Por Clara Soares Jornalista
Tem 31 anos e a missão de levar a música clássica a todos, num registo acessível. Desde que se formou em Ciências Musicais e Direção de Orquestra, entre Lisboa, Milão e Chicago, com honras académicas, escolheu voltar a Portugal e fundar a Orquestra Sem Fronteiras, que continua a promover talentos em zonas com baixa densidade e lhe valeu vários prémios, um deles do Parlamento Europeu. Colaborou com orquestras de vários países, é maestro titular da Orquestra do Algarve, compõe para teatro, ópera e outros, além de coordenar a programação da candidatura de Aveiro a Capital Europeia da Cultura 2027. O estilo eclético e inovador, que se nota nos seus textos, palestras, podcasts e programas de rádio e de televisão, faz dele uma figura popular e incontornável. Ao longo de uma hora, na sala da sua casa, com muitos quadros para pousar os olhos, porque “estar rodeado de beleza, às vezes, faz a diferença”, falou sobre a música que lhe vai na cabeça e outros temas.
Costuma dizer que é tímido, nerd e detesta trabalhar, mas vendo o seu percurso… é mesmo assim?
A
timidez é uma característica de nascença, extrema e incapacitante: se a
mãe de um colega de escola me convidava a passar um fim de semana lá em
casa e eu dizia que sim mas a minha mãe percebia que não, ela arranjava
uma desculpa para eu não ir. Aprendi a ultrapassar isso, mas sou uma
pessoa que está bem sozinha, no seu silêncio. O nerd e “rato de
biblioteca” também é fácil de justificar: há três dias fui à Feira do
Livro, já despachei dois deles e vou a meio do terceiro. Não gostar de
trabalhar é a mais pura das verdades: gosto muito do que faço, mas se
pudesse não fazia. Nascemos para o ócio e os prazeres da vida, mas só
não ponho essa filosofia em prática porque me falta a coragem para
fazê-lo, e até vivo numa espécie de hipertrofia de produção de
conteúdos.
Como é um dia normal para si e como mantém a serenidade?
Todas
as semanas ponho dois podcasts cá fora, um texto no Observador, estou a
gerir duas orquestras e um festival [Festival de Sintra], a fazer
arranjos orquestrais de um disco que sai em breve, a escrever música
para um espetáculo a estrear no ano que vem e a avaliar candidaturas
para um concurso de música. Projetos como a Orquestra Sem Fronteiras
vivem muito do mecenato, é preciso falar em público e muita organização.
Tento hierarquizar e espaçar compromissos, e quem me conhece sabe que
não respondo logo a tudo, pois já me queimei com isso.
Pode dar um exemplo?
Amigos
a terem filhos que eu ainda não vi e espaço para a minha vida pessoal.
Com o tempo, fui ganhando alguma segurança para não ter de apagar os
fogos todos e vou deixar algumas coisas que tenho vindo a fazer nos
últimos anos, antes que se transformem em rotinas, que seria um
apodrecimento.
Como é o seu processo criativo?
Quando me
convidam para fazer palestras que ligam a música a outros temas –
medicina, ecologia, tecnologia – faço pesquisa e encontro na música
clássica um ponto de partida para observar qualquer fenómeno da vida. É
um exercício de elasticidade do pensamento: não ensino, mostro um
caminho.
Mas fez um seminário de mestrado na Universidade Nova de Lisboa.
Sim,
e voltei a casa com a certeza de que ensinar é um precedente que não
vou abrir. Gosto da partilha, mas a ideia de avaliar alguém com base
naquilo que eu transmiti, e isso tornar-se um dogma, assusta-me.
Democratizar o acesso à música clássica e fazê-la chegar às novas gerações é uma meta ganha?
Tenho
sentido que começo a ficar muito rotulado com duas coisas. Uma é a
minha geração: eu não falo em nome de todos os jovens. Outra etiqueta
que procuro quebrar é a de ser o descentralizador, o homem das aldeias; é
uma audácia e não conheço ninguém que seja maestro e dirija concertos
com orquestra nos sítios onde vou, mas também trabalho em Lisboa e no
Porto.
A imagem do maestro que vive num mundo fechado ainda é real, como ilustra o filme Tár?
Fui
coagido a ver e a escrever sobre ele pela quantidade de perguntas que
me faziam! Sim, esse mundo ainda existe, embora as instituições o
reconheçam e tentem ganhar alguma porosidade.
O que trouxe da sua formação entre Lisboa, Milão e Chicago e incorpora na forma de trabalhar?
Isto
pode soar pretensioso, mas aprendi muito mais fora das escolas onde
andei, conheci pessoas com percursos de vida distintos e tento perceber
os caminhos por onde não quero ir. A escola que frequentei, nos Estados
Unidos da América, era muito elitista, entravam muito poucos alunos com
uma orquestra à disposição, mas éramos como cavalos de corrida:
estávamos ali para aprender depressa e ter resultados excelentes. Tudo
era competição, nesta lógica de ser melhor, e não me revejo nessa forma
de estar. O meu plano era sair de lá para uma orquestra americana ou
europeia, mas refleti sobre o que aprendi naqueles dois anos, fiz as
malas e vim para Idanha-a-Nova para dar o meu contributo como artista e
fazer uma orquestra no Interior, algo mais altruísta do que esperava.
Considera-se um ativista?
Sim. Descentralizar não
é só ir às aldeias. Os índices de participação são um barómetro social
de uma comunidade. Se as pessoas não saem de casa nem têm hábitos de
participação cultural, o nível de cidadania não é bom, está doente. Há
que identificar as pessoas dos territórios e perguntar porque é que não
vão à música clássica. Se for por barreiras económicas, há formas de
combatê-las através de concertos gratuitos, descontos e incentivos. As
barreiras sociais são mais complexas, pelo estigma: não saber quando
bater palmas, como vestir-se, comportar-se ou não perceber aquela
música. Podemos não ser tão terroristas da etiqueta e dar ferramentas às
pessoas para que a música faça sentido para elas.
Como está a correr a programação da Orquestra Clássica do Sul?
A
partir deste ano, voltou à designação original, Orquestra do Algarve,
pela defesa do território algarvio através da música clássica e da
cultura. Temos programação até agosto de 2026, queremos expandir o seu
alcance regional e chegar a sítios e pessoas que nunca foram a um
concerto de orquestra e a jovens de lugares remotos.
O que pensa do Orçamento da Cultura, que cresceu mas está longe da meta de 1%?
As
chamadas indústrias criativas já provaram que dão retorno – dez euros
por cada um investido – e está na hora de falar em investimentos, porque
o Ministério da Saúde ou da Educação fazem o que lhes compete, não dão
apoios, embora esta palavra perversa persista e nos coloque, enquanto
artistas, numa posição horrível. Não estamos a pedir esmola e damos mais
do que aquilo que recebemos. É uma coisa subconsciente, mas até os
leigos veem isto: o apoio é para quem não quer fazer, no investimento
põe-se dinheiro porque se espera que isso se transforme em qualquer
coisa.
Concorda com a quota de 30% de música portuguesa nas rádios?
Acho
mal. É abrir um precedente triste, devemos apoiar os nossos artistas
porque queremos e não por sermos obrigados por lei, senão temos de fazer
uma quota na literatura, no cinema, na dança e acabamos como Itália nos
anos 20 [período da ascensão do fascismo, de Mussolini].
Como lida com a adrenalina, no palco e na vida?
Quando
estou preparado, sinto-me muito bem. Tento transformar os nervos em
pica e ver o lado bom da adrenalina, é o “não vejo a hora de estar ali a
entregar este produto”, enquanto que os nervos é “ai meu Deus, quando
lá chegar, vai correr mal”. Já tive uma audição de piano em que fiquei
ansioso antes de ir para o palco e precisei de ver todas as partituras,
em silêncio, uma a uma, para confirmar que as notas eram aquelas, dada a
enorme desconfiança nas minhas capacidades. Hoje, assumo isto como uma
dança e são raros os concertos em que fico nervoso. O importante é ser
flexível, porque nunca vai ser como imaginamos.
Falemos da dupla com Hugo van der Ding, com quem trabalha há uns anos. O que vos une?
Não somos primos, nem irmãos, nem amantes [risos].
Perdi a conta às vezes que me perguntam isso e, quando punha o meu nome
no Google, o motor de busca sugeria “namorado Hugo van der Ding” por
ser o que as pessoas procuravam mais! Aquilo que somos está acima disso
e, literalmente, monetizámos a nossa amizade! Quando nos conhecemos,
começámos a magicar um programa televisivo para propor à RTP. Tínhamos
um amigo em comum, o Nuno Artur [Silva], que se lembrou de nos pôr a
fazer uma coisa juntos, mas foi nomeado secretário de Estado e o projeto
ficou na gaveta. O Hugo avançou para os Breves Apontamentos sobre Arquitetura e depois surgiu o convite da Antena 3 para um podcast. No Era Uma Vez Duas Pessoas a Conversar –
temos o podcast na FLAD –, a ideia é levar quem nos ouve a saber mais
de coisas relacionadas com a História contemporânea que pouca gente
sabe, há imensos cruzamentos de histórias de portugueses e de
americanos. Cada um de nós escolhe temas e vai aprofundá-los, são
bibliotecas de curiosidades.
O que mais o surpreendeu na relação com o público que o segue?
Não
sei quem são as pessoas que me ouvem ou leem, mas existem, entram em
contacto e é um exercício de humildade que obriga uma pessoa a voar
baixinho.
Isso leva-me às suas influências familiares. O que absorveu dos seus pais na sua forma de ser?
Da
minha mãe, claramente, a serenidade e o não gostar de confrontos. O meu
pai alimenta-se disso, é raçudo, combativo, quando começa uma discussão
é como um fósforo a pegar fogo numa lareira, não é uma acendalha! Nele
aprecio o exercício intransigente de ser livre, o ter direito à opinião.
Acredito em coisas e luto por elas, embora fique menos exposto, pois a
música clássica não é fazer comentário político e não levo tantas balas.
Apetece perguntar onde se situa, entre os modelos religioso e ateu, por exemplo.
Tento
manter-me de mente aberta. Faço parte do conselho editorial da
Brotéria, mas digo sempre que estou lá pela Cultura. Sei que há pessoas a
achar que sou beato, outras que sou artista, de esquerda e ateu, e a
outras cai-lhes mal se eu for católico, se for à missa ao domingo. A
incapacidade de compreensão também é uma forma de conservadorismo.
Andar de mota valeu-lhe um susto de morte. O que mudou depois?
Achei
que ia ter receio de voltar a andar de mota. Pedi uma emprestada e não
me senti traumatizado. Com o dinheiro da indemnização do acidente, de
que não tive culpa, comprei uma maior e mais segura: tem ABS, dois
travões de disco na roda da frente, vê-se melhor na estrada e, como anda
mais, safo-me de situações chatas com o acelerador!
Quais são os seus hobbies?
Leio muito, coleciono
arte e, de vez em quando, perco-me nos leilões. Como passo muito tempo
em casa, ao computador, estar rodeado de beleza, às vezes, faz a
diferença: pousar os olhos num quadro pode mudar tudo. E faço exercício
para reforço muscular, porque nos concertos passo muitas horas em pé.
“Bater na mesma tecla.” Qual é a sua tecla favorita?
Sou
bom a dar na tecla, “a música clássica é mesmo fixe e toda a gente pode
gostar dela”, mas se pudesse batia sempre na tecla do ócio.
E a sua melhor definição de amor?
A generosidade,
quando se transforma em abnegação. Isso vê-se numa relação entre duas
pessoas, mas também na profissão: se não a fizesse por amor, já tinha
parado há muito tempo.
Fonte: https://visao.pt/ideias/2023-07-02-sei-que-ha-pessoas-a-achar-que-sou-beato-outras-que-sou-artista-de-esquerda-e-ateu-e-a-outras-cai-lhes-mal-se-eu-for-catolico-se-for-a-missa-ao-domingo/
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