sábado, 22 de julho de 2023

A feliz falência da máquina de fazer miseráveis

Gabriel Leite Mota *

 

Getty Images

Quando se ouve dizer que é muito difícil encontrar gente para trabalhar nas obras, nos trabalhos domésticos, na restauração ou no turismo e demais profissões mal pagas, a nossa reacção devia ser de celebração: é um sintoma de progresso

Thomas Malthus foi um economista do séc. XIX cuja imagem histórica ficou marcada por uma previsão muito errada. Segundo ele, e apesar de ser contemporâneo da Revolução Industrial, a humanidade não conseguiria escapar a uma condição de miséria material: sempre que as condições materiais per capita aumentassem, a seguir, a população aumentaria numa proporção maior, o que ditaria a redução dessas condições materiais per capita, de volta ao ponto de partida.

O que o século XIX e, principalmente, o séc. XX demonstram foi que, à escala mundial, é possível aumentar, sustentadamente e per capita, as condições materiais de vida. De facto, Malthus não conseguiu antever que:

1. A produção, graças aos aumentos continuados da produtividade, crescesse a um ritmo superior ao aumento da população;

2. Que a humanidade inventasse a pílula anticoncepcional, que fez com que se conseguisse desligar o aumento da abundância material do aumento da taxa de natalidade.

Chegados ao século XXI, as previsões apontam para o seguinte: o PIB per capita do mundo continuará a aumentar, enquanto a população mundial atingirá um pico, após o qual deixará de crescer. Se juntarmos a isto a progressiva globalização do progresso tecnológico, que tem tirado milhões da miséria (nomeadamente na China e na Índia), podemos dizer que estamos a assistir à progressiva, mas bendita, falência da máquina de fazer miseráveis. Esta afirmação pode parecer contraditória com a existência de tantos miseráveis no mundo, que, no caso africano, se manifesta, por exemplo, nas trágicas travessias do Mediterrâneo em busca da prosperidade europeia. É também facto que se mantêm múltiplas bolsas de miséria nos países ricos. Mas a tendência será a seguinte: menos pobres absolutos, menos nascimentos. A queda da natalidade, em particular, é decisiva para este processo: se nascerem cada vez menos pessoas nas bolsas da pobreza, paramos de alimentar a fonte da miséria. Aliás, há um fenómeno de que todos falam, e do qual muitos se queixam, que é uma consequência directa desta tendência: não há gente para trabalhar!

Quando se ouve dizer que é muito difícil encontrar gente para trabalhar nas obras, nos trabalhos domésticos, na restauração ou no turismo e demais profissões mal pagas, a nossa reacção devia ser de celebração: é um sintoma de progresso. A verdade é que uma parte da humanidade está muito mal-habituada: primeiro, construíram-se impérios à custa dos escravos; depois, alimentou-se a Revolução Industrial e a globalização à custa de mão-de-obra quase escrava (muito mal paga e com péssimas condições de trabalho). Basta começarem a nascer cada vez menos pessoas nos países pobres (é ver as taxas de fertilidade de países como a China, a Índia, a Indonésia ou o Brasil) para que seja cada vez mais difícil continuar a manter a máquina produtiva graças a pessoas dispostas a fazer qualquer trabalho a qualquer preço. Obviamente que a desigualdade, as ditaduras ou a áfrica subsaariana ainda vão chegando para manter viva a máquina de fazer miseráveis. Mas a sua feliz falência nunca esteve tão perto.


*Gabriel Leite Mota é o primeiro e único economista português doutorado em Economia da Felicidade (Faculdade de Economia da Universidade do Porto, 2010). Investiga as relações entre economia e felicidade desde 2004 e divulga e ensina a temática desde 2010. Participa em conferências internacionais sobre o tema desde 2005. Já leccionou na Católica Porto Business School, na Faculdade de Economia da Universidade do Porto, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (onde criou a primeira unidade curricular em Portugal sobre Economia, Política e Felicidade) e na Universidade da Madeira (onde criou a primeira disciplina de Economia da Felicidade numa licenciatura em economia em Portugal). Actualmente é Professor de Economia no Instituto Superior de Serviço Social do Porto. Tem mais de centena e meia de artigos publicados em jornais portugueses (Público, Jornal Económico, Jornal de Letras). É praticante de Karate desde os 6 anos e instrutor desde os 18. Defensor do humanismo, acredita que a felicidade é o que faz a vida valer a pena.

Fonte: https://visao.pt/opiniao/da-economia-com-felicidade/2023-07-18-a-feliz-falencia-da-maquina-de-fazer-miseraveis/?utm_term=VIS%3F%3F%3F%3FO+PLUS%3A+Videos%2C+podcasts%2C+fotogalerias.+O+melhor+da+nossa+semana+multimedia&utm_campaign=Sites+Trust+In+News&utm_source=e-goi&utm_medium=email

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