- Em ‘vida líquida’ o senhor fala de forças que mantém os indivíduos em silêncio e, ao mesmo tempo, acabam com as vozes infelizes. Como são essas forças na lógica do consumo?
A sociedade moderna líquida promete possibilidade infinitas de “começar de novo”, “nascer de novo”, mudar de identidade, empregos, parceiros, gostos e objetos de desejo. Nada é definitivo e irrevogável, sempre haverá (ou pelo menos acreditamos nisto) uma segunda chance. E uma terceira, uma quarta... Cada frustração pode ser compensada por uma vitória futura. E as vitórias são também temporárias. Em um mundo de incessantes novos começos, viajar é muito seguro e fascinante do que a promessa da chegada. A felicidade está no consumo, embora a sensação de estar soterrado entre tantas opções de compra possa provocar frustração ou arrependimentos. E um outro ponto: a sociedade moderna líquida é individualizada, e dela se espera que encontre soluções individuais para problemas sociais fabricados.
- A modernidade líquida teria então uma grande contradição: a hesitação entre igualdade social e liberdade?
A questão mais pungente (e a mais dolorosa, porque nunca é satisfeita) é entre a liberdade e a segurança. A liberdade de escolha significa assumir riscos que não podem ser previstos. Apenas pessoas muito ricas, poderosas ou corajosas podem esperar que suas escolhas também signifiquem ganho em segurança. A maioria deixaria de lado parte da liberdade em nome da certeza de mais segurança. A modernidade líquida desmantelou toda estrutura de onde provinha a segurança individual ( a família, a comunidade, o estado de bem-estar, uma permanência relativa do emprego) e falhou ao substituí-los. Aumentar a segurança é uma tarefa que foi relegada a indivíduos ingênuos ou estúpidos... Consequentemente, o progresso das liberdades individuais é acompanhado do crescimento do fundamentalismo. Que professam uma simplificação de escolhas, uma rotina fixa de direitos e deveres que eles julgam significar proteção. A contradição entre liberdade e segurança, dois valores indispensáveis a uma existência humana decente e aceitável, é hoje o fator que determina a mais profunda divisão social.
- Na vida líquida não há espaço para revoluções sociais?
Há pouco a se ganhar ao juntar as forças e marchar ombro a ombro. Não há muito espaço para construir uma "boa sociedade". Os problemas enfrentados pelos indivíduos são incrivelmente semelhantes, mas não são resumidos e pensados em conjunto. Cada um tenta encontrar sua própria solução, mesmo que o inferno seja nosso lugar-comum. Como sugeriu o ótimo Ítalo Calvino, os indivíduos deveriam, em vez de tentar controlar seus caldeirões ferventes, juntar forças para apagar o fogo que está debaixo deles...
- O escritor brasileiro Bernardo Carvalho disse em um romance que em "São Paulo publicidade é literatura". O senhor acredita que esta lógica de consumo contamina cada vez mais as relações?
A sociedade de consumo é a civilização do excesso e do desperdício. A economia do consumo deveria satisfazer os consumidores - mas promete satisfação de curto prazo com coisas (inanimadas e animadas!) que os indivíduos já possuem. Então a insatisfação permanece, queremos sempre mais e desejamos coisas diferentes. Se os objetos não são suficientemente obedientes aos meus desejos, são descartados e substituídos por outros mais equipados. Isto se reflete nas relações humanas com consequências desastrosas: se alguém me incomoda ou falha em me proporcionar o prazer que eu gostaria, meu primeiro impulso é voltar ao mercado e fazer uma troca por alguém menos problemático.
- E por isso que as relações são cada vez mais frágeis e breves...
O sociólogo Arlie Russel Hochschild definiu o efeito colateral mais ferino da autalidade: a materialização do amor no consumismo. Como as famílias passam mais da metade do tempo livre em frente à tevê são bombardeadas por anúncios e persuadidos a "precisar" cada vez mais de novos produtos. Mas para comprá-los necessitam de dinheiro - que só conseguem com mais horas de trabalho. Como ficam muito tempo fora de casa compram presentes para compensar a ausência. Materializam o amor. E então o círculo continua: ocupados em ganhar o dinheiro, que eles julgam precisar para garantir a felicidade, homens e mulheres têm menos tempo para negociações - que embora possam ser dolorosas - são necessárias para garantir a construção de empatia e intensidade nas relações.
* ZYGMUNT BAUMAN, sociólogo polonês de 81 anos. Tem 11 livros publicados no Brasil, entre eles O mal estar na pós-modernidade e Globalização: as conseqüências humanas. Vida Líquida. Sociedade Líquida. Amor Líquido. (Entrevista do JB/Idéias & Livros, 24/03/2007, fl.3).
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