Por Marta Rebelo*
Quando um comediante se suicida, a plateia pasma e não compreende. Não cabe nos nossos estereótipos de doença mental e de infelicidade, na nossa preconceção muito rudimentar: comediar é riso, rir é bem-estar. Na mente coletiva impregnada de estigma, é paradoxal que alguém do humor possa estar esfarelado por dentro, fazer rir em pleno sofrimento, permitir-nos libertar endorfinas e serotonina quando este neurotransmissor lhe falta e o sistema serotoninérgico falha as comunicações no cérebro. Vivemos num constante esforço positivista, ignorante da dualidade das coisas, preferindo mil vezes o palhaço alegre e tolo ao palhaço triste. E vamos escolhendo surpreender-nos com a decisão alheia de deixar de viver, em vez de enfrentar a realidade: cerca de 800 mil pessoas suicidam-se e 16 milhões tentam, anualmente – mais de 90% têm sintomas patentes ou diagnósticos de doença mental. Quem tenta reincide na tentativa. O suicídio é a 2.ª causa de morte na Geração Z. Em 2023, ainda vamos a meio e já se suicidaram 431 mil pessoas. Mas o suicídio é um dos fins de uma linha em que tudo está mal: porque é que cada vez mais pessoas não conseguem aguentar a dor e viver, e milhões vivem em sofrimento mental? Esta é a pergunta do milhão de sorrisos – que conquistaremos quando assumirmos que todos, em algum momento, fomos e somos o palhaço triste.
A síndrome do palhaço triste. Os humoristas são mais suscetíveis à depressão e outras doenças mentais? Freud dizia que os comediantes contam piadas para aliviar a ansiedade, e no estudo “A psicologia de um palhaço triste”, a Universidade de Oxford conclui que os elementos criativos necessários à produção de humor são semelhantes aos traços das pessoas esquizofrénicas ou bipolares. No entanto, não existe qualquer evidência científica que valide a existência desta síndrome. Encontra raízes na psicanálise, mas a psicologia contemporânea já se abandonou esta teoria.
O perfil emocional do humorista não é particularmente ansioso ou depressivo, é igual ao de todos nós – uma montanha-russa de emoções, portanto, expostos à verdadeira pandemia do século XXI: mal contados, 2 mil milhões de pessoas têm ou já tiveram doenças mentais. São cerca de 3 milhões, em Portugal. Nesta dimensão avassaladora da nossa coletiva falta de saúde mental, cabem todas as profissões do mundo.
50% das doenças mentais instalam-se até aos 14 anos, e 75% até aos 24 anos. Ou seja, metade dos adultos com doenças mentais ficou doente na infância, e 2/3 na adolescência e início dos vintes. Dito de outra forma, para dar ênfase à nossa cegueira: só 25% dos doentes mentais ficaram doentes na idade adulta. Se a estas percentagens juntarmos a ausência de diagnóstico e, em 70% dos casos, de tratamento especializado na infância e adolescência, de estratégias preventivas, de políticas de literacia para a saúde mental, mais a manutenção desta incapacidade sistémica para tratar sintomas e doenças mentais ao longo da vida, conseguimos perceber o enredo deste filme que tantas, demasiadas vezes tem o mais dramático dos finais – 60% das pessoas com doenças mentais não recebe qualquer tratamento. Por cá, esperam-se 3 meses para uma consulta de psiquiatria quando já está sinalizada a gravidade da doença; se a triagem atirar para menor graveza, pode esperar-se até 4 anos. Quanto tempo acham que uma pessoa com ideação suicida espera até ser atendida, antes de se suicidar ou pelo menos tentar?
O estigma. Esta crise pandémica é perpetuada por um estigma entranhado na sociedade, nos decisores, nas empresas, nas nossas cabeças. É feito de preconceitos – humorista faz rir, está ótimo; de estereótipos – os comediantes são artistas, e os artistas são “loucos”, excêntricos, mas não doentes mentais; e da consequente discriminação. Ainda ninguém se dedicou a contabilizar o estigma, mas não é preciso: somos 8 mil milhões na terra, entre auto-estigma e preconceitos de intensidade variada, o número é este. E o suicídio é tema fértil para todas as vergonhas.
Ainda hoje sociedade e media se guiam pela cartilha do segredo. As teses “científicas” de que falar sobre o suicídio e noticiar suicidas gera um efeito mímico e crescimento suicidário, são ridículas mas só agora começam a ser desmontadas. Porventura acham que alguém precisa de manual de instruções para se matar? Ou que, sem que esteja mergulhado num sofrimento excruciante, insuportável, sem vislumbre de saída, alguém decide desistir da vida porque viu nas notícias? É exatamente ao contrário, senhores! Somos bichos de tribo, saber que há universalidade na dor, no desespero e na doença mental integra-nos, permite-nos perceber que não estamos sozinhos. Que não somos mais desajustados, infelizes, culpados, preguiçosos, caprichosos que os demais – porque não somos nada disso, estamos doentes. Há um enorme poder curativo e preventivo nesta identificação com os outros.
É crucial informar e ensinar a reconhecer o risco de suicido em nós próprios e nos outros, estimular os pedidos de ajuda – e ter estruturas capazes de ajudar. É crucial ultrapassar todo este estigma que nos empata a existência e leva (cada vez mais) perto de um milhão de nós por suicídio. Nós não usamos nariz de palhaço, mas abusamos quotidianamente das máscaras sociais do “está tudo bem”, da depressão funcional, da ansiedade automedicada, como se viver mascarados fosse força e vulnerabilidade defeito.
Eu, que nunca fiz senão piadas de salão, dou o exemplo: já falei muitas e públicas vezes da minha tentativa de suicídio, em 2009. Este é a minha segunda crónica, aqui, sobre suicídio (aqui a primeira). O que nunca disse em canal aberto é que aos 15 anos tentei, desestruturadamente, a primeira vez. A minha depressão arquitetou-se na infância, e apesar de manifesta na adolescência, não teve atenção especializada. As minhas doenças mentais instalaram-se até aos 14 anos, não recebi tratamento, fui adolescente com ideação e tentativa suicida, e voltei a tentar – um pleno estatístico. Teria sido uma adulta mais saudável se tivesse sido, miúda, tratada. Se não me tivesse(m) obrigado ao segredo estigmatizado da doença mental.
Ainda fui a tempo. Vamos quase todos – menos os 431 mil que já perdemos este ano.
* Consultora de comunicação, ex-deprimida e ansiosa ocasional. Jurista de formação, autodidata em falências da mente por imperativo de sobrevivência e tendencial mudadora de preconceitos, números e injustiças. Ex-deputada e assistente universitária, cronista, sobretudo comunicadora porque só falando é que nos entendemos
Fonte: https://visao.pt/opiniao/a-grande-d/2023-07-05-porque-nos-causa-espanto-o-suicidio-de-humoristas/
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