Por Andrea Monda*
28 junho 2023
Odiscurso que o Papa Francisco dirigiu aos artistas reunidos à sua volta, na Capela Sistina, é mais um daqueles discursos que, à semelhança de uma mina, contêm muitos tesouros e pedras preciosas. Um texto para ser lido e relido, para ser meditado. Hoje, ainda entusiasmados, podemos começar a refletir sobre alguns dos muitos conhecimentos. Por exemplo, a combinação entre arte e novidade. O artista tem um olhar agudo, como o da criança, «que capta a realidade», diz o Papa, e «move-se antes de mais no espaço da invenção, da novidade, da criação, de trazer ao mundo algo nunca visto antes. Ao fazê-lo, desmente a ideia de que o homem é um ser para a morte. O homem deve aceitar a sua mortalidade, é verdade; contudo, não é um ser para a morte, mas para a vida».
Sem o explicitar, o Papa cita o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger, uma figura brilhante, inquietante e central do século xx , que nos seus ensaios desenvolveu este tema da existência como “ser para a morte”. A presença da arte e dos artistas seria, segundo o Papa, a refutação desta ideia e, logo a seguir, para o confirmar, cita Hannah Arendt, primeiro aluna e depois amante de Heidegger: «Uma grande pensadora como Hannah Arendt afirma que é próprio do ser humano viver para trazer novidade ao mundo».
E aqui o Papa introduz o tema da paternidade. Há mais de um século, o escritor inglês Chesterton salientava que «a paternidade artística é um fenómeno de sanidade como a paternidade física» (e, portanto, que «os críticos são muito mais loucos do que os poetas»), mas o Papa não quer falar tanto de sanidade como de novidade: «Esta é a dimensão da fecundidade do homem. Trazer novidade. Até na fecundidade natural, cada filho é uma novidade. Abrir e trazer novidade. Vós, artistas, conseguis realizá-lo, fazendo valer a vossa originalidade. Nas obras colocais-vos sempre a vós próprios, como seres irrepetíveis que todos somos, mas com a intenção de criar ainda mais. Quando o talento vos ajuda, trazeis à luz o inédito, enriqueceis o mundo com uma nova realidade». Chesterton voltou a explicar que «o sucesso da obra de arte consiste em dizer, sobre qualquer assunto (quer seja uma árvore, uma nuvem ou um personagem humano): “Já o vi milhares de vezes, mas até agora nunca o tinha visto sob esta luz”. Ora, para isso, uma certa variação de estilo é natural e até necessária. Os artistas variam na forma como realizam o seu assalto, pois é da sua competência fazer um ataque de surpresa. Devem dar uma nova luz às coisas».
Este “ataque de surpresa” que é a arte explica também porque ela é perturbadora. «A arte é um elemento de perturbação; a ciência tranquiliza», segundo a lição de Georges Braque. Um tema caro ao Papa, que também recordou no seu discurso que: «Uma das coisas que aproxima a arte da fé é o facto de perturbar um pouco. A arte e a fé não podem deixar as coisas como estão: mudam-nas, transformam-nas, convertem-nas, movem-nas. A arte nunca pode ser um anestésico; ela dá paz, mas não adormece as consciências, mantém-nas acordadas».
No mundo contemporâneo, tão “anestesiado”, no sentido de anular a sensibilidade e, portanto, ser simultaneamente contra a dor, mas também contra a beleza, os artistas tornam-se «videntes, sentinelas, consciências críticas», razão pela qual o Papa os sente como seus aliados, os artistas, aliados com ele e com Deus. Os três têm uma paixão, uma grande paixão em comum: «Sinto que sois aliados para tantas coisas que me são caras, como a defesa da vida humana, a justiça social, os últimos, o cuidado da casa comum, o sentimento de que somos todos irmãos. Preocupo-me com a humanidade da humanidade, com a dimensão humana da humanidade. Porque é também a grande paixão de Deus». Deus é o primeiro e supremo artista, que vive a sua criatividade com paixão. O que inclui também a paixão do seu único Filho, que dá a vida «por nós, homens, e pela nossa salvação». Deste modo, cada um à sua maneira, também os artistas vivem “apaixonadamente” a sua vocação artística e «a criatividade do artista parece assim participar na paixão geradora de Deus. Aquela paixão com que Deus criou. Vós sois aliados do sonho de Deus!». O sonho de Deus, o mistério que envolve a criação, passa pela paixão do Filho, pela sua kenosis, que o leva a viver todas as experiências humanas, até a morte, e a dar-lhe sentido. Assim, os artistas vivem com intensidade, na sua pele, o mistério da existência humana e conseguem fazer-nos sentir os seus sabores, ver as suas cores, luzes e também as suas sombras.
«Muitas vezes vós, artistas», disse o Papa, «procurais sondar até o submundo da condição humana, os abismos, as partes obscuras. Nós não somos só luz, e vós recordais-nos isto; mas é preciso lançar a luz da esperança nas trevas do humano, do individualismo e da indiferença. Ajudais-nos a vislumbrar a luz, a beleza que salva». É esta a tarefa, mais humana e mais elevada, dos artistas, que o Papa quis recordar aos mais de duzentos representantes de todas as artes, reunidos diante do Juízo Final de Miguel Ângelo.
* Missionário em Hong Kong, do Pontifício Instituto para as Missões Estrangeiras, congregação religiosa fundada na Itália. Doutor em História ...
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