O bolso do mistério: Ah! Tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não entendo a sua pergunta porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra “acreditar”.
E se eu respondesse elas receberiam apenas uma mentira, embora eu tivesse falado a verdade.As palavras são enganosas... Palavras são bolsos, bolsos vazios. À medida em que a gente vai vivendo, a gente vai pondo coisas dentro do bolso. O bolso que tem o nome Deus fica cheio das quinquilharias que catamos pela vida.
Assim, quando falamos sobre Deus, não falamos sobre Deus. Falamos é sobre as coisas que guardamos dentro desse bolso. Assim, se eu respondesse “acredito em Deus”, a outra pessoa se enganaria pensando que dentro do meu bolso eu guardo as mesmas coisas que ela guarda no seu. E concluiria mais: que eu sou uma boa pessoa. Mas, se tivesse dito que não acredito em Deus, ela concluiria que não sou uma boa pessoa.
No filme A Linguagem das Mariposas, passado ao final da guerra espanhola, a aldeia inteira assistie às prisões dos que seriam fuzilados. (O padre sabia e, ao lado dos fuzis, se preparava para a absolvição dos pecados...) E a acusação suprema de impiedade que era lançada contra os caminhantes “dali a pouco cadáveres” era: “Ateus!”. Mas o que importava mesmo era que o generalíssimo Franco acreditava em Deus e era católico de comunhão diária... Muitas pessoas guardam mortes no bolso que têm o nome de Deus.
“Acreditar”, no sentido comum que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres, castigos divinos, inferno, céu, purgatório...
No meu bolso sagrado, “acreditar” é palavra que não entra. Ele está cheio com palavras que têm a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não exista. Lembro-me das palavras de Valéry: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”.
Eu amo a beleza da natureza, da música, de um poema. Amo a beleza das palavras de amor e de bondade que se trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto. Acho que Bachelard adoraria nos mesmos altares que eu: “A inquietação que temos pela criança”, ele escreveu, “sustenta uma coragem invencível”. Uma criança é um pequeno deus.
Para mim, a beleza é sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo Grande Mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói a sua teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim, são partes do meu corpo. Teço a minha teia com poesia e música.
De Deus só temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus no mundo. Sobre ele — ou ela — deve-se calar — muito embora as religiões sejam por demais tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam possuidoras do monopólio das palavras certas — a que dão o nome de dogmas.
Estou de acordo com Alberto Caeiro: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que não o conhecêssemos. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela porta a dentro dizendo-me “Aqui estou!”.
E, de acordo também com Walt Whitman: “E à raça humana eu digo: — Não seja curiosa a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso sobre Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos os objetos, embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho...”.
Eu já nem tenho mais o bolso com o nome “Deus”. Ele se presta a muitas confusões. Mas tenho um bolso com o nome “o Grande Mistério”. Mas não sei o que está dentro dele. É mistério...
(Rubem Alves. Badulaques 120. Correio Popular/Campinas on line, 27/05/2007)