Paulo Roberto Pires
Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez em Lima, c. 1967 Divulgação
Personagem de romance e reality show, Vargas Llosa se associa a Paulo Guedes confirmando por que é assunto certo pelos motivos errados
Paulo Guedes e Mario Vargas Llosa formam o novo power couple do reacionarismo global. Estão num relacionamento sério: o Posto Ipiranga vai representar no Brasil na Fundación Internacional para la Libertad, agremiação fundada por Varguitas para normalizar as iniquidades do neoliberalismo como virtudes democráticas.
A escolha surpreende um total de zero pessoas. Adepto do “mal menor”, argumento maroto para apoiar Keiko Fujimori no Peru, José Antonio Kast no Chile e defender a eleição do Inelegível por aqui, o autor de A guerra do fim do mundo dá um tempo nos flertes com a barbárie afagando a inexpressividade. Mais um dia na rotina de um Nobel de Literatura que passou a frequentar mais e mais as editorias de política e celebridades.
A dois meses de lançar Le dedico mi silencio, seu vigésimo romance, e depois de ter sua reluzente vaidade polida pelo ingresso, em fevereiro, na Academia Francesa, o escritor de 87 anos segue em pauta por seu tirocínio político — ele sempre erra na mosca — e pela trepidante vida amorosa.
A dois meses de lançar seu vigésimo romance, o escritor de 87 anos segue em pauta por seu tirocínio político
Na New Yorker de 19 de julho, Graciela Mochkofsky traça um perfil breve e substantivo do que ela considera a aproximação de Llosa das ideias da “extrema direita”. Os posicionamentos do escritor, escreve ela, “certamente teriam horrorizado o jovem Vargas Llosa”. Os elogios ao Tea Party ou a ideia de que o feminismo é “inimigo” da literatura faz muitos pensarem, observa a jornalista argentina radicada nos Estados Unidos, se Llosa “realmente mudou ou se a mudança de contexto finalmente permitiu que ele expressasse o que já vinha pensando”.
Revistas como a Hola! têm sido menos duras com Llosa, que virou figurinha fácil na publicação desde que, em 2015, pôs fim ao casamento de cinquenta anos com Patricia, sua prima-irmã e mãe dos três filhos, para se unir a Isabel Preysler, socialite e ex-mulher de Julio Iglesias. As novas bodas também lhe renderam o papel de coadjuvante de reality show, o Lady Tamara, protagonizado pela enteada — influencer e vencedora de um MasterChef, dondoca e carola, filha de Preysler com um nobre espanhol.
Na série da Netflix há cenas impagáveis, com mãe e filha indo às compras em Nova York enquanto “Mario” fica no hotel lendo. “Ele não sabe quem é Jimmy Choo”, diverte-se a filha de Isabel, Tamara Falcó, sobre as lacunas fashion do padrasto. Sortuda, ela pode desfrutar de conselhos de Llosa sobre a edição de um livro de receitas e confessa a ele, folheando edições raras de Joyce e Mark Twain, o quanto Travessuras da menina má foi importante em sua formação.
Caminhos inusitados
Llosa também voltou ao noticiário por caminhos ainda mais inusitados, como personagem de ficção. Separado de Isabel desde dezembro de 2022, o escritor é a grande estrela, ao lado de Patricia, do romance Los genios. Jaime Bayly, ex-amigo malvado como só os ex-amigos conseguem ser, se valeu da convivência com o casal e, diz ele, de entrevistas e pesquisa, para reconstituir o rumoroso rompimento do escritor peruano com Gabriel García Márquez.
O ponto de partida de Los genios é bem conhecido. Foi em 1976, na Cidade do México, numa sessão de imprensa de La odisea de los Andes. “Hermano! Hermanazo!”, disse Gabo, braços abertos, indo ao encontro de Llosa, roteirista do documentário exibido naquela noite. “Isso é pelo que você fez à Patricia”, respondeu o amigo e compadre, depois de evitar o abraço com o puñetazo que os separaria para sempre.
‘Los genios’ joga com a expectativa de revelar o que Gabo teria feito, o segredo mais bem guardado do ‘boom’ latino-americano
Los genios joga com a expectativa de revelar o que Gabo teria feito a Patricia, o segredo mais bem guardado do boom latino-americano. Trata-se, na verdade, de pretexto para fazer uma crônica desabusada da relação entre os dois que se lê entre gargalhadas e alguma dose de constrangimento — umas e outra milimetricamente planejadas.
Na versão de Bayly, Varguitas é um macho alfa, mulherengo incorrigível e bom de briga. Nos momentos que precedem o murro, Patricia é uma mulher humilhada e ofendida por uma separação intempestiva e bota todas as fichas de redenção no projeto de tornar-se escritora. Quem a ampara é o casal Gabriel e Mercedes, os Gabos, e Carmen Balcells, a titânica agente literária que detonou — ou inventou — o boom.
A briga, talvez o único pugilato entre autores que seriam vencedores do Nobel de Literatura, não deixa de ter ressonâncias políticas — García Márquez sempre alinhado às esquerdas e especialmente fiel a Fidel Castro, Llosa em célere aproximação com a direita. Mas a Bayly interessa menos os ares rarefeitos da ideologia do que a dimensão sulfurosa das relações humanas — mais exatamente, a suposta noite que, por vingança, Patricia teria passado com Gabo.
O ‘puñetazo’ mais estrondoso da história da literatura também ocupará lugar central nas telas
Vargas Llosa não leu e não gostou de Los genios. Em entrevista ao El País em fevereiro, antes de o livro de Bayly ser publicado, vaticinou: “Un montón de mentiras”. Mas não deixa de alimentar as históricas suspeitas ao garantir a seu interlocutor, Manuel Jabois, que só há um motivo para romper amizade tão sólida: “Mulheres, simplesmente”.
A versão de Bayly ainda vai mais longe. Será transformada em série ficcional da produtora espanhola Brutal Media para a Netflix. O puñetazo mais estrondoso da história da literatura também ocupará lugar central em A agência do boom, outra série, ainda sem plataforma definida e dirigida por Óscar Pedraza, que contará a história do movimento a partir da ótica de Carmen Balcells, que será interpretada pela atriz espanhola Carmen Machi.
Filme por filme, eu prefiro o delírio hollywoodiano imaginado por Manuel Puig e enviado a Guillermo Cabrera Infante como presente de natal em 1967. Na maldade deliciosa do autor de A traição de Rita Hayworth, o elenco da literatura latino-americana para a MGM ficaria assim: Jorge Luis Borges é Norma Shearer (“Oh, tão refinada!”), Julio Cortázar é Hedy Lamarr (“Bonita, mas fria e distante”) e Carlos Fuentes, Ava Gardner (“Puro glamour, mas ela sabe representar?”). Gabriel García Márquez seria Liz Taylor (“Bonita, mas com essas pernas curtas.”). E Vargas Llosa, Esther Williams: “Oh, tão disciplinada (e entediante)”.
Fonte: https://www.quatrocincoum.com.br/br/colunas/critica-cultural/as-travessuras-de-varguitas?utm_source=news-doslivros&utm_medium=email&utm_campaign=newsletter 27jul2023 05h05 (28jul2023 05h36)
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