sábado, 24 de março de 2012

As redes sociais e as patrulhas do gosto

ADRIANA AMARAL*
CURTIR OU NÃO CURTIR

Gosto se discute. É que o cenário contemporâneo indica múltiplas opções – e análises das opções dos outros

Ao abrirmos o Facebook e o Twitter, deparamos com conteúdos relativos ao gosto dos perfis que acompanhamos. São videoclipes via YouTube, músicas pelo Soundcloud, fotos de artistas, links com textos sobre os mesmos. Skrillex, Michel Teló e Chico Buarque são compartilhados de forma frenética e com discussões entre quem os ama (os fãs) e que os odeia (os antifãs).

Há também os que denominamos “patrulheiros do gosto”, aqueles que se sentem compelidos a categorizar produtos midiáticos e práticas culturais em dicotomias como bom/ruim, relevantes/besteiras, intelectuais/emburrecedores, sempre amparados em critérios supostamente objetivos, mas que desvelam graus de subjetividade entre o ser e o parecer ser. “Não assista ao programa tal, leia um livro”, “o esporte X é muito violento”, os imperativos da patrulha são impiedosos sobre quaisquer fenômenos midiáticos massivos. Esse conteúdo constitui conversações que desvelam aspectos cotidianos a respeito do consumo de produtos culturais mediados pelos objetos técnicos e processos de curadoria e recomendação.

Para além das redes sociais, nas pistas dos clubs e nos shows que frequentamos, nas discussões com os amigos, na leitura de uma revista ou na ida ao cinema, nossas preferências encontram-se disponíveis e passíveis de comparação. Esse processo envolve todos que consomem música, seriados, novelas etc., em seus mais variados formatos e ambientes, do vinil ao mp3; da escuta descuidada no carro à atenção dos grandes fones de ouvido; da gigantesca TV de LED à minúscula tela do celular; do iPad ao livro.

Nosso gosto nos parece tão “banal” que nem pensamos em como ele se constituiu ou sobre o porquê preferimos escutar heavy metal a tecnobrega ou assistir a um reality show em vez de um documentário sobre Glauber Rocha. Mas gosto não é algo inato ou isolado do mundo e das pessoas que nos cercam. É individual e subjetivo, tanto quanto o é social e coletivo, sendo adquirido ao longo de anos de construção de identidade. Um elemento adquirido coletivamente a partir da família, de amigos, de rituais como festas e da mídia e das tecnologias de comunicação.

Discussões sobre o gosto ou sobre o modo como ele é adquirido têm ocupado um lugar entre áreas como filosofia, musicologia, estética, sociologia, antropologia e comunicação. As próprias noções sobre o gosto mudam conforme o “espírito do tempo” e o avanço do pensamento humano. O filósofo alemão Emmanoel Kant, por exemplo, discutiu a questão do belo como um imperativo para a arte. Já Friedrich Nietzsche acreditava que o gosto e, consequentemente, a estética como um todo precisava envolver os sentidos do corpo, precisava ser fisiológico. Ao falar sobre a ópera Carmem, Nietzsche afirmava que era uma obra que envolvia o ouvinte a tal ponto de causar um sentimento de bem-estar corporal.

Theodor Adorno incorporou ao termo “indústria cultural” a função de “orientar” o gosto massivo. Adorno criticou o jazz como um gênero menor e voltado às massas que possuíam um gosto “menos refinado” do que a música erudita. Ironicamente, hoje, no senso comum, o jazz possui um status de “cult” e é relacionado ao gosto “intelectualizado”.

Já Pierre Bourdieu, ao pesquisar o estilo de vida dos franceses do final dos anos 1960, enfatizou que o gosto é um elemento primordial para identidade de classe social. Para ele, há determinações socioeconômicas, ou seja, o gosto por um determinado tipo de produto cultural depende também do acesso que tivemos a ele; e o acesso é ampliado através do capital financeiro, mas configura-se como poder simbólico. O gosto também é forjado em diferentes níveis econômicos e a partir das relações sociais de pertencimento e exclusão embutidas no ato de classificar um gosto como inferior ou superior. Assim, os discursos sobre o gosto também são permeados por questões de classe social, daí muitas vezes observamos as pessoas tratando do gosto como algo relacionado a uma determinada classe, a exemplo da bossa nova ou de certos filmes não hollywoodianos estarem relacionados a um hábito de consumo da “classe média-alta”, implicando uma suposta sofisticação.

Outra perspectiva é encontrada no trabalho do musicólogo Antoine Hennion, que afirma que todo gosto é performatizado através da combinação de elementos econômicos, sociais, rituais, tecnológicos e até mesmo pela materialidade do meio pelo qual escutamos nosso gênero preferido. Em uma pesquisa com fãs de música realizada em 2010, Hennion constatou que o ambiente no qual as pessoas consomem e mesmo o formato e o meio influenciam a relação afetiva com seus gêneros musicais favoritos.

Esse ponto nos leva à multiplicidade de formas de performance de gosto – que anteriormente restringia-se ora aos domínios privados das conversas cotidianas, ora às críticas publicadas pela imprensa, e que atualmente estão amplificadas em tempo real nas redes sociais. Em termos de sociabilidade contemporânea, complementando o ditado popular “gosto não se discute”, performatiza-se através das disputas simbólicas mediadas pelos agentes tecnológicos, por fãs, antifãs e até pelas patrulhas adornianas que monitoram o gosto da “gente diferenciada”.
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 * Jornalista, doutora em comunicação social, professora da Unisinos
Fonte: ZH on line, 24/03/2012
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