Por José de Souza Martins*
— Foto: Carvall
Em dias recentes, por maioria de votos, “o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) declarou a inelegibilidade do ex-presidente da República Jair Bolsonaro por oito anos (...) pela prática de abuso de poder político e uso indevido dos meios de comunicação durante reunião realizada no Palácio da Alvorada com embaixadores estrangeiros no dia 18 de julho” de 2022. O caso foi suscitado pelo PDT.
Em seu relatório, o juiz relator, ministro Benedito Gonçalves, ressaltou conexões do ato do primeiro investigado que configuram “conduta ilícita em benefício de sua candidatura à reeleição”. Eleição tem regras. O candidato não é o fulano, mas a personificação do que na lei o candidato pode ser.
Pode-se dizer que o conjunto dos indicadores que levaram à decisão do TSE expõe o sentido antidemocrático de extenso conjunto de posturas e ações não só do primeiro investigado. Mas, em interpretação sociológica, de sua personificação do difuso coletivo de inspiração autoritária de que foi e tem sido ele agente e porta-voz.
O tempo todo, desde sua posse como governante, um poder invisível se mostrou por trás das irracionalidades do seu modo de governar. Do qual ele foi protagonista eventual e malsucedido.
O grande problema nos sistemas políticos suscetíveis a manipulação, como aconteceu no período governamental recente, é que os seus reais sujeitos ocultam-se na invisibilidade de que carecem para falar e agir através de quem se preste a representá-los. Quando acontece do protagonista visível ser acusado e julgado, os invisíveis não têm a materialidade que os arraste à barra dos tribunais para que respondam pelo ilícito como coadjuvantes e mesmo como coautores.
Justamente por isso, nem bem terminara a longa sessão do Tribunal, já se moviam os pescadores de águas turvas para encontrar a figura substituta que ocupe o lugar do banido e tentar colher os frutos políticos da mentira, do engano proposital, dos falsos conceitos, da estigmatização dos adversários para fazer da próxima eleição presidencial a falcatrua que restaure essa modalidade de poder.
No marco do que é próprio do contexto e das leis aplicáveis no caso, o julgamento do TSE tratou do que era tópico da conjuntura política. Mas não foi chamado a tratar das invisibilidades do caso, que em suas consequências e desdobramentos, esse mesmo julgamento acabará mostrando.
O voto de um dos ministros foi revelador de quanto o nosso direito eleitoral pode conter o direito e o avesso que deixam para um imaginário político alternativo as bases de nossas incertezas nas questões do poder. O que deveria ser reto e simples acaba se tornando complicado e barroco nos retorcimentos de possibilidades de interpretação das leis e da própria Constituição de 1988.
Aquele duvidoso artigo 242 tem reinado nos dilemas de interpretação como uma concreta e indevida ameaça anticonstitucional e antidemocrática no corpo da lei maior. Indício, nela, de uma cultura política de ressalvas para relativizar e mesmo anular os valores e princípios na Constituição contidos.
Expressão dessa cultura impugnativa foi o fato de que antes mesmo do TSE ter finalizado a votação da inelegibilidade do primeiro investigado, já na Câmara dos Deputados mais de 60 parlamentares se movimentavam no sentido de propor a anistia política do eventual condenado. O Estado brasileiro repousa sobre o tripé de Executivo, Legislativo e Judiciário.
Essa iniciativa é tão golpista quanto a que o TSE estava julgando naquele mesmo momento. Uma ação para propor e instrumentalizar ato de um dos poderes e anular a função e a legitimidade de outro poder, antes mesmo delas se configurarem. O que, de fato, indica que o crime julgado pelo TSE não estava concluído, mas era crime em andamento, cujos cúmplices não eram apenas os invisíveis a que aludi, mas tem nome, endereço e posição na estrutura de poder.
Aparentemente, o Estado brasileiro corre o risco de sua conversão funcional de instituição baseada não no princípio da representação política, mas num sistema de cumplicidades antidemocráticas, que expressam não a vontade do povo, mas a de minorias obscurantistas.
Uma característica que perdura desde tempos recuados, desde a Proclamação da República por meio de um golpe de Estado antirrepublicano e antidemocrático. Tudo mudou na história republicana brasileira para que tudo permaneça na mesma, como na Sicília de Lampedusa, como sugere Tancredi ao tio, em “O leopardo”.
O julgamento do TSE, nessa perspectiva, é o julgamento e condenação de uma das peças desse bloqueio. A sentença condenatória do primeiro investigado condena o arcaísmo que ele representa, não só antidemocrático, mas também antipolítico.
José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de "As duas mortes de Francisca Júlia - A Semana de Arte Moderna antes da semana" (Editora Unesp, 2022).
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/jose-de-souza-martins-o-reu-invisivel-nao-foi-julgado.ghtml 07/07/2023
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