Por Tatiana Salem Levy*
— Foto: Cris Bierrenbach
Pesquisando sobre inteligência artificial, me deparei com um vídeo no qual se mostra a criação de um novo quadro do pintor holandês Rembrandt, 347 anos após a sua morte. A partir de um estudo das suas personagens, das camadas de tinta das suas pinceladas, as máquinas conseguiram fazer um quadro que parece um autêntico Rembrandt. Impressiona a qualidade da obra - o que nos faz questionar se será esse o futuro não só da pintura, mas também da literatura, da música, das mais diversas expressões artísticas, que, até aqui, sempre foram compreendidas como a expressão de talentos, emoções, histórias e estilos de vida, tempo, dedicação.
Mais do que lamentar, nostalgicamente, um passado perdido, precisamos pensar esse mundo novo que, aos poucos, começa a se espalhar. Mas isso não significa jogar fora o passado, muito pelo contrário. Fomos nós, humanos, que programamos as máquinas para buscarem, a partir de um estudo dos quadros já existentes de Rembrandt, uma forma de fazer um novo Rembrandt. Isto porque nós sabemos, como pensadores, que é preciso estudar a História para se criar o presente.
Junto com os novos modos de fazer arte, que se anunciam com o desenvolvimento da inteligência artificial, é preciso, desde já, começar a pensar os novos modos de ver. Digo isto, pensando no clássico estudo de John Berger, “Modos de ver” (trad. Hugo Mader, Fósforo), publicado originalmente em 1972, e que, por sua vez, é escrito a partir do ensaio de Walter Benjamin, “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica” (trad. Sergio Paulo Rouanet, In: Obras escolhidas, vol. 1, Brasiliense), escrito nos anos 30.
Benjamin e Berger, em épocas distintas, pensam o modo de se olhar para a arte a partir do momento em que a reprodução tira os quadros dos museus e os leva para a sala das nossas casas (e, mais tarde, para as camisetas, os cadernos, as bolsas etc.). Como Benjamin anuncia em seu ensaio, “os conceitos seguintes, novos na teoria da arte, podem ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política artística”. Os conceitos são, entre outros: reprodutibilidade técnica; autenticidade; destruição da aura e valor de culto e valor de exposição.
Benjamin reflete sobre como a autenticidade escapa à reprodutibilidade técnica, pois ela se funda no aqui e agora do original. A partir do momento em que as obras de arte começam a perder seu valor de culto, “aumentam as ocasiões para que elas sejam expostas”. É a partir dessa ideia que Berger escreve o primeiro dos sete ensaios reunidos no livro. “Toda imagem implica um modo de ver”, diz ele. Ou ainda: “Uma imagem é a recriação ou a reprodução de uma visão”. Qualquer obra de arte, portanto, está sujeita ao modo com o qual olhamos para ela em diferentes momentos da história.
Para se constituir como obra de arte, uma imagem precisa ser apresentada - e vista - como tal. Há vários pressupostos que fazem de uma imagem uma obra de arte, entre os quais: beleza, verdade, genialidade, civilização, forma, posição social e gosto. Em outras palavras, uma imagem não é uma obra de arte em si mesma, fora da História, sem definições estabelecidas do que é a arte. O que Berger propõe é justamente contextualizar os modos de ver as obras, sejam elas do passado ou do presente, dentro de um contexto social e moral.
Perguntar-se sobre os modos de ver a arte é perguntar-se sobre o lugar do espectador dentro de uma determinada sociedade. Antes da câmera, “a singularidade de qualquer pintura estava intimamente ligada à singularidade do lugar que ela habitava”. Para vermos uma determinada obra de arte, tínhamos que nos deslocar até ela - até uma igreja, um edifício, um museu. Quando uma pintura passa a ser mostrada na televisão, seu sentido se altera: “o significado primário não está mais naquilo que a pintura diz, mas naquilo que ela é”. A ideia de autenticidade se desloca então para a ideia do original de uma determinada reprodução.
Isso, sem dúvida, continua a falar sobre o nosso modo de organização social. Ter a reprodução de um Picasso em casa não é o mesmo que ter um original. Ver uma reprodução não é o mesmo que ver o original. Essa diferença não reside naquilo que um determinado quadro representa, no que ele diz, mas sim no seu valor como objeto. O valor da obra de arte na época da reprodutibilidade técnica se funda na sua raridade - e no seu preço de mercado.
O preço de mercado é definido justamente pela autenticidade da obra e pela sua raridade. Berger cita o exemplo do quadro “Virgem dos rochedos”, de Leonardo da Vinci, e a polêmica que o envolve: há um na Galeria Nacional de Londres, e outro quase idêntico no Louvre. Historiadores da arte ingleses tentam provar que o original é o que está na Galeria Nacional, enquanto os franceses tentam provar o contrário - isto, claro, porque o original tem um valor de mercado muito maior, mas também um valor místico: a mensagem que ele passa não importa tanto quanto a sua raridade.
“Se a imagem deixou de ser única e exclusiva, o objeto de arte, a coisa, deve misteriosamente sê-lo”, afirma Berger. Com a reprodutibilidade técnica, as obras de arte poderiam ser utilizadas por qualquer um. No entanto, a maioria das reproduções “ainda é utilizada para sustentar a ilusão de que nada mudou, de que a arte, com sua autoridade singular e incontida, justifica a maioria das outras formas de autoridade, dando ares de nobreza à desigualdade social e de fascínio às hierarquias”. Embora as imagens artísticas nos rodeiem, sejam cada vez mais reproduzidas e facilmente reproduzidas, é a “uma elite cultural de especialistas em relíquias” que cabe o aporte da arte do passado.
A raridade do objeto artístico, que define seu valor de mercado, não está dissociada da genialidade de seu artista. Portanto, junto com a raridade da obra, é preciso construir também a raridade da pessoa que a fez. Uma pessoa única, tão singular quanto a sua obra, que nasceu com um dom fora da média. Quanto mais drama tiver a sua vida, melhor. Pensemos em Van Gogh, por exemplo, na sua loucura, na sua pobreza, no seu não reconhecimento em vida. Não que sua obra não seja fantástica - aqui, não se trata de questionar isso. É claro que Van Gogh, Da Vinci e Rembrandt foram únicos naquilo que fizeram. A questão é entender como nós construímos como espectadores, como uma determinada sociedade entende o valor da obra de arte.
Todos esses questionamentos são importantes para pensarmos o futuro da arte, num mundo que será cada vez mais tomado pela inteligência artificial. Por ora, a IA faz um Rembrandt quase autêntico, pois não apenas reproduz, mas também cria com base no que ele fez, com as mesmas camadas de tinta, atividade da qual a mera reprodução técnica não é capaz. Em breve, criará quadros geniais, que não serão atribuídos a este ou àquele pintor. Aí, como ficará a ideia de genialidade? E o que fazer com as emoções do artista quando a obra for criada por máquinas? Quando deixar de ser a expressão de algo profundamente humano e particular?
A reprodutibilidade técnica mudou a definição de espectador. Mas a inteligência artificial muda também a definição de artista. Nem gênio, nem único, mas uma máquina. Nesse contexto, talvez nos reste pensar que, embora as máquinas possam fazer obras de arte, ainda seremos nós, humanos (pelo menos por algum tempo), a definir o que é a arte, ou seja, os modos de ver determinados objetos.
Tatiana Salem Levy, escritora e pesquisadora da Universidade Nova de Lisboa, escreve neste espaço quinzenalmente
E-mail: tatianalevy@gmail.com
Fonte: https://valor.globo.com/eu-e/coluna/tatiana-salem-levy-inteligencia-artificial-muda-a-definicao-de-artista.ghtml 07/07/2023
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