim! Se não se é tocado por nada nem por ninguém, se realmente não se toca em nada nem em ninguém, nunca tocará a mim, mas sempre aos outros. O Papa Francisco colhe precisamente no tato o sentido mais espiritual, porque é mais do que todo o sentido das coisas, o sentido da realidade e, como recordou desde o início do seu pontificado, «a realidade é superior à ideia».
Roberto Cetera
Fonte: https://www.osservatoreromano.va/pt/news/2023-06/por-025/o-verdadeiro-fundamento-da-mensagem-evangelica.html
Nenhum comentário:
Postar um comentário