quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O fim de (quase) tudo

Antonio Prata*

Ficamos pensando na bola de fogo
consumindo o Everest, a Teodoro Sampaio
e os casais apaixonados
Na manhã do dia 1º, meu amigo me liga, deprimido:
-Você sabia que o mundo vai acabar?
Penso tratar-se de uma dessas bobagens que misturam calendário Maia com filme-tragédia e começo a desancar o marketing hollywoodiano, mas meu amigo explica que não é nada disso. Viu num documentário que a Terra acabará daqui uns bilhões de anos, quando o sol, tendo esgotado seu combustível, dará um último suspiro, transformando-se numa gigante vermelha e engolindo nosso simpático planeta. Ficamos um tempo em silêncio, os dois pensando nesta bela e terrível imagem: a bola de fogo consumindo o Everest, a Teodoro Sampaio, os avestruzes, os casais apaixonados, as usinas nucleares e as fronhas nos varais.
-Olha, não chega a ser exatamente um consolo, mas daqui uns bilhões de anos nem eu nem você vamos mais estar por aí...
-Eu sei, mas eu achava que a humanidade ia continuar. Que o teto da Capela Sistina, as gravações do Cartola, os poemas do Walt Whitman e os peitos da Claudia Cardinale em "Era uma Vez no Oeste" ficariam pra sempre, só que tudo vai desaparecer... Isso não te angustia?!
-Não quero parecer muito egoísta, mas o que vai ser das pinceladas do Michelangelo depois que eu bater as botas não tá entre as minhas maiores preocupações.
-Pois tá entre as minhas. Antes, eu achava que o mundo era eterno e que se eu escrevesse um livro muito bom [meu amigo é poeta], esse livro ia se juntar a todas essas coisas que permanecem. Mesmo que ficasse no fundo de uma biblioteca, numa estante perdida entre um zilhão de estantes, ia estar lá: minha pequena colaboração para a humanidade. Você nunca quis produzir algo que sobrevivesse a você?
-Sinceramente? Concordo com o Woody Allen, quando disse que não queria atingir a imortalidade através da sua obra, preferia atingi-la simplesmente não morrendo. Uma vez cadáver, que diferença faz ser ilustre ou desconhecido? Ruim mesmo é nunca mais comer um frango a passarinho, é ou não é?
Meu amigo não responde. Parece um tanto decepcionado com a minha insensibilidade. Procurou um ombro fraterno para chorar a transformação de toda a poesia em poeira cósmica e eu venho com essa de frango a passarinho? Lembro, então, de algo que li num livro e que pode melhorar a situação:
-Calma! Nem tudo vai acabar: mesmo depois do fim da Terra, as ondas de rádio que emitimos continuarão se propagando por aí.
-Quer dizer que das obras completas da humanidade vai sobrar só o conteúdo das AMs e FMs?!
Percebo minha gafe, mas é tarde. Meu amigo se desespera. Shakespeare virará pó, mas a voz de Justin Bieber, agora mesmo, viaja pela Via Láctea; e se em algum canto houver vida inteligente -e a vida inteligente tiver construído um radinho-, o legado de nossa passagem pelo cosmos ressoará, eternamente: "Baby, baby, baby oooh/ baby, baby, baby oooh/ baby, baby, baby oooh". Realmente, não faltam motivos para se deprimir.
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* Cronista da Folhaantonioprata.folha@uol.com.br
@antonioprata
Blog 'Crônicas e Outras Milongas'
Fonte: Folha on line, 04/01/2012
antonioprata.folha.blog.uol.com.br
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