Sabendo que em tempos passados pratiquei a feitiçaria chamada psicanálise, você me pediu um diagnóstico sobre uma perturbação que o possui de tempos em tempos. Li a descrição dos seus sintomas com a maior atenção. Você é uma pessoa educada, madura, generosa, respeitada. Mas, repentinamente, como que atingido por uma descarga elétrica, você passa por uma metamorfose.
Sua descrição da metamorfose me fez lembrar daquele personagem de um seriado, o Hulk. Normalmente, homem simpático e franzino, de repente, quando provocado, ele se transformava num outro, totalmente diferente. Ninguém diria que se tratava da mesma pessoa. Os olhos ficavam estranhos, vidrados, o corpo inchava com músculos descomunais, a pele ficava verde, as roupas rasgavam e ele ficava possuído por uma força e fúria incontroláveis. Ainda bem que não é isso que acontece com você pois, se acontecesse, sua despesa com os alfaiates seria enorme...
Tudo acontece repentinamente. O conselho de contar até 10 não serve para nada. Antes de começar a contagem você já está possuído. Tudo em você fica diferente e os outros o olham com espanto. Mas o outro-você nem liga. Não há palavra que o segure. Como se fosse uma ejaculação de fúria. Aí, passado o surto, o outro-você deixa a cena. Some. E o você-você volta para o corpo, coberto de vergonha. É hora de tentar consertar os estragos.
Você sabe pedir desculpas. Isso é uma virtude. Mas você sabe que há coisas que não podem ser consertadas. Pode ser que a pessoa magoada pelo Hulk o desculpe, mas é impossível que ela se esqueça do que viu. Ela viu o você-outro, de que ninguém gosta. Nem mesmo você. O seu horror é triplo. Primeiro, o horror por aquilo que o outro-você fez. Você feriu uma pessoa que você ama. Segundo, o horror de que os outros o tenham visto daquele jeito monstruoso. Você deve conhecer um brinquedinho, não sei o nome em português. Em inglês é “Jack-in-the-box”. É um cubo de metal com uma manivela. O cubo metálico é bonitinho, suas faces pintadas com imagens engraçadas. Aí, a gente vai rodando a manivela e, de repente, a tampa se abre e de dentro do cubo salta uma cabeça estranha que dá um susto. Vendo o cubo fechado ninguém suspeitaria da cabeça estranha que está dentro dele. Pois você é parecido com o “Jack-in-the-box”. Todo mundo fica com medo de rodar a manivela. Terceiro, o horror de que exista um outro-você que está além do seu controle racional. Se conselhos racionais valessem alguma coisa eu lhe daria vários e até poderia escrever um livro de auto-ajuda sobre o assunto: respire fundo, conte até dez, recite um mantra, invoque seu anjo da guarda... Sim, sim, onde estava o seu anjo da guarda? Acho que os anjos da guarda ou estão muito distraídos ou são fracos demais diante do seu Hulk.
Baseado nos meus conhecimentos híbridos de psicanálise e magia meu diagnóstico está pronto: você sofre de uma possessão demoníaca.
Imagino seu sorriso de incredulidade ao ler isto. “Como é possível que um homem como o Rubem Alves ainda acredite em demônios? Demônios são fantasias do imaginário religioso...”
De fato: os demônios são fantasias do imaginário religioso. As religiões os pintaram como seres repulsivos e feios, com cara de bode, chifres na cabeça, peludos, rabo, masculinos, de genitais em forquilha, e especialistas em soltar ventilações sulfúricas mal-cheirosas por suas ventas e partes inferiores. Invisíveis, vagam pelos espaços à procura de casas onde morar. Casas? Os corpos dos homens. Escolhida a vítima eles se aproximam, e por meio de seduções tentam entrar na casa. Se o dono da casa não abre, eles lançam mão da força. Arrombam a porta. Uma vez dentro da casa eles expulsam o seu dono e tomam conta de tudo. Você já deve ter ouvido falar de alguém: “Ele ficou fora de si”. Se ele ficou fora de si, quem é que ficou dentro de si? Só pode ser um outro que não ele. Então, naquele momento, o seu corpo não é posse sua. Está sob o controle de um outro que faz coisas que ele jamais faria.
Nos tribunais se usa falar em “privação dos sentidos” para se referir a uma pessoa que não é responsável por aquilo que fez. Se cometi um crime com “privação dos sentidos” eu não o cometi. Eu não era dono de mim mesmo. Então, eu não sou criminoso. Não posso ser condenado. Pois eu, quando estou na posse dos meus sentidos, sou uma pessoa boa e mansa que jamais praticaria um ato violento.
A vantagem da explicação religiosa é que ela absolve a pessoa possuída dos atos que ela pratica. Não foi ela. Foi ele, o demônio. A bela imagem da pessoa fica preservada.
Não descarte os demônios com o seu sorriso zombeteiro. Pode ser que o nome e as imagens não sirvam mais. Mas a “coisa” continua a existir com outros nomes. É como um “vírus” num computador. Ele entra sem permissão e faz a maior confusão... Pois assim são os demônios... Vírus, demônios, dois nomes diferentes para a mesma coisa. Com uma diferença: é mais fácil se livrar dos vírus que se livrar dos demônios.
Rubem Alves é escritor, teólogo e educador ( in Jornal on line Correio Popular/Campinas, SP, 27/04/2008)
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