Ivan Martins*

Ou como evitar que o amor morra afogado em nossas emoções
Vamos ser francos: nosso problema não é sexo. Isso se arranja com
facilidade. O que nos exaspera são as relações que estabelecemos a
partir do sexo, ou apesar dele. O que nos sufoca é aquilo que se faz
antes e depois de transar. A pessoa que fica ali – ou que gostaríamos
que ficasse, mas não fica – constitui nosso maior problema, e talvez
nossa única solução.
Estar com alguém mais do que ocasionalmente, porém, constitui um desafio insolúvel – tanto quanto um prazer imensurável.
As pessoas têm manias, têm temperamento, têm hábitos que nos incomodam.
Elas reclamam de tudo, pateticamente. Elas se enfurecem com tudo,
histericamente. Elas têm problemas, opiniões, desejos, amigos. Elas são
lindas e nos causam ciúme. Elas são controladoras e nos irritam. Elas
podem ser frívolas e indiferentes. Frequentemente mergulham nelas mesmas
e nos deixam entregues às apreensões e receios. Às vezes queremos que
sumam, morram, pelo-amor-de-deus desapareçam. No outro dia acordamos sem
elas e o coração perde duas batidas, de medo.
Na verdade, sofremos de sentimentos demais. Eles transbordam, excedem, afogam. Seria infinitamente mais simples se fôssemos como os outros. Veja o casal do elevador, o professor de natação e a namorada dele. Obviamente felizes, simples, calmos. Trocam duas palavras e um olhar entre o quinto e o térreo. Gente bem resolvida. É impossível que ela chore de noite por temer que ele não a ame. Evidentemente ele não se isola diante da televisão e tenta aplacar os nervos vendo um filme inútil. Eles certamente nunca se metem em discussões dolorosas. Sabem o que fazer deles mesmos e do seu amor. Eles têm as respostas. As criaturas esquisitas somos eu, você e os nossos parceiros. Eles, os outros, são simples e felizes. Gente bem resolvida.
Na verdade, sofremos de sentimentos demais. Eles transbordam, excedem, afogam. Seria infinitamente mais simples se fôssemos como os outros. Veja o casal do elevador, o professor de natação e a namorada dele. Obviamente felizes, simples, calmos. Trocam duas palavras e um olhar entre o quinto e o térreo. Gente bem resolvida. É impossível que ela chore de noite por temer que ele não a ame. Evidentemente ele não se isola diante da televisão e tenta aplacar os nervos vendo um filme inútil. Eles certamente nunca se metem em discussões dolorosas. Sabem o que fazer deles mesmos e do seu amor. Eles têm as respostas. As criaturas esquisitas somos eu, você e os nossos parceiros. Eles, os outros, são simples e felizes. Gente bem resolvida.
Os sentimentos são o nosso principal problema, claramente. Estamos
encharcados deles. Sentimentos de toda espécie, misturados. Você olha
para aquela pessoa que abriu a porta e eles afloram, conturbados. Quanta
aflição não esconde um abraço? A gente então conversa, e a confusão
reflui. A gente espanta o assombro com a nossa voz e o nosso riso. A
trivialidade nos resgata como um bote salva vidas. Nos olhos da mulher
que a gente ama há uma praia tranquila onde a gente ancora – até que o
mar no interior dela se agite e a paz efêmera se perca. De novo.
Gostaríamos que não fosse assim, claro. Preferiríamos ser gente
simples, composta, direta. Em vez de todas as memórias dolorosas que
trazemos conosco, paz. Em vez da confusão de planos e aspirações,
clareza. Nada de turbulência submersa, nenhuma recordação inconfessável,
apenas superfície indevassável e tranquila, como um lago.
Imagine deslizar a mão pelo corpo macio dela sem que a cabeça esteja tomada por ideias conflitantes. Que genial fazer amor sem que nele se projete, num rosnado, o velho arsenal de ressentimentos que parece ter nascido conosco. O sexo então seria puro, biológico, em vez de uma batalha épica entre o bem e o mal, entre o público e o privado, entre o certo e o errado que nos habitam. E, depois do prazer, enrolar-se cheio de ternura e de angústia agridoce naquela criatura que ofega. Sentir-se pai, filho, irmão, apaixonado, opressor-filho-da-puta, canalha, marido. O que mais?
Imagine deslizar a mão pelo corpo macio dela sem que a cabeça esteja tomada por ideias conflitantes. Que genial fazer amor sem que nele se projete, num rosnado, o velho arsenal de ressentimentos que parece ter nascido conosco. O sexo então seria puro, biológico, em vez de uma batalha épica entre o bem e o mal, entre o público e o privado, entre o certo e o errado que nos habitam. E, depois do prazer, enrolar-se cheio de ternura e de angústia agridoce naquela criatura que ofega. Sentir-se pai, filho, irmão, apaixonado, opressor-filho-da-puta, canalha, marido. O que mais?
Os sentimentos não nos largam, indecifráveis. O carro trafega a 40 km
por hora, numa alameda ensolarada, e a lembrança de um certo olhar
pungente quase nos leva às lágrimas. De onde vem essa emoção? Certamente
da música, um samba travesso de Chico Buarque que nos conecta a tudo e a
todos, num momentâneo abraço cósmico pós-eleitoral. Somos todos irmãos,
ela me ama, a morte mora numa toca no fim da eternidade, tudo é lindo.
Sejamos francos: nosso problema não é sexo, é amor. Encontrá-lo,
conquistá-lo, torná-lo parte da nossa vida e, ao final, talvez,
detestá-lo. Nosso problema é preservar esse amor em meio à tempestade de
trovões dos nossos sentimentos. Cuidar para que o fascínio físico dos
primeiros dias não se perca, evitar que a confiança que vem depois não
nos cegue de tédio. Nossa tarefa, gigantesca, é fazer com prazer – e com
o mínimo de sanidade – as coisas que se fazem antes e depois de trepar.
A pessoa que fica ao nosso lado nesse intervalo é nosso maior problema,
e talvez a única solução.
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* IVAN MARTINS É editor-executivo de ÉPOCA
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/ivan-martins/noticia/2012/10/sentimentos-demais.html
Imagem da Internet
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