segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Buracos da memória

Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE PEDRO SCALETSKY
Poucas coisas me fascinam tanto quanto a memória humana. Todos os dias eu me lembro de cenas cotidianas acontecidas comigo quando era criança em Palomas ou na Florentina. Surgem nomes esquecidos, risadas, brigas, frases e imagens nítidas como certas fotografias. Ao mesmo tempo, desaparecem informações de 5 minutos antes. Meu amigo Christopher Goulart me convidou para ir ao Thomas, na Padre Chagas, ao lado, disse, da Dublin. Na hora de pegar o táxi, eu só me lembrava de Steve, ao lado da Dublinense. Primeira conclusão: não sou um grande frequentador da Padre Chagas, a rua fashion de Porto Alegre. Segunda conclusão: devo estar a caminho do maldito alemão, como se diz, o terrível mal de Alzheimer.
Percebi isso numa conversa com Rogério Mendelski, Vladimir Oliveira e Jurandir Soares na Rádio Guaíba. Rogério e Vladimir sabem tudo de cinema e mandam muito bem em literatura. Aí falaram em "A Volta do Parafuso", de Henry James. Fiquei em dúvida. Não seria do Fielding? Bobagem total. Por que estou falando disso? Porque James é um dos meus autores preferidos, autor de um pequeno livro sobre morte e solidão, "A Fera na Selva", que leio todo ano. É dele também "Os Bostonianos", ou, como preferem alguns, "as bostonianas", uma história de feminismo, lesbianismo velado ou sugerido, machismo e realismo cruel nos Estados Unidos pós-guerra civil. James foi quem melhor descreveu o conformismo de certa aristocracia decadente ou burguesia ascendente americana. Pintou como poucos as relações entre costumes ingleses e norte-americanos, o que aparece muito bem no triângulo amoroso premeditado e cínico de "As Asas da Pomba".
Por que me esqueci de "A Outra Volta do Parafuso"? É um conto de horror que marcou a minha pré-adolescência de maneira muito forte por uma razão inconfessável: eu tinha medo de fantasmas. Acho que ainda tenho. Todo mundo tem medos absurdos escondidos. Nunca tive medo de ladrões. Só de fantasmas. Na história de James, uma mulher, neurótica, louca, histérica ou mentirosa, vê fantasmas. Eu relia esse delírio para sentir medo antes de dormir. Um psicanalista me disse um dia que era uma estratégia contrafóbica, algo como ir ao encontro da fobia para tentar vencê-la ou para perversamente experimentá-la. O que diria esse psicanalista do meu esquecimento? Estarei tentando negar os meus medos infantis duramente jogados para baixo do tapete? Eu tinha uma edição única, sovada, de "Lady Barberina" e de "A Outra Volta do Parafuso", da Abril Cultural, de 1972, tradução, respectivamente, de Leônidas Gontijo de Carvalho e do Brenno Silveira.
Perdi esse exemplar numa mudança. Comprei outro há uns três anos. Como era bom sentir medo de fantasmas. Como era bom ter 12 anos de idade. Como era bom não ter buracos na memória. Como era bom ler os grandes romancistas norte-americanos. Por exemplo, Mark Twain, cujas aventuras de Huckleberry Finn me fizeram pensar pela primeira vez na situação dos escravos. As histórias contadas eram grandiosas, não se esgotavam no umbigo dos autores e falavam da vida real, verdadeira, dramática, cheia de acontecimentos e até fantasmas tão sedutores.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Tradutor. Colunista do Correio do Povojuremir@correiodopovo.com.br
Fonte: Correio do Povo on line, 02/01/2012

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