Por Luciana Brito*
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Nesse ambiente autoritário, onde a diversidade sexual, religiosa ou racial é objeto de negação, suspensão e expulsão, professoras e professores perderam autonomia
No dia 10 de julho, o presidente Lula anunciou o fim do financiamento federal às escolas cívico-militares, justificando que criar e financiar essas instituições não é obrigação do Ministério da Educação, que tem como um de seus deveres desde a Constituição de 1988 criar colégios civis. A ação do presidente desagradou setores mais conservadores que engrossam o batalhão daqueles e daquelas que percebem o espaço escolar como campo de uma suposta “guerra cultural”. No entanto, da parte de entidades estudantis, professoras e professores e famílias, a medida foi bem recebida.
Até os anos 2000, as escolas militares são instituições criadas pelas Forças Armadas brasileiras. Para estudar numa delas, o estudante civil deve se submeter a um processo seletivo, já que a maioria das vagas, ou ao menos 50% delas, é destinada para filhos e filhas de oficiais, em geral, de alta patente. Portanto, essas escolas, com gestão e políticas pedagógicas próprias, seriam o veículo de produção e perpetuação de uma elite nas Forças Armadas que preparariam seus descendentes para cumprir o mesmo papel. Sendo essas escolas um espaço hereditário dos militares e de alguns civis que miram o militarismo como espaço de ascensão social, as escolas militares seriam algo cobiçado de longe, porém quase que sem chances para as famílias civis pobres e negras. Isso por causa da sua promessa de educação de qualidade, disciplina e acesso às mais altas posições da hierarquia militar, refletidas nos salários e benefícios.
As escolas cívico-militares são algo COMPLETAMENTE diferente das escolas militares, na sua gestão, objetivos e justificativas, mas sobretudo para o público para a qual se destina. Desde 2001, o estado de Goiás já vem implementando o modelo cívico-militar em muitas das suas escolas. Lá, assim como no restante do país, a justificativa era diminuir a violência no ambiente escolar, ensinar práticas de disciplina entre os estudantes enquanto, ao mesmo tempo, melhoravam seu desempenho escolar. Essa era a mesma promessa que também apresentou-se atrativa para as famílias negras, pobres e de bairros periféricos e de pequenos municípios em outros estados, como a Bahia, que mesmo sob um governo de esquerda, aderiu ao projeto de militarização das escolas estaduais em 2017. Assim, progressivamente, nas periferias de quase todo país, foi possível perceber, gradualmente, a “ocupação” militar nas escolas do bairro, o que acabou também sendo mais uma força do braço armado do Estado nessas localidades. Ao fim e ao cabo, isso significou pouco investimento em educação (estrutura, material pedagógico, salário das professoras e professores) e mais uma modalidade de política de segurança que criminaliza a juventude negra e pobre.
A princípio, a ideia de ter os filhos, netos, sobrinhos e afilhados estudando num “colégio militar” alimentou os sonhos das famílias das comunidades periféricas cujos jovens negros são as maiores vítimas da violência. A promessa de impor uma disciplina aos jovens, o que supostamente melhoraria o comportamento dos meninos e meninas, responderia às preocupações das famílias a respeito do ensinamento de práticas cotidianas que prolongassem suas vidas e ainda garantissem a inserção desses jovens no mercado de trabalho. Dessa forma, acreditavam, seriam afastados da criminalidade através do ensinamento de um comportamento que supostamente os poria longe de problemas com o Estado ao passo que enquadravam-as num comportamento “socialmente aceitável”.
No entanto, o que se viu pelo país foi a continuidade da evasão escolar, o pouco investimento na escola e nos salários de professoras e professores, enquanto eram oferecidos aos militares da reserva que atuam como “disciplinadores”, benefícios bem mais robustos do que aqueles e aquelas que possuem uma formação pedagógica para desempenhar suas funções. Além disso, diversos são os casos de abuso, violência e intimidação de professores, mas sobretudo das professoras no espaço escolar que, agora comandado por militares, tornou-se um espaço de autoritarismo e hierarquia, validados por muita misoginia.
A ideia de ter os filhos, netos, sobrinhos e afilhados estudando num ‘colégio militar’ alimentou os sonhos das famílias das comunidades periféricas cujos jovens negros são as maiores vítimas da violência
A livre expressão do corpo, tão vital para as populações negras, como apontou a historiadora Beatriz Nascimento, também é reprimida nesses espaços. As conquistas do movimento negro brasileiro na educação, que desembocaram na Lei 10.339/03 (hoje 11.645/08) são impedidas e proibidas de acordo com a disciplina militar na escola: a dança, as gírias, um certo jeito de falar, de vestir, de cantar e, sobretudo, os cabelos crespos são objeto de negação, e podemos dizer que de criminalização, já que devem estar bem presos todo tempo, e, no caso dos meninos, bem curtos. Nada de “black power”. Segundo relato de uma das minhas alunas, sua filha, ao andar com o cabelo solto pela escola, escutou o seguinte de um militar: “isso não é cabelo de mocinha”.
O não enquadramento às tais “regras” é motivo de expulsão da “escola quartel”, contrariando a Constituição federal de 1988 e a Lei de Diretrizes e Bases de 1996, que afirmam que a educação é irrestritamente para todas as pessoas. Em cidades pequenas do interior do Brasil, por exemplo, onde há somente uma escola estadual, o estudante que se recusa a cortar os cabelos pode sim ficar sem ir à escola.
As escolas cívico-militares foram fortalecidas no ano de 2019 pelo programa federal de financiamento das mesmas, sob as benesses de um presidente que via na cultura militar seu espaço de conforto e de adesão de seguidores e eleitores. A escola militar também foi campo de capilarização dos projetos ultraconservadores para a educação, expressos sobretudo no Projeto Escola Sem Partido, arquivado na câmara em 2018, que encontrou nesse modelo novo fôlego. Assim, militares da reserva, sem experiência pedagógica, atuam na linha de frente desse projeto de militarização da sociedade em geral, trazendo a lógica militar para a vida civil e a perspectiva mais conservadora possível sobre a juventude negra e pobre. É a mesma lógica das operações que invadem e matam comunidades, das UPPs, de quem defende a redução da maioridade penal e que não vê futuro próspero para esta juventude, sob a qual impõe medo e opressão.
Nesse ambiente autoritário, onde a diversidade sexual, religiosa ou racial é objeto de negação, suspensão e expulsão, professoras e professores perderam autonomia. São comuns os relatos de intervenção inclusive no conteúdo das aulas e abordagens históricas. O tema da ditadura militar, por exemplo, é alvo dos revisionismos que atenuam o caráter violento desse episódio do Brasil e da América Latina, que sugerem ser ensinada como uma “revolução”.
O ambiente de presídio, o espaço hostil a estudantes da comunidade LGBTQI+ e a negação de debates que tratem do racismo, da desigualdade de gênero e do racismo religioso, ganham lugar prioritário nos projetos ultraconservadores que justificaram a presença militar na escola pública. O investimento nas escolas cívico-militares não significou mais laboratórios, bibliotecas, valorização do trabalho de professoras e professores ou mais dignidade e cidadania no espaço escolar. Os episódios de violência e evasão não reduziram com a presença de militares nas escolas. Também ainda desconhecemos dados concretos sobre os ganhos no desempenho acadêmico desses jovens após a militarização de algumas escolas públicas.
A guerra às drogas, que tem na juventude suas maiores vítimas, o profundo fosso que expõe as desigualdades e a violência chegou a números alarmantes já no primeiro trimestre de 2023, representam os efeitos mais nefastos da política de segurança pública sobre os jovens. Ineficientes que são, essas políticas não devem de forma alguma inspirar um modelo educacional que já se mostrou também pouco eficiente. A juventude carece ainda de uma educação que lhes permita ser o melhor que puderem, como quiserem, num caminho das melhores oportunidades, com uma educação libertadora, como defendia a professora bell hooks.
OBS, Este texto é dedicado a Gabriel, de 10 anos, que morreu no domingo (23). De acordo com a mãe do menino, ele estava sentado na porta de casa em Lauro de Freitas, região metropolitana de Salvador, quando foi baleado durante um operação policial que aconteceu no seu bairro.
*Luciana Brito é historiadora, especialista nos estudos sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil e EUA e é professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. É autora do livro “Temores da África: segurança, legislação e população africana na Bahia oitocentista”, além de vários artigos. Luciana mora em Salvador com sua família, tem os pés no Recôncavo baiano, mas sua cabeça está no mundo. Escreve quinzenalmente às terças-feiras.
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