sexta-feira, 17 de agosto de 2012

A convite da Folha, sete autores reduzem "Ulysses" a um tuíte

Deu no "New York Times". E no "Guardian", na "Economist", no italiano "Corriere Della Sera", no francês "Libération" e, na última quarta, até no "Dalmacia News", diário de maior circulação dos Bálcãs: Paulo Coelho vilipendiou "Ulysses".
A boutade do controverso autor brasileiro, o mais celebrado no exterior (140 milhões de livros em 160 países), alegando em entrevista à Folha no último dia 4, que o clássico de James Joyce é "só estilo" e que, se dissecado, "dá um tuíte", comoveu leitores ao redor do mundo.
"É o maior insulto já sofrido por Joyce", sentenciou Jennifer Schuessler, jornalista do "New York Times", que admitiu nunca ter lido Coelho ("Assim ela me põe em pé de igualdade com o autor. Tomo como elogio", diz o brasileiro).
Ao contrário de Jennifer, Stuart Kelly, crítico de literatura do "Guardian", leu quatro livros do mago e mantém a réplica de pé: "Coelho tem direito à opinião dele e eu tenho à minha, de que a dele é tacanha, fácil e baseada em evidências questionáveis".
Para Kelly, no "processo de 'emburrecimento' do mundo atualmente, vozes precisam se levantar em favor do oblíquo, do experimental e do complexo", como é o catatau irlandês de mais de mil páginas que narra um dia na vida de Leopold Bloom.
A crítica a "Ulysses", partindo de um autor de longo alcance, seria um desserviço à literatura, segundo ele.
Nas redes sociais, em que Paulo Coelho tem cerca de 15 milhões de seguidores, a questão tomou ares de disputa renhida.
De um lado, súbitos leitores de "Ulysses". De outro, partidários de Coelho, segundo ele, "ofendidos nos últimos 25 anos por serem meus leitores". De todos os cantos, insultos voando à toda.
Mas, se há algo a que "Ulysses" está habituado é a ataques. Isso ocorre desde o início de sua publicação em capítulos, a partir de 1918, na revista americana "The Little Review". Ao falar de masturbação, Joyce foi acusado de obscenidade. O livro foi banido dos EUA e da Inglaterra.
Naquele país, só voltou a ser publicado em 1934, sob protestos de puristas. É de se perguntar: 90 anos depois, ainda é preciso quem o defenda? Para Stuart Kelly, sim.
"Livros como esse ajudam a compreender questões mais profundas da nossa existência, ao invés de oferecer paliativos e falsas soluções."
E, afinal, "Ulysses" pode ser resumido em um tuíte? Na opinião de Idelber Avelar, professor de literatura da Universidade de Tulane (EUA), sim. "'Hamlet' e 'Guerra e Paz' também", disse ele, provocando os joyceanos contra o autor de "O Alquimista".
Para efeito de tira-teima, a Folha convidou sete autores --inclusive Coelho-- para fazerem o que, há quem diga, é quase um crime: reduzir mais de mil páginas de narrativa "avant-garde" em, no máximo, 140 caracteres.
*
Cansado da patroa que #falamuito, um professor junta uma patota alucinante e apronta a maior confusão. Hoje. Ulysses. Depois do Fantástico.
@rbressane
marido perambula pela cidade, esposa fala sozinha
@felipevalerio
Aviso aos leitores de Paulo Coelho: não é a biografia de Ulysses Guimarães
@MarcelinoFreire
Dois bebubs tocam o puteiro 24h em Dublin. Então sobra pra Molly, a safada, viajar na maionese até o fim
@xicosa
O inferno dura um dia. Um dia que se repete. O mesmo dia errado. O paraíso dura um dia também. O mesmo dia certo. Ulisses é um dia indeciso
@carpinejar
Judeu caminha por Dublin e tenta se lembrar se puxou a descarga. Come fígado. Observa mulheres. Masturba-se. Sua esposa pensa na vida. Sim.
@xerxenesky
16/06: dia interminável, com as conversas de sempre. E de noite - #WTF! - tenho que escutar minha adúltera mulher falando sozinha.
@paulocoelho
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Fonte: Folha on line, 17/08/2012

Análise 
 
O livro de Joyce resistiria até hoje construído em torno do vazio?

MARCELO TÁPIA*
ESPECIAL PARA A FOLHA

Pois é: "Ulysses" está na ordem do dia, novo de novo. O relato sobre o dia 16 de junho de 1904 vivido por Leopold Bloom, Stephen Dedalus e Molly Bloom reaparece questionado em seu "conteúdo". Numa frase: toda a vida e a vida toda cabem nas horas de "Ulysses".
Noventa anos depois de publicado, o livro resistiria por um fator que lhe fosse externo, algo como um "fetiche do difícil", construído em torno do vazio?
A questão está no que se quer encontrar no romance-marco do século 20. Ele não foi feito para ser entretenimento fácil -embora seja divertido- ou de utilidade relativa a carências do leitor, sejam elas quais forem.
Mas nele se encontram o homem comum, a morte, o amor, o ódio, o sexo, o adultério, a carne, a perda de um filho, a razão, o delírio, a mudança, a culpa, a descoberta, a grande aventura do mundo. É difícil e fácil como o mundo, pois criado à semelhança dele.
"Estilo" e "conteúdo" são indissociáveis no texto de Joyce. Nele, a linguagem também é personagem: para cada capítulo, um narrador, um modo de contar e de criar; para o todo, obras, formas, fatos, pensamentos que se cruzam.
Homero e referências díspares de toda a história literária convivem em "Ulysses".
Num dia em que aparentemente pouco acontece, há a chance de um tempo marcante, eterno, que tudo contém. Nele há espaço para um café da manhã, para um enterro, para um sabonete com aroma de limão siciliano.
Para o "pai de todos", por vezes imponente, por vezes uma lânguida flor flutuante; para todo o corpo da mulher, o topete do amante, os carnívoros palitando a dentuça, a cama, a lembrança, o reencontro, a alma, a transmutação, o pai, o filho e o espírito santo.
Como escalar o cume desse dia? Com coragem e alegria. Há diversos meios de acesso; a jornada desafiadora traz recompensas.
Para enxergar as graças de "Ulysses", não se pode caber em si: é preciso enfrentar o indefinido, às vezes indecidível. E, como que por um buraco de fechadura, um mundo excitante, uma história imensa, até aparece, revelando-nos como pode ser imortal o emaranhado da consciência, o enredo da vida e da escrita.
Para evocar uma opinião célebre, leiam-se versos da "Invocação a Joyce", de Jorge Luis Borges, aqui traduzidos: 

"Que importa nossa covardia se há na terra
um só homem valente,
[...]que importa minha geração perdida,
esse espelho vago,
se teus livros a justificam.[...] 
Eu sou todos aqueles que teu obstinado rigor resgatou. 
Sou os que não conheces e os que salvas". 
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*Marcelo Tápia, poeta e tradutor, é doutor em teoria literária pela USP, diretor da Casa Guilherme de Almeida e organizador do Bloomsday em São Paulo. 
Fonte: Folha on line, 17/08/2012
 

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