Agustina Bessa-Luís*
S. Francisco oferece a capa a um pobre
Eu vi os restos dos primeiros conventos franciscanos,
perto de Spoleto; as celas eram feitas de vimes e de terra, como faziam
as casas os camponeses. Amassavam a lama com as mãos, teciam um estafe
de canas, e tinham pronto o convento, numa ravina, às vezes com tocas
naturais na pedra onde iam rezar os frades, ou fazer penitência.
A vida era tão difícil que essa regra franciscana não
parecia senão dar-lhe apoio, integrar-se na severa condição da
Natureza. Hoje achamos mórbido e fanático todo esse curso de humilhação
voluntária; mas não sabemos mais o que era ter de sobreviver com um
punhado de farinha e algumas ervas.
O povo vivia assim. Os forais da época, que
estipulavam às vezes meio ovo como paga ao senhor das terras, dizem
quanto a escassez era uma praga difícil de debelar.
O franciscanismo apareceu como uma assistência social
directa: instalou-se nos burgos, entrou no clima campesino e no lar
operário; derramou-se pela fazenda burguesa, penetrou na praça
comercial.
Levou uma consciência nova dos problemas, até à
reitoria, até à câmara, até ao paço. Até aí havia o teólogo e o
exegeta. Debatiam-se os dogmas nos concílios, atalhava-se a heresia com
complicadas teses. Cuidava-se do artigo de fé e do poder do clero.
Francisco trouxe o pobre para a sociedade e recuperou Cristo no pobre. E
fê-lo sem revolta, com uma sinceridade que subverte a revolta; que a
torna menos soberana do que a realidade sofrida. Não disse: “Pobres,
uni-vos.” Mas disse a todos: “Tornai-vos pobres”. Amai o dever de ser
pobre, e não a confrontação e a luta.
E também ele sabia lutar. Era um
guerreiro. Francisco era um guerreiro, de génio lúcido que é o que ganha
as grandes batalhas. A sua vida não foi uma renúncia, foi uma glória,
uma avançada permanente, um esforço genial para entrar no tempo, na
imponderabilidade do pobre. O pobre não tem atmosfera, flutua, quebra
pernas e braços contra pequenos obstáculos nos quais ninguém mais
choca. Mas, sabendo qual a sua condição, sente a leveza do seu mísero
corpo, e nenhum fardo o pode oprimir.
Renúncia aos bens do mundo
A regra franciscana era tão poética que
dela só podia subsistir o perfume. Era alegre, pois proibia acompanhar o
jejum com a expressão mortificada; era sábia, pois se desviava das
letras; era grande, porque prevenia contra o vício da vontade própria.
Não foi feita para servir os homens, e por isso levantou tumulto e fez
nascer as dissidências. É mais fácil á natureza humana acometer as
coisas que exigem heroísmo, do que confiar naquelas que a mantêm na
virtude sem penas e na modéstia sem exemplo.
Visão dos Tronos
Sermão aos Pássaros
Êxtase
Estigmatização
Morte e ascensão
----------------------------* Agustina Bessa-Luís
In Dicionário Imperfeito, Guimarães Editores
Pinturas: Giotto
Atualizado em 04.10.12
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