sexta-feira, 7 de julho de 2023

O combate ao discurso de ódio não aceita termos e condições

 Januária Cristina Alves*

 Discurso do ódio, mídias sociais e deveres de informação

Em tempos em que os afetos se misturam com os likes das redes sociais, temos visto os celulares, tablets e computadores ‘pegarem fogo’ tal como se fossem uma mata seca onde alguém jogou uma bituca de cigarro

Talvez muitos leitores deste artigo tenham sentido na pele – no peito, na carne – o que significa o discurso de ódio. Nem sempre é discurso, muitas vezes é agressão física, ou é um silêncio, ou ainda a invisibilidade, que também agride e machuca. “É possível que se passe com a noção de discurso de ódio algo análogo ao que Santo Agostinho dizia do tempo, ou seja: ‘quando não me perguntam o que é o tempo eu sei o que ele é, mas quando me perguntam o que é o tempo eu já não sei dizer o que ele é’. Em outras palavras, todos aqueles que já foram ultrajados, vilipendiados ou humilhados por falas coletivas (sabem)”, como definiu o professor e psicanalista Christian Dunker, em uma de suas colunas no UOL. Difícil conceituar com precisão, mas impossível não identificar quando se depara com ele.

O ódio, por si só, é um sentimento cujas razões são quase sempre injustificáveis, os efeitos, nefastos, tanto para quem sente como para quem é alvo deles. É uma força poderosa, um motor de destruição. Em tempos em que os afetos se misturam com os likes das redes sociais, temos visto os celulares, tablets e computadores “pegarem fogo” tal como se fossem uma mata seca onde alguém jogou uma bituca de cigarro. Como estamos percebendo aqui no universo offline, esse fogo é cada vez mais difícil de debelar, uma vez que ainda não temos bombeiros para dar conta dos algoritmos das plataformas digitais, por exemplo. Fato é que é quase certo que todos nós já fomos vítimas do discurso de ódio pelo menos uma vez na vida, ou já vimos alguém próximo de nós sê-lo. E isso acontece cada vez mais cedo. Um levantamento feito em 2019 pelo CGI.BR/NIC.BR/Centro Regional de Estudos do desenvolvimento da Sociedade da Informação revela que 43% das crianças e jovens brasileiros, entre 9 e 17 anos, já viu alguém ser discriminado na internet e 7% já se sentiu discriminado. Da discriminação, do preconceito, da violência verbal ou mesmo da invisibilização proposital sempre excludente, parece que é impossível alguém escapar nesse mundo em que vivemos.

Durante três meses tive o privilégio e a honra de acompanhar as reuniões do Grupo de Trabalho para recomendações de estratégias de enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo, instituído pelo ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, para debater o assunto e propor políticas públicas voltadas às questões que vão desde violência nas escolas, atos antidemocráticos, racismo, xenofobia, homofobia e misoginia, até a criação de uma portaria específica para a instituição de um Fórum Permanente de Enfrentamento ao Discurso de Ódio e ao Extremismo, com o objetivo de participar, acompanhar e articular projetos e ações de combate aos diversos problemas relacionados à essa temática. Fui convidada pela presidente do GT, a ex-deputada federal e mestra em políticas públicas Manuela d’Ávila a atuar como participante externa para contribuições na área de Educação Midiática, e foi um dos períodos mais ricos em aprendizado para mim. Foi me dada a oportunidade de não apenas ouvir os maiores e mais experientes especialistas nesse tema no nosso país, mas sobretudo, constatar o teor e o resultado que o discurso de ódio tem produzido em nossa sociedade. Complexo de explicar, quase impossível mensurar. Em 18 de junho, dia Internacional de Combate ao Discurso de Ódio, o secretário-geral da ONU, António Guterres declarou que “o discurso de ódio é usado para alimentar o medo e a polarização, frequentemente para ganhos políticos e com um custo imenso para as comunidades e as sociedades. Incita a violência, exacerba as tensões e impede os esforços para promover a mediação e o diálogo. É um dos sinais de alerta de genocídio e de outros crimes atrozes. O discurso de ódio é frequentemente dirigido a grupos vulneráveis, reforçando a discriminação, o estigma e a marginalização. Minorias, mulheres, refugiados, migrantes e pessoas de diversas orientações sexuais e identidades de gênero são alvos frequentes. As plataformas de mídia social podem amplificar e espalhar o discurso de ódio à velocidade da luz”.

Para combater o discurso de ódio e o extremismo não há termos e nem condições que não sejam o respeito ao ser humano em todas as suas dimensões

No relatório – de leitura obrigatória para todos os cidadãos brasileiros – essa realidade descrita por Guterres é constatada e documentada com detalhes e muitas referências. Na cerimônia de entrega oficial do trabalho ao ministro de Direitos Humanos, o próprio Sílvio de Almeida deixou clara a urgência e a necessidade de se implementar ações para o combate ao discurso de ódio e ao extremismo em nosso país. Pela primeira vez, vê-se diretrizes claras e bem definidas para enfrentar, na prática, as manifestações de ódio e de extremismo que mais atingem a nossa população, listadas com detalhes no documento: misoginia e violência contra as mulheres; racismo contra pessoas negras e indígenas; ódio e violência contra a população LGBTQIA+; xenofobia e violência contra estrangeiros e nacionais das regiões Norte e Nordeste; ódio e violência contra as pessoas e comunidades pobres; intolerância, ódio e violência contra as comunidades e pessoas religiosas e não religiosas; capacitismo e violência contra as pessoas com deficiência; grupos geracionais mais vulneráveis ao contágio do extremismo: jovens e pessoas idosas; atos extremistas contra as escolas, instituições de ensino e docentes e a violência decorrente do discurso de ódio; ódio e violência extremista contra instituições e profissionais da imprensa e da ciência; violência política, neonazismo e atos extremistas contra a democracia. Segundo ele, não haverá trégua para esses grupos que propagam o ódio sistematicamente.

O relatório traz uma definição de discurso de ódio bastante clara e factível para aqueles que desejam entender suas dimensões e sobretudo, trabalhar na prática para combatê-lo e debelá-lo. O grupo chegou à conclusão que o discurso de ódio “envolve a progressão, intensificação ou sobreposição de violações que partem de uma estratégia de poder pela agressividade, hostilidade, opressão, intolerância e abjeção de pessoas ou comunidades e evoluem, no conteúdo e na forma, para um polo de extremismo discursivo caracterizado pela desumanização do seu objeto e coletivização de seu destinatário”. Mas, para além da definição que auxilia imensamente na identificação do tal, esse registro histórico o marca um ponto de mutação no enfrentamento a esse problema. No âmbito educacional, área na qual pude contribuir mais especificamente trazendo a educação midiática como um elemento fundamental para o enfrentamento desse desafio, o documento enfatiza a necessidade da revisão do Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, a construção do Plano Nacional de Cidadania Digital, recomenda ações de educação midiática para promover um comportamento ativo de toda a comunidade escolar, programas de promoção à saúde mental, além da criação de uma rede de inteligência entre os órgãos responsáveis pela garantia da segurança pública e as organizações da sociedade civil, universidades e instituições que produzem monitoramentos e estudos. Além disso, o relatório preconiza a realização de um Plano Nacional de Enfrentamento à Violência nas Escolas, para que, por meio de ações de proteção e prevenção, tenhamos a promoção de uma cultura de paz, medida primordial no contexto que estamos vivenciando em nosso ambiente educacional.

As múltiplas vozes que ajudaram a construir o documento deixam claro que, para combater o discurso de ódio e o extremismo não há termos e nem condições que não sejam o respeito ao ser humano em todas as suas dimensões. Parafraseando os que pretensamente regem as nossas relações nas plataformas digitais, o nosso contrato no universo on e offline tem que ser com a dignidade humana e o direito de cada um de habitar uma sociedade ética, justa e digna. E para conquistarmos isso, temos que começar já e não dar trégua.

Januária Cristina Alves é mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.

 *Mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informaciona.

Imagem da Internet

Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2023/07/07/Recordes-de-temperatura-o-que-esperar-em-2023?utm_medium=Email&utm_campaign=NLDurmaComEssa&utm_source=nexoassinantes

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