domingo, 27 de abril de 2008

UMA ESQUERDA À PROCURA DE SEU ESQUERDISMO

Teologia da Libertação é a referência ideológica e política que aproxima muitos dos governos latino-americanos

José de Souza Martins*

As esquerdas latino-americanas estão à procura do seu esquerdismo. Monsenhor Fernando Lugo, eleito presidente do Paraguai, já explicou que não é de esquerda. O próprio Lula volta e meia explica que também ele não é de esquerda. Multidões de latino-americanos foram induzidas a votar em candidatos de esquerda que não são de esquerda. São de quê? Estamos em face da emergência política de populações residuais da história que se expressam através de rótulos políticos divorciados de sua realidade e de suas possibilidades históricas e sociais. São egressas recentes da prisão de interdições levantadas pelas potências na Guerra Fria, seja o policialismo da CIA e do Departamento de Estado, seja o colonialismo ideológico do Partido Comunista da União Soviética.
Essas populações residuais, literalmente, juntaram os cacos da história de seus países para, com eles, construir alternativas e metas políticas e achar um rumo para suas carências sociais e sua orfandade. Diferente do que é próprio da verdadeira esquerda, a referência social desse nascimento político não é a classe social e menos ainda a classe operária.
Nesses e em outros casos latino-americanos, foi fundamental a participação de setores da Igreja Católica e de algumas igrejas protestantes, inspirados na Teologia da Libertação, apoiados nas comunidades eclesiais de base que por aqui vieram a ser a forma popular de organização da Igreja. Aí está a referência propriamente ideológica e política que, se não unifica a “nova esquerda” latino-americana, ao menos aproxima os protagonistas das mudanças, apesar de suas enormes e dificilmente conciliáveis diferenças.
Nessa perspectiva, a eleição do “ex-bispo” Fernando Lugo, no Paraguai, parece completar um ciclo que se iniciou em 1979, na Nicarágua, com a tomada do poder pelos sandinistas, no início muito apoiados pelos católicos de todos os cantos, em boa parte graças à presença do padre Ernesto Cardenal no governo. Mas as enormes contradições desses híbridos grupos políticos no poder logo anunciaram a relativa brevidade dessas revoluções tópicas. No caso da Nicarágua, já em 1981, com a violenta intervenção militar dos americanos, através dos contra-revolucionários, e o crescente descontentamento popular com a adoção do modelo econômico cubano, o país foi lançado no olho das turbulências da Guerra Fria. O fôlego do sandinismo foi curto.
A eleição de Lugo levanta a questão de como reagirá a Igreja diante de mais essa participação de religiosos no poder e tudo que isso representa, dado que, embora afastado, ele ainda é bispo. O Vaticano não tem como aceitar a militância política direta da fração partidária da Igreja que, ao se dizer marxista e cristã, introduz o desafio da premissa ideológica da luta de classes na religião. E, portanto, o implícito questionamento de sua catolicidade. Mesmo que Lugo diga que não é de esquerda.
Se Marx não está presente nesse cenário, a não ser nominalmente, há um setor da Igreja Católica que está. Pode-se encontrar os mesmos religiosos entrevistando Fidel Castro ou com ele passando férias, assessorando Lula e com ele convivendo no próprio corredor do Palácio do Planalto ou sendo lidos por Monsenhor Lugo e com ele, ostensivamente, indo à missa numa igreja de Assunção no dia da eleição. Mesmo quando se trata de um Chávez tão hostil à Igreja ou de um Evo Morales chavista, organizações como o MST fazem a sua ponte com os setores da Igreja que assumiram funções ideológicas na falta de idéias que supram as necessidades históricas de afirmação política dos recém-chegados.
As figuras de destaque da nova realidade política latino-americana são discrepantes em relação às do modelo convencional de política e à política de imitação que herdamos da Europa para implantar aqui o Estado moderno. Seu esquerdismo decorre da falta de melhor rotulação. São, porém, num certo sentido, figuras mais autênticas na representação política de parcelas significativas de populações dos respectivos países. Resta saber se a autenticidade está só nos retardatários da história que politicamente representam ou se está também na possibilidade de recriar o Estado democrático e pluralista em que tenha representação a nossa peculiar diversidade social.
Se as elites latino-americanas fracassaram em inventar um modelo político, a “nova esquerda” já fracassou na origem porque não dispõe de doutrina nem de teoria que lhe permita apoiar-se num pensamento politicamente inovador e universal. Tem apenas uma teologia. O fracasso vai do petismo no Brasil ao zapatismo no México, passando pelo bolivarismo venezuelano e as diversas variantes desses slogans em outros países do subcontinente. Em todas as partes, a “nova esquerda” não é expressão de maciça opção popular. O governo de Lula tem sido viável unicamente por meio de incondicional aliança com o que há de pior na direita. No caso de Lugo, só poderá governar em aliança com uma das crônicas facções da direita paraguaia. Estamos em face de um cenário de fracasso das formas clássicas de representação política, como expressaram dez ex-presidentes de países latino-americanos, de origem social-democrata e democrata-cristã, em seminário realizado em São Paulo, há alguns meses. Mas também diante do fracasso da “nova esquerda”, incapaz de inovar de conformidade com as possibilidades da massa informe que a sustenta, unida por vago nacionalismo e vaga religião.
A humanidade confinada nos grupos sociais marginalizados do processo político dos diferentes países, desde a respectiva independência, está emergindo como ator político, cuja cara não é reconhecível no espelho da concepção de política que herdamos da Revolução Inglesa e da Revolução Francesa. Nossos países foram constituídos historicamente no embate entre a civilização e a barbárie. Os representantes do que era preconceituosamente definido como a barbárie estão agora no poder. Como os barbarizamos, já não sabemos como tratar com eles nem o que deles esperar. Nem eles.
*José de Souza Martins, professor de Sociologia da Faculdade de Filosofia da USP, é autor de A Sociabilidade do Homem Simples (2ª edição revista e ampliada, Contexto, 2008) e A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34, 2008)
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