ZUENIR VENTURA - Entrevista
Em novo livro sobre 68, jornalista mostra a diferença entre as atitudes da juventude
Em novo livro sobre 68, jornalista mostra a diferença entre as atitudes da juventude
Rodrigo de Almeida
É do jornalista Zuenir Ventura uma das mais fascinantes reconstituições do que ocorreu no Brasil em 1968. Do desbunde às lutas políticas, das paixões libertárias aos dramas soturnos, dos relatos sublinhados pela história oficial aos detalhes daqueles personagens, nada escapou ao olhar arguto de Zuenir em 1968: o ano que não terminou, publicado em 1988. Vinte anos depois daquele livro, 40 anos depois do interminável 1968 e um tanto de experiência a mais, sem abdicar da inquietação jornalística juvenil, Zuenir retoma o tema e publica, pela editora Planeta, 1968: o que fizemos de nós. O título é preciso: mais do que uma reportagem sobre aquele ano revisto hoje, trata-se de um diálogo entre duas gerações. Passado e presente se unem e se confrontam nas diferenças não só dos jovens de ontem e de hoje, como também de jovens que se transformaram em senhores e senhoras.
JB -Um livro sobre 68 corre o risco de exibir um excesso de saudosismo em relação àquela geração e um excesso de crítica frente à atual. No seu livro, a crítica parece ser mútua. Muitos dos personagens ouvidos revelam certo desencanto sobre o que poderiam ter sido e o impacto daquelas idéias nos anos seguintes. Ao mesmo tempo, há uma análise dura sobre a perda das utopias, da esperança, da crença no futuro. Você compartilha desse desencanto?
VENTURA – Procurei ser eqüidistante exatamente por esse risco. Em geral, a visão sobre 68 e mesmo sobre hoje costuma ser muito maniqueísta. Há o risco da apologia e da negação. Em geral, os jovens sofrem o risco de serem rejeitados. Com 68 foi assim e com hoje também é. Há uma tendência a rejeitar o impacto de uma coisa nova. A diferença é que em 68 a resposta era muito agressiva. Dizia-se: "Não confie em ninguém com mais de 30 anos". Mas não acho que haja desencanto. Por natureza, não tenho olhar desencantado, mesmo em relação a hoje, que vivemos tempos difíceis. Costumo dizer que é tão fácil ser pessimista que sou otimista. Há, nas duas gerações, coisas interessantes e coisas críticas. Como Narciso, achamos feio o que não é espelho. Mas o depoimento do psicanalista João Batista Ferreira e a conversa que tive com muitos jovens me ajudaram a ter um olhar mais generoso.
JB - Se era para não confiar em ninguém com mais de 30 anos, hoje esses personagens não são confiáveis...
VENTURA – Quarenta anos pesam em qualquer história, em qualquer biografia. Eu me surpreendi ao entrevistar as três meninas (Maria Lúcia Dahl, Maria Clara Mariani e Marília Carneiro). Todas pareciam revolucionárias e hoje são avós! Quarenta anos deixam você mais conservador. O estranhamento com o mundo das novidades é muito grande. Quando vou a uma festa rave não escondo minha perplexidade diante das coisas que não estou preparado para perceber em termos de comportamento. Não quero bancar o jovem. Por sabedoria, temos de procurar entendê-lo, e não o contrário.
JB - Que mudanças você identifica entre a geração de 68 e a de hoje?
VENTURA – Os jovens de hoje são mais individualistas. O mundo mudou muito, até o conceito de geração mudou. Hoje não há geração, há tribo. Os jovens integram a fragmentação do mundo e, por isso, são voltados para seus interesses, seus desejos. Não têm nenhum apego ideológico, não há interesse na política. Falo isso sem juízo de valor. Mas não é do projeto deles. Aliás, não têm projeto, como havia um em 68. Dizia-se: "Quero um mundo novo". Numa festa rave você se depara com a busca agônica do paroxismo, de vertigem, de êxtase. Ou do ecstasy. Tudo isso é muito diferente em relação àquela geração de 68. O fato é que hoje não há muita razão para ter um projeto, uma vez que se vive num mundo muito inseguro. Como pensar no futuro se não se sabe nem se o planeta terá futuro? Além do desapego e de um amor ao acaso provisório, os jovens de hoje não olham mais para o passado com a nostalgia do não vivido. Não há saudosismo, o que é positivo.
JB - Você cita o filósofo Francisco Ortega, para quem as utopias corporais substituíram as sociais. Ou seja, lida-se com o corpo, mas sem a transgressão?
VENTURA – Exatamente. Aquele momento foi o início do hedonismo, da preocupação de se voltar para o corpo. Mas era tudo muito incipiente. Hoje radicalizou. O tabu saiu da cama e foi para a mesa. Há aquilo que eu chamo no livro de degeneração, que é a pior herança: as drogas. Havia em 68 uma utopia ingênua, em que as drogas permitiriam uma abertura de consciência. Quarenta anos depois sabemos que não é bem assim. A verdade é que a droga não tem a menor graça. Ou melhor, graça tem, porque é prazer e esse é o grande perigo. Por isso é tão difícil lidar com ela. O combate é o mais desastrado possível. É o combate pela polícia, pela criminalização do usuário. Essa é a mesma política de 68. É a herança maldita.
JB - Você ressalta a existência hoje de um "inventário negativo". Por que a tentativa de mostrar que aquele ano definitivamente acabou?
VENTURA – A presença desse inventário negativo é muito forte e não só aqui. Aliás, mais do que no Brasil isso ocorre na França. Primeiro o ex-agitador Daniel Cohn-Bendit é acusado de pedofilia. Depois vem o presidente francês Nicolas Sarcozy dizendo que 68 tem de acabar. A campanha se radicalizou. Depois da indulgência plenária desses anos todos, parece ter chegado a hora da desforra: "Vamos acabar com 68". Temos hoje um olhar sobre 68 tão maniqueísta quanto tínhamos em 68. Temos a tendência de culpar 68 por tudo de ruim: a permissividade, a descrença nos valores, a anomia... E esse olhar é tão errado quanto naquela época, quando se achava que se estava do lado do bem e todo o resto era do mal. Varrer 68 do mapa não é a melhor maneira de rever tudo. A ditadura militar sempre tentou enterrar 68. Mas ocorreu o fenômeno que a psicanálise explica muito bem: o retorno do recalcado. É um mistério como 68 sobrevive no imaginário das pessoas.
JB - No livro, o sociólogo César Benjamim diz: "Se continuamos interessados em 1968 é porque o que então ocorreu ainda nos tem a dizer sobre o futuro".
VENTURA – Está certíssimo. Como ele diz, 68 ainda tem muito que dizer. Avançou-se muito, sobretudo em comportamento. Talvez tenha ido longe demais, e é difícil digerir todas aquelas novidades, invenções, descobertas. Leva tempo. Como receber essa herança é a grande questão. No primeiro livro sobre 68, usei como epígrafe uma frase do Mário de Andrade, sobre a geração dele: "Não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de lição". Portanto, há muitas lições. Uma delas é em relação ao voluntarismo. "Quem sabe faz a hora, não espera acontecer". Não é bem assim. Outra lição é que a democracia é um valor universal.
JB - Você ou os personagens falam do desapego das ideologias, do esvaziamento da ação política. Mas esse esvaziamento ocorre justamente quando vemos, no poder, egressos daquela geração.
VENTURA – É verdade, é um paradoxo. Temos 68 no poder. O Fernando Henrique reivindica para o governo dele certos princípios de 68. Olha-se para o governo Lula e se vê que, em volta dele, há muitos personagens de 68. Se 68 não chegou à Presidência da República, pode-se dizer que chegou ao poder. Aliás, o conceito de geração ali não era por idade, mas por afinidade. Havia várias gerações. Alceu Amoroso Lima, Sobral Pinto, Hélio Pellegrino, todos eram geração 68. Isso é curioso porque revela que 68 é mais plural do que pensamos. Não foi uma geração de esquerda. Essa impressão se deve pelo fato de o PT ter sido o partido que mais condensou os princípios de 68, como a paixão pela coisa pública e ética. Achávamos que o PT era o partido de 68. Nunca fui vinculado a nenhum partido, nem em 68. Mas a minha simpatia pelo PT era pela ética. Mas de uns tempos para cá os escândalos sempre têm alguém do PT. Essa transição para o poder foi chocante.
JB - Você falou do abalo da dimensão ética, mas há também o questionamento das utopias.
VENTURA – Diz-se que a utopia acabou. O fato é que a utopia social caiu em si. Sabemos que não se pode fazer a transformação daquele jeito que imaginávamos em 68. Não pela via da revolução. Mas não acho que o sonho tenha acabado. Se perdermos a capacidade de sonhar, aquele sonho que o Freud associa a desejo, estamos perdidos. Acaba nossa razão de ser. De que maneira sonhar? Com a mudança, com o desejo de melhoria de sua vida, de sua cidade, de seu país. Isso é inseparável da história do homem. Há uma corrente pós-moderna do ceticismo, do cinismo, segundo a qual a utopia, a esperança e a solidariedade seriam sentimentos decadentes. Acho que não. São valores permanentes.
JB - Você só aparece em um ou outro episódio ou no subtexto. Por quê?
VENTURA – Minha participação em 68 foi de testemunha, de repórter. Nós, jornalistas, somos testemunhas do nosso tempo. Então, muito mais interessante do que eu falar seria dar voz aos outros. Eu não tive importância. Se tive um papel, foi de testemunha. (Jornal do Brasil, on line, 26 de abril de 2008)
http://jbonline.terra.com.br/editorias/ideias/papel/2008/04/26/ideias20080426002.html
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