Bill Keller*
Privilegiar bem-estar de paciente terminal abre caminho para discussão sobre reformas
LONDRES - Anthony Gilbey acordou da anestesia num
hospital na Grã-Bretanha. À sua cabeceira estavam a filha e um médico. A
cirurgia não tinha dado resultado, disse o médico. Não restava mais
nada a fazer.
"Então eu vou morrer?", perguntou o paciente. O médico hesitou. "Sim", respondeu enfim.
"Você está morrendo, papai", afirmou a filha. "Então", brincou
Anthony, "nada de comemoração". "Por outro lado, vamos fazer muitas
coisas", minha mulher prometeu. O paciente riu. "Pois é", disse. Morreu
seis dias mais tarde; poucos meses antes do seu 80.º aniversário.
Quando contaram ao meu sogro que o hospital tinha feito tudo o que
podia, na verdade não fora bem isso. Não havia nada que os médicos
pudessem fazer a respeito do grande tumor impossível de operar que se
espalhara no seu corpo. Mas eles poderiam ter mantido seus rins prestes a
entrar em falência colocando-o numa hemodiálise. Poderiam ter
continuado bombeando insulina para controlar o seu diabete.
Além disso, ele usava um marcapasso que mantinha o seu coração
pulsando independentemente do que ainda pudesse acontecer, portanto, com
um tratamento agressivo poderiam mantê-lo em vida por mais algum tempo -
e muitos hospitais fariam isso.
Mas o hospital que cuidou dele oferece um protocolo chamado Liverpool
Care Pathway for the Dying Patient, concebido nos anos 90 num hospital
do câncer de Liverpool como uma alternativa mais humanitária diante ao
ataque frenético de medidas desesperadas no fim da vida do paciente. "O
juramento de Hipócrates exige que os clínicos não parem de tratar do
doente, até o momento da sua morte", disse sir Thomas Hughes-Hallett,
que até pouco tempo atrás era o diretor executivo do centro onde o
protocolo foi criado. Os médicos ingleses, ele disse, contam uma piada a
respeito desse imperativo: "Por que na Irlanda fecham os caixões com
parafusos? Para que os médicos fiquem de fora".
O Liverpool Pathway adota muitas das práticas usadas nos tratamentos
prolongados num ambiente hospitalar, onde pode atender muito mais
pacientes terminais. "Não se trata de apressar a morte", disse sir
Thomas. "Trata-se de constatar que alguém está morrendo e de dar-lhe
algumas opções. Você quer uma máscara de oxigênio? Ou gostaria de beijar
sua esposa?"
Os médicos de Anthony Gilbey concluíram que era inútil prolongar uma
vida que estava tão perto do fim e estava sendo progressivamente
consumida pela dor, a imobilidade, a incontinência, a depressão e a
persistente demência. O paciente e sua família concordaram.
E então o hospital parou de ministrar a insulina e os antibióticos, a
alimentação intravenosa e o soro, deixando apenas um sedativo para
controlar a dor e o enjoo. Cessou toda a agitação com máscaras de
oxigênio, termômetros, aparelhos para medir a pressão. As enfermeiras o
tiraram do ventilador mecânico da terapia intensiva com sua respiração
ruidosa e seu apito - e o levaram para um quarto tranquilo à espera de
partir para "o outro lado".
Eutanásia. Nos Estados Unidos, nada confunde mais a
discussão sobre a assistência ao doente como a questão de quando e como
interrompê-la. O Liverpool Pathway ou suas variações agora constitui a
norma na maioria dos hospitais britânicos e em vários outros países -
mas não nos EUA.
Quando perguntei a um especialista americano em cuidados com doentes
terminais qual era a chance, na sua opinião, de algo do gênero ser
implantado nos EUA, a resposta foi imediata: "Zero". Há uma razão óbvia
para isso e outra menos óbvia.
A razão óbvia, evidentemente, é a que os defensores desses programas
foram demonizados. Eles foram criticados pela Igreja Católica em nome da
"vida" e vilipendiados por Sarah Palin e Michele Bachmann, com o
objetivo de um ganho político mesquinho. "Qualquer coisa que se pareça
com um protocolo oficial ou uma diretriz faz com que você seja julgado
pela comissão", disse Ezekiel Emanuel, especialista em bioética e em
cuidado com doentes terminais que foi alvo dos demagogos.
Os defensores do protocolo de Liverpool na Grã-Bretanha também sofreram ataques semelhantes, principalmente dos lobistas defensores da "vida", que o pintam como uma forma disfarçada de eutanásia. Por outro lado, eles são atacados também pelos defensores da eutanásia, segundo os quais não se trata de verdadeira eutanásia. As pesquisas realizadas nas famílias que usam esse protocolo indicam uma satisfação total, mas inevitavelmente em um campo que diz respeito ao fator mais emocional nas famílias e exige a coordenação especializada de várias disciplinas médicas, como enfermagem, e de aconselhamento familiar, o fim nem sempre é tão sereno quanto o do meu sogro.
O problema menos óbvio, suponho, é que os que defendem esses
programas nos EUA frequentemente os veem como uma questão de custo. Seu
ponto de partida e o fato que chama imediatamente a atenção é que 25%
dos custos do Medicare (para idosos), destinam-se ao último ano de vida,
o que sugere que se está desperdiçando uma fortuna para ganhar algumas
semanas ou meses de vida em que o paciente permanece ligado a máquinas e
se consome no medo e no desconforto. Este último ano de vida representa
um alvo tentador se se pretende conter os custos e garantir que
Medicare e Medicaid (para os menos favorecidos) existam para as futuras
gerações.
Reformas. Indubitavelmente, temos uma necessidade
urgente de reduzir os custos da assistência médica. Pagamos mais do que
muitos outros países desenvolvidos por um serviço comparável ou mesmo
inferior e a conta total consome uma parcela cada vez maior da riqueza
dos EUA.
A reforma no sistema de saúde proposta pelo presidente Barack Obama
começa estabelecendo um conselho a fim de identificar as economias
possíveis para o Medicare, enfatizando o tratamento preventivo e
financiando programas piloto para pagar os médicos para que obtenham
resultados e não para que realizem procedimentos.
Mas se trata apenas de um mero começo. O bom senso sugere que, se as
autoridades não tivessem medo de serem crucificadas, se poderia
economizar mais recursos suspendendo o tratamento quando, em vez de
salvar uma vida, ele serve apenas para prolongar mais um pouco o
sofrimento.
Mas estou começando a achar que tudo isso não passa de uma economia
questionável e de má política. Em primeiro lugar, o que quer que o bom
senso diga, até agora não dispomos de evidências de que essas diretrizes
contribuam de fato para economizar recursos. Emmanuel estudou essa
pesquisa bastante insuficiente e concluiu que, com a possível exceção
dos cuidados para doentes terminais de câncer, medidas destinadas a
eliminar o cuidado infrutífero a pacientes em fim de vida não revelaram
economias significativas.
Mesmo que se conclua que programas como o Liverpool Pathway
contribuem para economizar, promover o cuidado específico a doentes
terminais por razões fiscais aumenta os temores de que o complexo
médico-industrial esteja apressando a ida dos nossos familiares para a
morte a fim de economizar médicos e leitos hospitalares.
Quando perguntei a especialistas britânicos se o protocolo de
Liverpool reduziu os custos, eles insistiram que jamais fizeram esta
pergunta - e jamais a fariam. "Não acredito que ousaríamos", disse sir
Thomas. "Aqui, a imprensa foi muito maldosa este ano a respeito do
Pathway", disse, afirmando que é uma maneira de matar as pessoas
rapidamente a fim de liberar leitos nos hospitais. "Quando você usa esse
argumento, pode ameaçar todo o programa."
Nos EUA, nada acontece sem uma análise de custos e benefícios. Mas a
defesa de uma morte menos atormentada tem uma justificativa mais neutra,
menos preocupante, a de que é simplesmente uma forma de morte mais
suave.
Durante os seis dias de agonia de Anthony Gilbey, ele flutuou entre a consciência e a inconsciência numa névoa provocada pela morfina. Livre dos tubos e sem a presença dos médicos, ele lembrou e fez alguns acertos de contas, fez piadas e trocou juras de amor com os familiares, recebeu a extrema-unção e conseguiu engolir a hóstia da comunhão que provavelmente foi sua última refeição. Então entrou em coma.
Morreu suavemente, amado e consciente disso, digno e preparado. Todos deveriam morrer de uma maneira tão bela.
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/ TRADUÇÃO ANNA CAPOVILLA
*É COLUNISTA The New York TimesFonte: http://www.estadao.com.br/10/10/2012
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