Por José Brissos-Lino*
Recentemente deu-se um caso inusitado na Alemanha, mas muito ilustrativo dos novos tempos que estamos a viver. Mais de 300 pessoas fizeram fila à porta duma igreja protestante em Nuremberga para participaram num serviço religioso que foi gerado quase exclusivamente por inteligência artificial. O já famoso ChatGPT foi capaz de orientar essa multidão através de quarenta minutos de oração, música, sermões e bênçãos. Jonas Simmerlein, um teólogo e filósofo da Universidade de Viena, confessou ter ajudado a máquina em apenas cerca de dois por cento, sendo o resto gerado por IA.
Segundo o “The Journal” este serviço religioso enquadrou-se num conjunto vasto de eventos da convenção protestante bianual, a Deutscher Evangelischer Kirchentag, que congrega habitualmente milhares de fiéis para cantar, orar e discutir a fé. Nesse sentido, este ano incluiu discussão sobre assuntos globais da actualidade para os quais se buscam soluções, como o aquecimento global, a guerra na Ucrânia e a inteligência artificial.
A curiosidade dos fiéis foi satisfeita mas deixou algumas reticências na assistência. Desde logo por que os avatares utilizados apresentavam-se de rosto inexpressivo e voz monocórdica, o que não entusiasma ninguém. Por outro lado os avatares acabaram por ridicularizar o sermão quando proferiam banalidades, sempre de rosto impassível.
Uma testemunha afirmou que faltava coração e alma ao discurso, o que se tornou crescentemente desanimador, “os avatares não demonstravam nenhuma emoção, não tinham linguagem corporal e falavam tão rápido e monótono que era muito difícil para mim concentrar-me na fala.”
Porventura esta será a grande diferença entre o sermão virtual e o real, pelo menos para já, ainda que a IA possa fazer bem melhor, por exemplo ao utilizar a voz humana, com um timbre conveniente à situação específica e uma entoação mais semelhante com o que é natural.
A experiência alemã foi interessante para ver até que ponto a religião pode vir a ser invadida por ferramentas deste tipo, num mundo em que a espontaneidade parece estar entregue apenas aos grandes espectáculos de massas como futebol e concertos de rock onde a emoção e a espontaneidade pontificam.
Se as instituições religiosas se deixarem amarrar a expedientes destes morrem, pois a emoção, o sentimento e a razão não são separáveis nas coisas da fé. Os seres humanos são racionais mais também emocionais. A fé cristã esclarecida move-se também no domínio do racional. S. Paulo enuncia o “culto racional”: “Rogo-vos, pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1). E até o alimento espiritual é “racional”: “Desejai afetuosamente, como meninos novamente nascidos, o leite racional, não falsificado, para que por ele vades crescendo” (1 Pedro 2:2).
Porém, a fé não é racional e muito menos irracional, apenas pertence a outra dimensão e por isso não pode ser avaliada apenas pela razão. Não pertence à imanência mas à transcendência, aquilo que está para lá de nós, tanto da nossa capacidade de sentir (os místicos que o digam) como de pensar. Se a fé fosse mera racionalidade não passava de filosofia, se fosse apenas emoção não ia além de psicologia, se se limitasse a um fenómeno de massas ficava-se pela sociologia.
No fundo, talvez ainda seja a complexidade do fenómeno religioso e a fenomenologia da experiência religiosa que venham a salvar a religião dos avanços da IA que se adivinham. Mas podemos dizer o mesmo da política, uma actividade humana que não funciona sem emoção. Ou do desporto.
Sim, podemos um dia ter robôs a jogar futebol com muito melhor desempenho do que os atletas humanos, mas quem se interessará por isso? Quem se sentará nas bancadas para aplaudir? Como se poderão apreciar as boas jogadas se não se produzirem jogadas más? Sem árbitros humanos contra quem poderão os espectadores projectar as suas frustrações pessoais? Como poderá tal coisa influenciar crianças e adolescentes? E que motivos justificarão então a existência de uma imprensa desportiva?
A grande perversão é que a IA tem engolido todo o material digital elaborado pelos humanos e publicado na web, e agora parece querer ir mais longe e começar a enchê-la com conteúdos construídos por si mesma, donde irão transitar para as redes sociais, os sites de comunicação social e eventualmente o universo académico. Não faltará muito para ser impossível separar a produção humana da IA generativa.
O recente falhanço do moderníssimo Titan (do Ocean Gate) e as mortes que provocou deviam fazer-nos compreender que, por muito perfeitas que sejam as máquinas, podem sempre falhar, tornando-se perigosamente fatais. Tal como a IA em mãos erradas.
* Doutorado em Psicologia, é especialista em Ética e em Ciência das Religiões; professor catedrático (ISP Atlântida, Luanda), diretor do Mestrado em Ciência das Religiões (Universidade Lusófona); coordenador do Instituto de Cristianismo Contemporâneo e do NEPRE-Núcleo de Estudos em Psicologia da Religião e Espiritualidade; director das revistas científicas Ad Aeternum (Portugal) e Olhar Científico (Angola); investigador do CLEPUL (Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias, Universidade de Lisboa) e do LUSOGLOBE (Lusófona Centre on Global Challenges). Desenvolve há muitos anos intensa atividade em instituições culturais, humanitárias e de solidariedade social, algumas das quais fundou. Poeta e ficcionista.
Fonte: https://visao.pt/opiniao/vestigios-de-azul/2023-06-28-fatal-como-o-titan/
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