terça-feira, 4 de julho de 2023

ALAIN TOURAINE : UM SOCIÓLOGO-INTÉRPRETE

 Guilherme d'Oliveira Martins*

  

 Alain Touraine (1925-2023), recentemente 
desaparecido, é uma das grandes referências 
da Sociologia contemporânea.


Edgar Morin ao recordar o seu amigo Alain Touraine, de tantos combates comuns e de uma persistente partilha de valores, afirmou que uma das inovações mais importante que o sociólogo propôs teve a ver com a descoberta de que os movimentos objetivos da sociedade comportam para os seus atores uma forte e intensa subjetividade e que este reconhecimento do papel das pessoas é absolutamente capital. De facto, a originalidade e atualidade, do seu trabalho e da sua reflexão sobre os movimentos sociais centraram-se na compreensão de tudo o que tende a mover-se e a transformar a sociedade, considerando a subjetividade de toda a conduta humana. Daí a ligação entre liberdade, autonomia e complexidade que torna único o contributo de Touraine para a sociologia contemporânea. Como recordou Nuno Severiano Teixeira, Alain Touraine foi um sociólogo-intérprete preocupado nos tempos que correm com a grave crise de sentido nas nossas sociedades de capitalismo especulativo e incontrolável. O vazio de valores conduz à indiferença e ao puro relativismo ético que subalternizam a dimensão humana e põem em causa a democracia e o Estado de Direito. A democracia deve ser mais que um sistema de organização das sociedades, um sistema de valores – não pondo em causa o princípio fundamental consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de que todos nascem e devem viver livres e iguais em dignidade e direitos. Quando se desvanece o elo de legitimidade entre o Estado, a sociedade e a economia, pela fragilidade dos direitos, liberdades e garantias da pessoa humana, abrem-se os perigos do imediatismo, da demagogia e da tirania dos meios sobre os fins. E quando Alain Touraine falava de socialismo liberal, na senda de Carlo Rosselli e Norberto Bobbio, não se limitava a formular uma nova resposta ideológica, mas a considerar que a liberdade, a igualdade, a solidariedade, a coesão social e a confiança deveriam fortalecer-se, articular-se e completar-se. Hoje, perante a emergência climática, a defesa da biodiversidade e os desafios tecnológicos, essa ligação torna-se uma questão de sobrevivência. Daí a necessidade de haver instituições representativas de mediação, capazes de assegurar a cidadania ativa e a sustentabilidade global e complexa, integrando os aspetos sociais, económicos e financeiros e essencialmente culturais. Se temos assistido ao recuo nas experiências democráticas com a emergência de movimentos populistas e das supostas democracias iliberais, a verdade é que tal tendência tem-se devido à incompreensão da importância da legitimidade do exercício e da prestação de contas e à subalternização da procura de soluções estáveis centradas em consensos duradouros, não dependentes do eleitoralismo e da superficialidade. O planeamento estratégico torna-se, por isso, essencial, bem como a prestação de contas e a avaliação de resultados de forma objetiva e periódica.


ESPERANÇA DA HUMANIDADE
Para Alain Touraine, como para Edgar Morin, haverá, assim, que preservar a esperança na humanidade, privilegiando a noção de metamorfose, capaz de salvaguardar a liberdade, a responsabilidade e a criatividade da ação social e humana, baseadas num humanismo universalista e no respeito da dignidade humana. Mais do que preocupado com o que se mantém na vida social, Alain Touraine foi mestre da sociologia da ação. O fundamental seria compreender não a transformação como um fim em si, mas a mudança como fator de aperfeiçoamento e de compreensão. Não por acaso, o pensador afirmava que pertencia às últimas gerações educadas pela literatura e na sua adolescência o paradigma da atitude política estava em “L’Espoir” de André Malraux. Nos anos 50, o contacto de Touraine com a sociologia americana de Talcott Parsons e com a mentalidade do pós-guerra foi um choque. O jovem investigador preocupava-se com os problemas sociais e recebia influências contraditórias, que lhe permitiam compreender a complexidade, desde Ernest Labrousse e George Friedmann. O maquinismo industrial e o produtivismo levam-no a refletir sobre a raiz dos novos conflitos sociais. A experiência da produção automóvel na Fábrica Renault motiva uma reflexão aprofundada sobre uma nova sociologia, convergindo com Raymond Aron e lembrando-se de Georges Gurvitch e das suas lições. Havia que desenvolver uma disciplina científica aplicada aos movimentos sociais, à ação e à regulação dos conflitos reais. Haveria que adotar uma atitude sociológica em rutura crítica com as categorias de ordem social, as ideologias e as pressões dos poderes – a fim de se descobrir como as sociedades se constituem e se transformam.


SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL
A “sociedade pós-industrial” tinha de ser entendida, porque a chegada desse novo tipo de organização baseava-se na aparição de um novo modo de conhecimento e de uma nova representação da natureza, exigindo-se maior capacidade reflexiva e uma orientação de sentido visando compreender a criação de riqueza e a representação dessa criatividade. O tema do reconhecimento dos direitos e das questões de identidade torna-se, assim, fundamental – e a “Sociologia da ação” procura encontrar uma chave explicativa para os novos movimentos sociais – desde o exemplo de maio de 1968 às movimentações contra a energia nuclear. No campo internacional, os acontecimentos do Chile que culminam na chegada ao poder de Pinochet e as reivindicações democráticas na Polónia constituem para o sociólogo exemplos a exigir uma atenta compreensão do que surge de novo, até pelos seus efeitos contraditórios. O fundamental não seria o surgimento de movimentos circunstanciais, mas o desenvolvimento de projetos de mudança da sociedade. O movimento feminista tornou-se, assim, um paradigma das novas realidades, com uma orientação moderna e inventiva. E torna-se essencial conhecer o modo como as sociedades se representam a si mesmas e com que prioridades. Assim o tema da democracia e a exigência do seu enraizamento, em lugar da indiferença, obrigam ao combate político, cultural e ético na procura do “direito de ter direitos” (na expressão de Hannah Arendt) – até porque esses mesmos direitos estão acima das leis. E ao pôr a tónica em tais temas, Alain Touraine apercebe-se cedo da crise das democracias e da emergência dos populismos, pondo a tónica no Estado de direito e nas suas instituições mediadoras, segundo o primado dos direitos humanos e de uma ética de responsabilidade.    

*Jurista e político português.

Fonte:  https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-vida-dos-livros-1499215


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