Por Luís Leiria*
Para a vida aventurosa de quem, como Hugo Blanco, esteve condenado à morte, pena que foi comutada para prisão por 25 anos devido à pressão de uma campanha internacional que envolveu a Amnistia Internacional e personalidades como Jean-Paul Sartre, a vinda a Lisboa foi claramente um episódio menor, mesmo sabendo a importância da Revolução Portuguesa de 1974.
Mas houve algumas pessoas para quem essa visita significou muito. Para quem os seus ensinamentos foram decisivos nas opções que fizeram num determinado momento da sua vida e que moldariam o seu futuro.
Uma dessas pessoas fui eu.
* * *
Conheci Hugo Blanco em junho de 1974, dois meses, portanto, após o 25 de Abril. Hugo acabara de escapar do golpe de Pinochet, no Chile, país para onde fora viver depois de ter estado condenado à morte no Peru e posteriormente ser expulso do país quando o governo que o condenara caiu.
Numa época em que a discussão sobre a guerrilha – e em particular as guerrilhas latino-americanas – causava furor entre a esquerda europeia, e em particular na esquerda trotskista, Hugo Blanco fora um guerrilheiro que todos defendiam e apoiavam. A sua guerrilha não nascera das ideias de uma iluminada “vanguarda revolucionária”, mas fora promovida pelas próprias comunidades camponesas e indígenas do Peru, como autodefesa organizada diante dos latifundiários. Hugo Blanco fora o principal organizador desta autodefesa, que nascera das bases sindicais camponesas, e por isso era um guerrilheiro diferente. Não que fosse menos perigoso para os poderes instituídos. Pelo contrário, a sua atividade era odiada por estes e pela classe que ele combatia. Odiavam-no porque não se separava das bases que ripostavam aos ataques da tropa e da polícia. Odiavam-no porque denunciava os governos que os enviavam, por representarem os interesses dos senhores das terras.
Figura imponente Quando o conheci, ele era era uma força da natureza. Orador dotado, figura imponente, na Lisboa da Revolução dos Cravos ajustava-se como uma luva ao imaginário do revolucionário latino-americano que todos alimentávamos. Quando se levantava para falar, a sua postura desafiadora, a cabeça erguida e o peito cheio de vigor, transpirava convicção por todos os poros e provocava-nos a ilusão de que era muito mais alto do que a sua real estatura.
A sua voz forte dizia coisas simples, que qualquer um podia entender. Porque o marxismo, e o trotskismo, baseados como são em conceitos sofisticados, podem ser explicados de forma muito simples e ganham a sua força quando são transformados em propostas de ação, de mudança, de revolução. Até agora, os filósofos dedicaram-se a interpretar o mundo, mas do que se trata é de transformá-lo, dizia Marx. A Tese XI sobre Feuerbach, como esquecê-la?
Eu era um jovem estudante do ensino secundário em Lisboa, tinha 17 anos e conhecera o trotskismo menos de um ano antes. Junto com o Acácio, a Lena, o Valério e outros tínhamos organizado um grupo, no nosso liceu, que disputava com os maoístas a liderança política.
Audácia, sempre audácia
No dia 27 de abril de 1974, dois dias depois da queda da ditadura, déramos uma demonstração da nossa audácia: fizemos uma assembleia, tomamos a escola, prendemos os funcionários que eram informantes da PIDE, e depois saímos em manifestação pelas ruas, gritando palavras de ordem revolucionárias.
O nosso grupo teria, então, uns 20 ativistas, mas a escola inteira participou.
Em junho, quando conhecemos o Hugo Blanco, estávamos convencidos de que o trotskismo era a alternativa que buscávamos, mas tínhamos algumas reservas em relação ao único partido trotskista que entretanto, no final de 1973, fora fundado, a LCI. Achávamos a LCI muito vanguardista, só pensava na “vanguarda ampla” e não tinha política para as massas. Não conhecíamos ainda as polémicas que atravessavam toda a Quarta Internacional, justamente sobre o guerrilheirismo como método para a ação dos partidos revolucionários. A corrente maioritária da internacional, liderada por Ernest Mandel, defendia o guerrilheirismo na América Latina, enquanto uma corrente minoritária impulsionada pelo argentino Nahuel Moreno e o partido norte-americano, o Socialist Workers Party (SWP), admitiam esta prática apenas quando a luta armada fosse, como no caso protagonizado por Hugo Blanco, adotada pelas massas como forma de prosseguir o seu combate de classe.
Nós tínhamos uma noção vaga sobre a existência de polémicas dentro da Internacional, mas não conhecíamos os documentos nem as posições em causa.
Hugo Blanco em Portugal
Foi então que soubemos que o peruano Hugo Blanco vinha a Lisboa e falaria num meeting organizado pela LCI, no liceu Padre António Vieira, junto com um dirigente da Liga Comunista Revolucionária (LCR) francesa. Ao mesmo tempo, chegou-nos também a informação de que o Hugo fazia parte da minoria da internacional. Era uma oportunidade única de conhecer as posições críticas em relação ao guerrilheirismo, explicadas por um dos seus principais protagonistas. Decidimos ir ao meeting e, no final, tentar falar com ele.
Há momentos-chave das nossas vidas em que escolhas são feitas devido a pequenos pormenores. Naquele dia, o representante da LCR, organização que nascera após o Maio de 68 francês e que muito respeitávamos e admirávamos, não era um dos seus principais dirigentes. Se fosse o Alain Krivine, figura que tinha a autoridade de ter sido um dos dirigentes do movimento francês de maio-junho, as coisas talvez tivessem corrido de outra maneira.
Mas a verdade é que naquele dia ninguém ofuscava o Hugo Blanco. Bastou ele levantar-se e dizer “Compañeros!” para nos derretermos.
No final, fiquei tão intimidado que quase perdíamos a oportunidade. Eu, que não temera enfrentar o reitor no dia em que o tomámos o nosso liceu de assalto, morria de vergonha de ir falar com o Grande Hugo Blanco. Por sorte, tínhamos um amigo descarado que cumpriu à risca o que decidíramos. Enquanto eu e o Acácio hesitávamos, o João Pimentel tomou a dianteira e quando demos por isso já ele estava em amena cavaqueira com o peruano, num espanhol tão horrível que o Hugo logo pediu que falasse em português, porque assim ele sem dúvida entenderia melhor.
É engraçado como o mesmo evento é visto de forma completamente diferente – o que significa que teve consequências igualmente diversas – pelos seus próprios protagonistas. Mais de vinte anos depois, encontrei o João (que já faleceu, acometido por um enfarte fulminante) e ele mal recordava o episódio. Disse-lhe que o descaramento dele, naquele dia, tinha mudado a minha vida. Ele riu e não me pareceu nada impressionado. Nem se recordava do que dissera quando abordou o Hugo. Para ele, a política revolucionária deixara de ter importância. Mantinha bons reflexos políticos, como pouco depois verifiquei numa discussão a propósito da Argélia e do golpe contra a Frente Islâmica, que ganhara as eleições. Mas passara mais de uma década como um plácido funcionário noturno do Metro de Estocolmo, depois de uma viagem aventurosa que o levara ao chamado próximo e ao médio Oriente, chegando ao Irão. Na Suécia, encerrara as aventuras e aproveitava a vigília laboral, que pouco trabalho dava, para se dedicar ao que mais amava na vida: ler, ler muito, ler sempre.
Acompanhara com muita distância a revolução portuguesa. Nunca mais voltaria à militância política.
Reação calorosa
Mas voltemos ao Hugo Blanco. A sua reação ao nosso contacto não podia ter sido melhor. Prontificou-se de imediato a explicar-nos as polémicas na Quarta Internacional e fez mais: propôs-se a dar-nos um pequeno curso sobre a história da Quarta Internacional, e a conversarmos sobre a revolução portuguesa. A primeira conversa tivemo-la ainda naquele dia, quando o Hugo nos apresentou o Gerry Foley, norte-americano de origem irlandesa que já estava em Lisboa desde maio, como correspondente da Intercontinental Press, uma revista semanal de política internacional, mantida pelo SWP, onde publicava as suas reportagens sobre a Revolução Portuguesa.
Disseram-me mais tarde que o Gerry era um poliglota incrível, que falava mais de 20 idiomas, incluindo o mandarim, e que no dia em que desembarcara pela primeira vez na Irlanda tinha inspirado profundamente e anunciado, quando soltou o ar, que se sentia mais irlandês que nunca. Não sei se essas histórias eram verdadeiras ou não, mas o que é certo é que quando o reencontrei, no início de 1975, o Gerry já falava um português decente. Infelizmente, perdi o contacto, o que foi uma pena, visto que ele, além de revolucionário profissional, era um jornalista de mão cheia. Mas eu naqueles dias nem desconfiava que iria ganhar a vida, toda a minha vida, como jornalista.
Nessa primeira conversa, notámos logo uma diferença entre o Hugo e o Gerry. Quando lhes perguntámos o que poderíamos fazer, num momento em que as férias de Verão nos deixavam dispersos, O Gerry propôs-nos que escrevêssemos artigos descrevendo o que estava a acontecer na revolução. Hugo concordou, mas acrescentou: “Não basta descrever a realidade. É preciso que se esforcem por analisá-la, para depois tirarem uma linha de ação para poderem intervir nela.”
A Revolução é o que importa
Nesses tempos, todo o nosso pensamento ia para a Revolução. A profissão era algo nebuloso que viria na frente, naturalmente, mas eu entraria no ano seguinte para Filosofia, como poderia também ter optado por História, ou até por Jornalismo, se existisse essa opção. Mas ainda não havia curso de jornalismo em Portugal.
A partir daquele dia, todas as manhãs, durante uma semana, ia no Fiat 127 da minha mãe, que eu conduzia sem ter idade para isso, buscar o Hugo Blanco à pensão onde estava hospedado, perto do Rossio, trazia-o à casa familiar no bairro de Benfica (ainda hoje a minha morada), onde se reunia o nosso grupo para ouvi-lo. Foi da boca dele que ouvi pela primeira vez a história da Quarta Internacional pela ótica do morenismo, a corrente trotskista com quem Hugo Blanco começara a militar.
Foi o tempo em que a corrente política impulsionada por Hugo Miguel Bressano, ou Nahuel Moreno, e o seu PST da Argentina estavam no apogeu da elaboração política. Acabara de ser publicado “Um documento Escandaloso” – mais conhecido entre os militantes como “O Morenaço”, em que Moreno travava uma polémica com Mandel em torno do guerrilheirismo na América Latina e os métodos de construção dos partidos revolucionários.
Ouvindo o roncar dos motores
As reuniões matinais com Hugo Blanco decorriam no meu quarto, que se transformara numa espécie de sede do grupo. Nas paredes daquele espaço estavam patentes as marcas da adolescência. Pranchas de banda desenhada (tenho a honra de ser um dos fundadores do primeiro fanzine de BD de Portugal, o Árgon, que criei junto com outro amigo, o Ricardo) estavam lado a lado com fotografias de carros desportivos. Em cima de uma estante, perto do teto, umas dezenas de aviões da Segunda Guerra montados e pintados por mim a partir de kits de plástico (era um dos meus hobbies prediletos). O Valério disse-me uma vez que sempre, ao entrar no meu quarto, parecia-lhe ouvir o roncar dos motores.
Muito me espantou o facto de o Hugo nunca ter comentado quão bizarro era aquele cenário para um grupo de aspirantes revolucionários. Mas ele parecia nem se dar conta das BDs, dos carros e dos aviões. Hoje sei que havia um motivo para isso.
Ele próprio começara a atividade política mais cedo ainda que nós, com 13 anos, porque, como explicou nesta excelente entrevista (link is external), era o único dos três irmãos que estava livre: “Meu irmão de 17 e minha irmã de 19 estavam presos por serem apristas” (da APRA, Aliança Popular Revolucionária Americana, nos tempos em que esta era uma organização nacionalista revolucionária). Foi nessa época que Hugo Blanco participou na sua primeira greve, motivada por os diretores dos colégios nacionais serem pequenos ditadores. Mas a ação coletiva dos estudantes do ensino secundário levou-os à vitória.
Nem assim, porém, conseguiram que os mais velhos lhes dessem formação: “Tínhamos algo como um círculo de estudos dos secundaristas, mas nenhum universitário queria vir nos falar sobre o que era o partido aprista, o Partido Comunista, nada. Não queriam vir porque, como havia ditadura, tinham medo que mesmo sem querer pudéssemos entregá-los.” Eis o motivo que levou o Hugo Blanco de 1974 a querer de imediato dar-nos formação política.
Hugo também conta, na mesma entrevista, o encontro com o irmão em La Plata, na Argentina. Ao chegar, descobriu que ele era secretário-geral da célula aprista de La Plata e que no seu quarto funcionava a sede local do partido, onde se reuniam, entre outros, os deportados apristas do Peru. Por isso, também, as reuniões no meu quarto não lhe provocavam o menor incómodo.
Memória de dias vertiginosos
Gravei todas as reuniões com o Hugo num velho gravador de bobinas. Mas deixei-as no meu quarto, enfiadas numa gaveta, e quando vim de férias do Brasil, país para onde fui viver em 1981, as bobinas tinham desaparecido. Nunca mais consegui localizá-las. Sem esta memória, que seria hoje tão esclarecedora, as minhas recordações daqueles dias vertiginosos são muito parciais. O meu cérebro recebeu tanta informação que provavelmente nunca conseguiu processá-la toda.
Restam-me pequenas histórias que não esqueci.
Hugo Blanco pôs o seu tempo à nossa disposição, naquela semana, e nós aproveitámos o máximo que pudemos. Levámo-lo, por exemplo, a reuniões com três amigas, duas professoras do nosso liceu e uma estudante de Medicina, onde discutíamos os acontecimentos em Portugal e o Hugo falava também sobre a América Latina. Na segunda reunião, uma delas, que ficara particularmente impressionada pela figura imponente do peruano, levou um poema dedicado ao Hugo Blanco, que declamou. Não recordo os versos, mas sim que eram pontuados por uma só palavra, que se repetia: “Compañero!”
Recordo também que o levei à Feira do Livro, aberta pela primeira vez no pós-25 de abril, onde se fartou de comprar livros, principalmente em segunda mão, que estavam baratíssimos.
Quando partiu, de volta à Suécia, prometeu voltar e pensar na hipótese de ficar uns tempos a viver em Portugal.
Regressou a Lisboa, pouco tempo depois, mas mais para nos dar uma satisfação e dizer que ia permanecer no Norte da Europa, onde viviam muitos deportados peruanos e era possível fazer um trabalho político, à espera de uma oportunidade de regressar ao Peru. Não teria de esperar muito, e em 1977 desembarcou em Lima e candidatou-se à Assembleia Constituinte, para a qual seria eleito deputado.
Nesta segunda passagem por Lisboa, muito rápida, esteve de novo no meu quarto para reunir os livros que comprara na Feira. Não levou todos, devido ao peso excessivo. Mas deixou a sua marca em todos, como se pode ver nos dois exemplos nas fotos.
Duas cartas e uma visita
Antes de partir ainda se reuniu connosco e aconselhou-nos a organizarmo-nos, pois, se não o fizéssemos, corríamos o risco de perder os militantes do grupo para outros partidos mais fortes e estruturados. “É simples”, disse: “formam duas células, uma virada para o trabalho estudantil e outra dedicada ao estudantil mas também a abrir trabalho na classe trabalhadora. Ambas as células elegem os seus dirigentes, que, juntos, constituem a direção. O importante é terem uma linha política, e a cada momento traduzirem essa linha em palavras de ordem que as massas possam entender e assumir como suas, para avançar.”
Deixou-nos também os endereços postais para nos comunicarmos com partidos da corrente morenista e com o SWP dos Estados Unidos.
Sem perder tempo, escrevemos uma carta, da qual ainda tenho o rascunho, a vários partidos, pedindo intercâmbio de jornais e informações. Um deles era o PST argentino. Dias depois, na volta do correio, recebi em casa um pacote com exemplares dos quatro primeiros capítulos do “Morenaço”, edição em papel de jornal, e uma carta de resposta à nossa que anunciava a chegada de um dirigente do PST a Lisboa.
Efetivamente, na tarde desse mesmo dia, tocou à campainha da minha casa o Aldo, dirigente argentino que fora enviado por Moreno e que nos ajudou a fundar a Aliança Socialista da Juventude (ASJ) e o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT).
Mas isso é outra história.
“A mesma simplicidade e grandeza”
Nunca mais tive a oportunidade de me encontrar com o Hugo Blanco. Sei que, pouco depois destes acontecimentos, ele rompeu com a corrente morenista. O Valério teve a sorte de voltar a vê-lo e falar com ele umas décadas depois, como conta neste artigo (link is external). “Ambos tínhamos nos transformado, mas que emoção”, relata. “Ele mantinha a mesma simplicidade e grandeza. O documentário ‘Hugo Blanco, Rio Profundo’ apresenta sua epopeia de forma emocionante.”
Este artigo forçou-me a refletir sobre a importância de pequenos acasos, pequenos pormenores na vida que provocam grandes mudanças. Se Hugo Blanco não tivesse vindo a Lisboa, será que o meu percurso de vida teria sido o mesmo? Dificilmente.
Provavelmente nunca seria contagiado pela polémica sobre o guerrilheirismo, nunca teria conhecido o Aldo, nem a Zezé (dirigente da então Convergência Socialista do Brasil), nunca teria ido morar em São Paulo, e depois no Rio, nunca teria conhecido a Cristina… e hoje provavelmente seria um professor de filosofia recém-reformado ou em vias de me reformar. E não teria, assim, mulher, filho e neto que adoro e que iluminam os meus dias de alegre portador do passe gratuito de transportes “Navegante”, desde o ano passado.
Teria outra mulher(es), outros filhos e filhas, outros netos e netas? Talvez. Ou talvez não. Impossível saber. Mas sem dúvida, se não tivesse havido Hugo Blanco em Lisboa, não seria quem sou.
Seria melhor? Seria pior? Não sei. Certamente diferente.
Mas se me fosse dado a escolher, não hesitaria: faria tudo igual. Caro Hugo, já cá não estás para ler ou ouvir isto, mas aposto que ao fim de tantas alegrias e tristezas de uma vida inteira de revolucionário consequente, como foi a tua, gostarias de recordar estes pequenos episódios daquela estadia em Lisboa, no ano de 1974.
Compañero Hugo Blanco!
PRESENTE!
*Jornalista
Fonte: https://www.esquerda.net/artigo/hugo-blanco-em-lisboa-1974-memorias/86853 - 02/07/2023
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