O senhor pesquisou muito sobre os medos da humanidade. Quais são os medos contemporâneos?
Até o final do século XVIII, o principal medo vivido pelos homens era o perigo originado da natureza. As epidemias, a peste era algo enorme e horrível na Europa. E havia o medo dos terremotos, da fome, do mar. Depois, as coisas mudaram. Vieram a Revolução Francesa e a instituição de grandes exércitos profissionais. As armas foram aperfeiçoadas e se apelou cada vez mais às populações para que lutassem. Chegamos à situação de guerra total em que estamos hoje.
Comparados aos medos passados, os perigos naturais não desapareceram. Ainda há terremotos, ciclones e inundações. No entanto, as infilicidades provocadas pela natureza são muito menores do que aqueles originadas dos homens. O maior medo que devemos ter hoje é o medo do homem. A peste negra era muito mais grave para os homens do que a passagem dos exércitos. Mas, hoje, a Aids é menos importante do que uma bomba atômica. O perigo dos homens supera cada vez mais os perigos da natureza.
O filósofo F. Nietzsche denunciou o cristianismo como causa da infelicidade do homem, por insistit no sentimento de culpabilidade. No livro O pecado e o medo, o senhor mostra como a Igreja difundiu essa mensagem culpabilizadora, insistindo em um Deus inquisidor e vingativo.
Eu coloco muitas nuances. Convido o leitor a não tirar conclusões apressadas. É verdade que dou relevo a esse processo de culpa, que pode levar o homem a ter medo de Deus. Quis diferenciar o receio reverencial de Deus, que é normal da parte dos homens em relação ao Criador e Salvador, do medo do Deus que julga, e que teria condenado a maioria da humanidade ao Inferno. É a fórmula de Santo Agostinho, da massa de perdição.
Dois discursos foram trumáticos na história do cristianismo nesse sentido. De uma parte, o discurso de Santo Agostinho, completado por uma fórmula que está no Evangelho: muitos chamados e poucos eleitos. Isso era um provérbio, e um provérbio não é uma afirmação teológica. Jesus, e depois São Paulo, sempre disseram que lá onde o pecado se multiplicou a graça foi abundante. Ressaltei um discurso eclesiástico que tendia a esquecer essa fórmula de São Paulo, que colocava a ênfase mais sobre o pecado do que sobre o perdão.
Não há paraíso na Terra, é preciso esperar o além-morte para encontrar a felicidade.
Essa é a sua mensagem como crente e historiador?
Falo como historiador, que vê raramente situações de felicidade perdurarem na Terra. Ao mesmo tempo, estou convencido de que é preciso que todos trabalhemos juntos para melhorar a situação na Terra, fazer com que ela seja o menos possível um vale de lágrimas, para nos prepararmos para o vale de felicidade no além.
*Jean Dellumeau, historiador francês, costuma citar uma fórmula da colega inglesa Marjorie Reeves: "O sonho dos homens constituem uma parte de sua história e explicam muito de seus atos". Escreveu, entre outros livros: História do medo no Ocidente; O pecado e o medo. As respostas acima foram retiradas do livro: Entre Aspas - Diálogos contemporâneos - Fernando Eichenberg, Ed. Globo, 2006, pgs.437/438).
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