Guilherme d'Oliveira Martins*
Edgar
Morin ao recordar o seu amigo Alain Touraine, de tantos combates comuns
e de uma persistente partilha de valores, afirmou que uma das inovações
mais importante que o sociólogo propôs teve a ver com a descoberta de
que os movimentos objetivos da sociedade comportam para os seus atores
uma forte e intensa subjetividade e que este reconhecimento do papel das
pessoas é absolutamente capital. De facto, a originalidade e
atualidade, do seu trabalho e da sua reflexão sobre os movimentos
sociais centraram-se na compreensão de tudo o que tende a mover-se e a
transformar a sociedade, considerando a subjetividade de toda a conduta
humana. Daí a ligação entre liberdade, autonomia e complexidade que
torna único o contributo de Touraine para a sociologia contemporânea.
Como recordou Nuno Severiano Teixeira, Alain Touraine foi um
sociólogo-intérprete preocupado nos tempos que correm com a grave crise
de sentido nas nossas sociedades de capitalismo especulativo e
incontrolável. O vazio de valores conduz à indiferença e ao puro
relativismo ético que subalternizam a dimensão humana e põem em causa a
democracia e o Estado de Direito. A democracia deve ser mais que um
sistema de organização das sociedades, um sistema de valores – não pondo
em causa o princípio fundamental consagrado na Declaração Universal dos
Direitos Humanos, de que todos nascem e devem viver livres e iguais em
dignidade e direitos. Quando se desvanece o elo de legitimidade entre o
Estado, a sociedade e a economia, pela fragilidade dos direitos,
liberdades e garantias da pessoa humana, abrem-se os perigos do
imediatismo, da demagogia e da tirania dos meios sobre os fins. E quando
Alain Touraine falava de socialismo liberal, na senda de Carlo Rosselli
e Norberto Bobbio, não se limitava a formular uma nova resposta
ideológica, mas a considerar que a liberdade, a igualdade, a
solidariedade, a coesão social e a confiança deveriam fortalecer-se,
articular-se e completar-se. Hoje, perante a emergência climática, a
defesa da biodiversidade e os desafios tecnológicos, essa ligação
torna-se uma questão de sobrevivência. Daí a necessidade de haver
instituições representativas de mediação, capazes de assegurar a
cidadania ativa e a sustentabilidade global e complexa, integrando os
aspetos sociais, económicos e financeiros e essencialmente culturais. Se
temos assistido ao recuo nas experiências democráticas com a emergência
de movimentos populistas e das supostas democracias iliberais, a
verdade é que tal tendência tem-se devido à incompreensão da importância
da legitimidade do exercício e da prestação de contas e à
subalternização da procura de soluções estáveis centradas em consensos
duradouros, não dependentes do eleitoralismo e da superficialidade. O
planeamento estratégico torna-se, por isso, essencial, bem como a
prestação de contas e a avaliação de resultados de forma objetiva e
periódica.
ESPERANÇA DA HUMANIDADE
Para
Alain Touraine, como para Edgar Morin, haverá, assim, que preservar a
esperança na humanidade, privilegiando a noção de metamorfose, capaz de
salvaguardar a liberdade, a responsabilidade e a criatividade da ação
social e humana, baseadas num humanismo universalista e no respeito da
dignidade humana. Mais do que preocupado com o que se mantém na vida
social, Alain Touraine foi mestre da sociologia da ação. O fundamental
seria compreender não a transformação como um fim em si, mas a mudança
como fator de aperfeiçoamento e de compreensão. Não por acaso, o
pensador afirmava que pertencia às últimas gerações educadas pela
literatura e na sua adolescência o paradigma da atitude política estava
em “L’Espoir” de André Malraux. Nos anos 50, o contacto de Touraine com a
sociologia americana de Talcott Parsons e com a mentalidade do
pós-guerra foi um choque. O jovem investigador preocupava-se com os
problemas sociais e recebia influências contraditórias, que lhe
permitiam compreender a complexidade, desde Ernest Labrousse e George
Friedmann. O maquinismo industrial e o produtivismo levam-no a refletir
sobre a raiz dos novos conflitos sociais. A experiência da produção
automóvel na Fábrica Renault motiva uma reflexão aprofundada sobre uma
nova sociologia, convergindo com Raymond Aron e lembrando-se de Georges
Gurvitch e das suas lições. Havia que desenvolver uma disciplina
científica aplicada aos movimentos sociais, à ação e à regulação dos
conflitos reais. Haveria que adotar uma atitude sociológica em rutura
crítica com as categorias de ordem social, as ideologias e as pressões
dos poderes – a fim de se descobrir como as sociedades se constituem e
se transformam.
SOCIEDADE PÓS-INDUSTRIAL
A
“sociedade pós-industrial” tinha de ser entendida, porque a chegada
desse novo tipo de organização baseava-se na aparição de um novo modo de
conhecimento e de uma nova representação da natureza, exigindo-se maior
capacidade reflexiva e uma orientação de sentido visando compreender a
criação de riqueza e a representação dessa criatividade. O tema do
reconhecimento dos direitos e das questões de identidade torna-se,
assim, fundamental – e a “Sociologia da ação” procura encontrar uma
chave explicativa para os novos movimentos sociais – desde o exemplo de
maio de 1968 às movimentações contra a energia nuclear. No campo
internacional, os acontecimentos do Chile que culminam na chegada ao
poder de Pinochet e as reivindicações democráticas na Polónia constituem
para o sociólogo exemplos a exigir uma atenta compreensão do que surge
de novo, até pelos seus efeitos contraditórios. O fundamental não seria o
surgimento de movimentos circunstanciais, mas o desenvolvimento de
projetos de mudança da sociedade. O movimento feminista tornou-se,
assim, um paradigma das novas realidades, com uma orientação moderna e
inventiva. E torna-se essencial conhecer o modo como as sociedades se
representam a si mesmas e com que prioridades. Assim o tema da
democracia e a exigência do seu enraizamento, em lugar da indiferença,
obrigam ao combate político, cultural e ético na procura do “direito de
ter direitos” (na expressão de Hannah Arendt) – até porque esses mesmos
direitos estão acima das leis. E ao pôr a tónica em tais temas, Alain
Touraine apercebe-se cedo da crise das democracias e da emergência dos
populismos, pondo a tónica no Estado de direito e nas suas instituições
mediadoras, segundo o primado dos direitos humanos e de uma ética de
responsabilidade.
*Jurista e político português.
Fonte: https://e-cultura.blogs.sapo.pt/a-vida-dos-livros-1499215
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