Pe. Alfredo J. Gonçalves*

A
comunicação humana é complexa, tortuosa e multifacetada. Não é diferente no
interior da Vida Religiosa Consagrada (VRC). Também aqui os encontros e
desencontros se mesclam, se confundem e se alternam. O fato de assumir os votos
de pobreza, castidade e obediência não imuniza os religiosos de tensões e
conflitos nos embates da vida comunitária. Afinal de contas, como bem lembra
Enzo Bianchi, "não somos melhores”,
em sua reflexão sobre a vida religiosa na Igreja entre os homens, especialmente
a partir de uma visão crítica dos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II
(BIANCHI, Enzo, Non siamo migliori, la
vita religiosa nella chiesa, tra gli uomini, Ed. Qiqajon, Cimunità di Base,
Magnano – Bi, 2002).
Entraves da linguagem
A
linguagem é a ponte para as relações interpessoais, familiares, comunitárias,
sociopolíticas e culturais, como também para a comunicação dentro das
comunidades religiosas consagradas. A linguagem, porém, tampouco é unívoca e
uniformizada, mas dinâmica e plural, polifônica e polissêmica. Polifônica, porque são diversas as
formas de linguagem que interagem nos encontros e reencontros humanos,
entrelaçando-se, entendendo-se ou entrechocando-se. Polissêmica, na medida em que signos e símbolos carregam distintos
significados, de acordo com as mais variadas circunstâncias, tempos e lugares.
Devido
à tamanha complexidade, são frequentes os curtocircuitos entre pessoas,
famílias, grupos, povos e nações. Multiplicam-se os nós, fáceis de atar, mas
difíceis de desatar. Verdadeiros labirintos onde as vozes e apelos, se ouvidas,
não são compreendidas. E se compreendidas, nem sempre obtêm resposta. Tais
curtocircuitos podem apresentar-se como ruídos ou como silêncios. Aliás, por
vezes o silêncio é tão pesado, constrangedor e estridente quanto o barulho mais
ensurdecedor. E este, por sua vez, facilmente provoca o mutismo obstinado, isto
é, a recusa a toda e qualquer comunicação, o isolamento, a autodefesa. Não é
difícil encontrar religiosos isolados no seu mundo ou no seu projeto pessoal
(para não dizer personalístico).
Incapazes de sentar à mesa para planejar, avaliar e programar em conjunto.
Os
curtocircuitos também ocorrem pela multiplicidade e variedade de formas de se
comunicar. Aqui a palavra, falada ou escrita, nem sempre ocupa o primeiro
lugar. Pelo contrário, pode representar um campo bem reduzido e estreito na
ampla constelação da comunicação humana. Outras formas de interação podem ser (e
em geral o são) bem mais expressivas: olhares, sorrisos, caretas, abraços,
apertos de mão, gestos, toques, riso e lágrima, música, dança, teatro, tipo de
postura, indumentária, simbologia, forma de comportamento... Além dos silêncios
ou mutismos! No convívio diário da vida VRC, o menor movimento, olhar ou gesto
valem mais que uma palavra ou a recusa de pronunciá-la.
Aí
temos toda uma coreografia da comunicação que lembra a célebre Teoria do Agir Comunicacional, obra
prima de Jürgen Habermas. Sua riqueza e variação tornam extremamente dinâmico o
contato humano. Dinâmico, criativo e pluridimensional. Não raro, a verbalização
passa a ser mero acessório, quando não verdadeiro desmentido ao gesto mudo, o
qual, por si só, diz mais que mil palavras, frases ou discursos. Até porque,
com demasiada frequência, as pessoas utilizam as palavras não tanto para
comunicar o que pensam, e sim para esconder e dissimular. As palavras tanto
podem servir de ponte quanto de obstáculo a um diálogo interpessoal ou
comunitário. Transmitem uma mensagem, mas também a podem truncar. Palavra nem sempre
é sinônimo de relação, ao contrário, por vezes servem para interrompê-la.
Entretanto,
faz-se necessário distinguir a Palavra (no singular) e as palavras (no plural).
Estas últimas, quanto multiplicadas à exaustão viram palavrório vazio. Podem
efetivamente conduzir à Palavra, mas em muitas ocasiões não passam de dispersão
e tagarelice. A Palavra é rica, povoada, dinâmica, criativa e libertadora; já as
palavras, quando soltas aos quatro ventos, costumam ser pobres e ocas de
sentido. Não é raro encontrar pessoas que, não sabendo o que dizer, põem-se a
falar. Quem sabe exatamente o que transmitir, o faz com brevidade e concisão;
quem não sabe, precisa antes convencer-se a si próprio. O exemplo de uma lata
rolando no asfalto é bem ilustrativo e este respeito: quanto mais vazia ela
estiver, maior será o ruído.
Ditos & não ditos na Vida Religiosa
Nesse
imenso e diversificado quadro das linguagens (aqui também no plural), importa
ainda ater-se aos ditos e aos não ditos. Aqui entendemos por "ditos” as
mensagens minimamente necessárias para uma convivência fraterna e amiga, aquilo
que é imprescindível no cotidiano das relações humanas. Os "não ditos”, por sua
vez, expressam muda e obstinadamente a recusa em comunicar-se, a teimosia de um
silêncio obsessivo. Os primeiros podem às vezes ser conflituosos e agressivos,
mas o próprio fato de dizer o que se pensa abre a possibilidade para o diálogo.
Diálogo
que pode ser tenso, sem dúvida, mas será sempre preferível ao mutismo. Nesta
perspectiva, quem fala se salva ou amplia o espaço para o entendimento. Quem
cala pode asfixiar-se no próprio veneno ou trancado na própria gaiola. Não
poucas vezes, a palavra ou o grito constituem uma tábua de salvação para quem
está se afogando, enquanto o silêncio torvo e obstinado, o mutismo, impede o
socorro e, a largo prazo, pavimenta o caminho da própria morte. No processo de
formação para a VRC, toma importância vital o diálogo e o acompanhamento
pessoal e espiritual. Verbalizar sentimentos e fatos do passado é uma forma de
exorcizar os medos e sombras que os acompanham, como bem lembra a psicologia e
a psicoterapia.
Além
disso, os "não ditos” costumam engendrar fantasmas falsos e perigosos. Quando
as coisas não são transparentes num casal ou numa família, num grupo ou
comunidade, a escuridão toma conta dos canais normais da relação, interrompe a
comunicação livre, luminosa e sadia. Surgem os labirintos tortuosos e
impenetráveis. Esse ambiente escuro torna-se terreno fértil para a criação dos
mais variados espectros. Rompe-se a presença clara e aberta, bem como o diálogo
franco e saudável. O que dá margem ao cultivo mórbido e doentio da imaginação.
Esta, quando se encontra nas trevas, tende a engendrar objetos, vozes e
personagens estranhos. Facilmente os anjos dão lugar a demônios desconhecidos e
temerosos. Tudo o que não se explica e não se verbaliza, cedo ou tarde abre
espaço para as mais variadas formas de interpretação. Somente a luz desfaz as
sombras.
O
mais grave é que, na sombra, cada um cria seus próprios fantasmas. Eles nunca
são iguais e jamais se comunicam entre si. Agem de forma isolada, sorrateira e
perniciosa no interior do coração e da alma. Onde não há franca luminosidade, cresce
a escuridão, proliferam os medos e as hipóteses mais absurdas. Até o ponto em
que toda a casa/família/comunidade permanece nas trevas. Quanto mais cantos
obscuros, quanto mais situações duvidosas, quanto maior a incomunicação... Mais
espaço para a ação dos fantasmas.
Na
Vida Consagrada (como também na vida familiar ou comunitária, na política e nas
relações em geral) quando os "não ditos” tomam o lugar dos "ditos”, a
transparência é substituída pela obscuridade. Descortina-se o horizonte para
toda a espécie diz-que-diz-que e de interpretações ambíguas. Onde faltam os
devidos esclarecimentos sobram os espectros fantasmagóricos. Só a abertura ao
contato livre, franco e dialógico é capaz de combater os equívocos e quiproquós
da comunicação. A luz, ao penetrar no labirinto das relações humanas, dilui a
presença temerosa dos fantasmas. Renova-se a aurora de cada manhã.
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* Assessor das Pastorais Sociais
Fonte: http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=71146
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