Natalia Figueiredo
Após assistir ‘Barbie’, que apresenta de forma tão didática nossa sub-representação no mundo dos homens, é impossível retirar as ‘lentes cor-de-rosa’ e contemplar ‘Openheimer’ na sequência sem elas
Pode ser difícil de imaginar, mas as duas grandes estreias cinematográficas do momento se encontram fortemente no dicotomismo de suas escolhas narrativas.
A história da boneca adulta que pode ser tudo e seu namorado que era apenas Ken é uma sátira divertida e certeira com questões femininas e existenciais de como é ser uma mulher fora da Barbielândia, no mundo real.
O live-action da diretora e roteirista Greta Gerwig acerta ao usar um recurso de inversão dos papéis esperados para cada gênero e com isso enfurecer os conservadores de plantão. Esses já anunciaram boicotes ao filme, mas nem de longe conseguiram impedir a onda rosa que já aponta como a maior bilheteria do ano no Brasil. Somente na estreia, em 20 de julho, a arrecadação foi de R$ 22,9 milhões, segundo a Comscore. É a maior estreia de um filme dirigido por uma mulher na história do cinema norte-americano.
No filme, Barbie, vivida por Margot Robbie, começa a apresentar defeitos e é aconselhada a viajar para encontrar a criança que brinca com ela. No mundo real, as coisas não eram bem como ela esperava e Barbie acaba sendo levada à “nave-mãe”, o prédio da empresa Mattel. Lá, ela se surpreende por não ter uma mulher no comando. Essa é uma das muitas autocríticas que a empresa vai fazer.
O problema, minha cara leitora, é que após assistir ao longa é impossível retirar as “lentes cor-de-rosa” despertadas por diretora e elenco, que apresentam de forma tão didática nossa sub-representação no mundo dos homens. Ao assistir “Openheimer”, na sequência, as lentes já estavam postas.
O filme do diretor Christopher Nolan é impecável e com certeza levará grande parte das estatuetas no Oscar, representando a categoria de “filmes sérios”. A temática mexe com nossa memória coletiva em um dos capítulos mais vergonhosos da história. Quando o físico Robert Oppenheimer trabalha com sua equipe de cientistas, a serviço do governo americano, no projeto Manhattan para o desenvolvimento da bomba atômica.
É impactante como um filme sobre física quântica consegue seguir envolvendo a plateia ao longo das três horas de exibição. Entretanto, choca ainda mais determinadas escolhas narrativas, que não cabem mais em nosso tempo, e não deveriam ser justificadas pela época dos acontecimentos históricos.
Em uma história tão importante, o roteiro consegue resumir a participação feminina na sexualização de seus corpos, na histeria na fala das personagens mulheres mesmo em momentos de lucidez e em coadjuvantes sem relevância no enredo.
A primeira mulher a ter um diálogo com o protagonista, interpretado por Cillian Murphy, é Jean Tatlock, psiquiatra, médica e membro do Partido Comunista. Os dois têm um debate rápido sobre roubo e propriedade privada, que parece mais um jogo de sedução do que uma primeira conversa entre duas pessoas extremamente capacitadas. Para nossa surpresa, ou não, 10 segundos depois, ela, somente ela, está nua na tela.
Perceba que esse era o primeiro diálogo em 30 minutos de sessão com alguém do sexo feminino. E faz parte da caracterização do protagonista viril, falho e “mulherengo”.
A personalidade da doutora Tatlock não é clara, ela é representada como alguém dependente emocionalmente, mas que odeia flores. Uma relação confusa, que não é aprofundada. Apenas a normalização de um papel bastante restrito que nos é dado. Se não há uma interação sexual, não vamos nos alongar.
Outra atuação a ser mencionada é de Emily Blunt, que interpreta a bióloga Kitty Oppenheimer, esposa do protagonista, que quando perguntada sua profissão, responde que no momento é especialista em cuidar do lar, para logo ser caracterizada como uma mulher descontrolada, alcoólatra, deprimida, histérica e péssima mãe.
Os dois filmes são extremamente dignos de serem assistidos nas telonas, mas interessante seria colorir um pouco o cinza de Nolan com as ideias cor-de-rosa de Gerwig
Ora, se não somos prêmios de consolação, esposas ou amantes, o que nos resta nas telas dos filmes feitos por homens para homens? A forma como mulheres são representadas está diretamente ligada a como somos tratadas, vistas, respeitadas ou reconhecidas na rua, no meio acadêmico e no mercado de trabalho. É um exercício de responsabilidade social as escolhas de como seremos representadas a milhares de espectadores em todo mundo.
É importante salientar que a representação justa de nossa voz e existência, não é sobre mudar a história, mas de contá-la como se deve. No livro “The Girls of Atomic City – The Untold Story of the Women Who Helped Win World War II” (As Garotas da Cidade Atômica – A História Não Contada das Mulheres que Ajudaram a Vencer a Segunda Guerra Mundial, em tradução livre), a autora Denise Kiernan retrata a história de cientistas a faxineiras que trabalharam no Projeto Manhattan.
São inúmeras mulheres, cujas histórias não ganharão grandes proporções e que participaram sem saber do enriquecimento do urânio que serviria às ogivas nucleares. “Elas eram maioria no local, mas proibidas de alugar casas – coisa que só os homens podiam fazer – e tinham de viver em pequenos dormitórios.” Mesmo que a ordem fosse de tratamento igualitário, negros viviam em alojamentos, sem direito a visitas.
As narrativas cinematográficas dominantes reforçam modelos femininos que precisam ser superados urgentemente. Quando nossos diálogos são resumidos a fins sexuais, nossos argumentos ganham tom de histeria e a participação é um mero adereço para ajustar uma gravata antes de um discurso. Erramos. E quem ainda não consegue ver, precisa se esforçar mais.
Em 1985, a cartunista americana Alison Bechdel criou um teste que mede a representação do papel da mulher. Ele é bem simples, mas certeiro. O Teste de Bechdel avalia se um filme faz bom uso de personagens femininas a partir de três regras: 1) ter duas personagens com nome; 2) ao menos uma cena em que elas conversem entre si; e 3) o papo não ser sobre homem.
Na época, Alison creditou a ideia do teste a uma amiga, Liz Wallace, que por sua vez se inspirou no ensaio “Um teto todo seu”, escrito por Virgínia Woolf em 1929.
Sabemos que, dificilmente, essa será uma crítica que afete o sucesso de “Openheimer”, uma obra-prima analógica de mais US$ 100 milhões. Mas foi considerado absurdo por muitos, o namorado de uma boneca ser representado como um idiota. Neste caso, acusações de guerra dos sexos e superioridade feminina crescem em comentários em páginas sociais sobre o filme.
O deboche é o trunfo de Gerwig para nos conectar a uma existência difícil, mas sua sensibilidade emociona. Como na cena que a boneca Barbie estereotipada encontra uma senhora e se depara com a beleza de envelhecer fora da perfeição de sua existência.
“Barbie” não vai dar conta de tudo, nem mesmo do desserviço que a boneca fez a milhares de meninas que sonharam com um padrão de beleza inalcançável. Mas a diretora convida justamente a olhar esses absurdos, que hoje não cabem mais, e retomar nossas lembranças mais antigas, de quem sonhávamos ser e que caminho tomamos.
As duas produções são extremamente dignas de serem assistidas nas telonas para acessar as grandiosidades dessas duas histórias - na ordem que preferir - interessante seria colorir um pouco o cinza de Nolan com as ideias cor-de-rosa de Gerwig.
Natalia Figueiredo é formada em comunicação pela UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro). Cursou videojornalismo na Universidade Columbia (EUA) e pós-graduação em Big Data e Inteligência de Marketing na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). Atua como estrategista digital, CMO e é co-fundadora da agência Outlab.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2023/07/29/%E2%80%98Barbienheimer%E2%80%99-dois-mundos-que-deveriam-se-conectar?posicao-home-esquerda=3
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