Juremir Machado da Silva*
Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER
Temos uma ideia preconceituosa dos que vivem em grande dificuldade econômica. Sentimos medo dos moradores de rua. Não dá para saber se é só temor de um ataque ou medo de que os tais descaminhos da existência nos levem a acabar como eles. O verbo que usamos, quando falamos disso, mesmo brincando, é esse dramático "acabar". A rua é, ao mesmo tempo, essa exterioridade cotidiana rotineira e esse abismo que nos escancara a sua boca pavorosa com poucos dentes e muitas cáries. O horror diante de nós. Uma das piores ameaças que se pode fazer a alguém é:
- Vou te pôr no olho da rua.
Pior mesmo, pela extensão e pelo conteúdo, é:
- Vou acabar com a tua raça.
Por que "olho"? Alguém poderia até responder:
- A rua é cega.
- Não, não, cego somos nós que não a vemos bem.
- Enfim, essa expressão é do arco da velha.
- O problema é a rua do olho.
- A rua que temos no olhar?
- Está ficando inteligente, velho!
As ruas guardam histórias incríveis de dignidade e de perseverança dos modos e rituais de todo mundo. Há mais de 20 anos, repórter e estudante de Antropologia, apaixonado pelos imaginários dos "esquecidos de Deus", para usar o título do livro do grande escritor egípcio Albert Cossery, fiz uma série de reportagens e publiquei um livro intitulado "A Noite dos Cabarés", que está esgotado. Aprendi muito naqueles dias conversando com gente que antes me era inacessível. O que mais me chamou a atenção foi uma vontade arraigada de permanecer vivo, um gosto pela vida, um fatalismo doído e renovador. Estive nas ruas e em desvãos, as chamadas instituições totais, por exemplo, um hospital psiquiátrico, que são espécies de ruas cobertas. Cada morador de rua marca o seu território, cria o seu lugar, produz sua identidade.
Faz pouco, moradores de rua ou catadores de material reciclável fizeram um churrasco na avenida Mauá. Uma confraternização de começo do ano. Festão. Apesar do que dizem os alarmistas, sempre denunciando o hiperindividualismo, somos, como sustenta Michel Maffesoli, tribalistas. Queremos contato com outros e gostamos de compartilhar. Salvo os que têm muito. Tarde dessas, caminhando pela cidade, numa praça meio abandonada, em esquina importante, vi uma mesa posta, com toalha branca e tudo. Sou curioso e mal dissimulado. Fiquei espiando.
- Está servido? - perguntou-me a dona da casa.
Fiquei constrangido. Tinha galinha assada. Cheirava bem. Confesso que me senti tentado. Temi, como bom indivíduo de classe média, que alguém me visse ali participando do banquete dos excluídos. Ia pegar mal.
- Já almocei.
- Mas tá magrinho.
- De ruim.
- Então, feliz 2012.
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* Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor. Cronista do Correio do Povo. Tradutor.
Juremir Machado da Silva
Juremir Machado da Silva
Fonte: Correio do Povo on line, 04/01/2012
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