segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Educação não pode ser uma commodity

Ragnar Thorvardarson, especialista em assuntos internacionais e de segurança do
Ministério de Relações Exteriores da Islândia

Por Jacilio Saraiva

Existe um lugar onde o governo paga escola de qualidade para crianças e adolescentes de 6 a 16 anos. Lá, a maioria das instituições é financiada pelo Estado e as poucas escolas particulares que existem são bancadas por instituições filantrópicas. Não é um conto de fadas, mas o cenário real da educação básica na Islândia, segundo Ragnar Thorvardarson, integrante do conselho do AFS Intercultural Programs, organização global que oferece oportunidades de aprendizagem por meio de ações de intercâmbio. 

Para ele, que também é especialista em assuntos internacionais e de segurança do Ministério de Relações Exteriores e vicepresidente da Cruz Vermelha na Islândia, além de disciplinas básicas, é preciso que o estudante vá à sala de aula para aprender pensamento crítico e inteligência emocional. No ano passado, Thorvardarson visitou o Brasil, onde participou do Efeito+, fórum que reuniu alunos do ensino médio e educadores. Da capital islandesa, Reykjavík, ele deu a seguinte entrevista ao Valor. 

Valor: Na Islândia, a educação é obrigatória para crianças e adolescentes de 6 a 16 anos. A maioria das instituições é financiada pelo Estado e há poucas escolas particulares. Como isso beneficia o país? 

Ragnar Thorvardarson: O governo paga a taxa de matrícula para cada aluno e, depois de o estudante se formar na escola secundária, oferece empréstimos com juros baixos para o ensino universitário. Essa fórmula ajuda o país porque todos têm um começo semelhante quando se trata de educação. Importa menos se você vem de uma família de baixa ou alta renda ou de uma escola boa ou regular, todos têm a mesma chance de ingressar na universidade. Proporcionar o acesso à educação influencia o desenvolvimento da nossa economia. 

Valor: Pesquisas feitas no Brasil indicam que estudantes do ensino médio com as melhores notas estão nas escolas privadas, de alto nível socioeconômico, enquanto as médias mais baixas são encontradas nas instituições públicas, em bairros pobres. O que fazer para reparar essa desigualdade em países que ainda lutam para oferecer educação básica de qualidade? 

Thorvardarson: Gosto muito do modelo de educação nórdico, construído em países como Islândia e Finlândia. Não vemos a educação como uma commodity, mas uma forma de construir uma sociedade forte e criativa. Isso obviamente significa que os impostos também são mais elevados, mas, ao mesmo tempo, proporcionam mais oportunidades para estudantes de baixa renda. Porém, trata­se de um projeto de longo prazo e pode ser mais fácil de ser implementado em países com menor população. A Islândia tem 330 mil habitantes. Situação bem diferente das 200 milhões de pessoas que vivem no Brasil. 

Valor: O Brasil pode aprovar uma reforma no ensino médio, que deve ser votada pelo Senado na quinta­ feira, que altera a ampliação do tempo que o aluno passa na escola. Há um aumento progressivo das atuais 800 horas letivas para 1,4 mil horas, com a jornada escolar de sete horas. O que senhor acha da escola em tempo integral e como ela pode ser mais produtiva? 

Thorvardarson: Parece um plano ambicioso e poderia ser uma maneira de proporcionar uma educação mais sólida aos alunos. No currículo revisto do ensino médio na Islândia, a partir de 2011, foi dada uma maior flexibilidade durante as aulas. Lá, um dia escolar dura entre seis e oito horas e o ano letivo vai de meados de agosto até o final de maio. Passamos do sistema antigo de escola secundária, de quatro anos, para o atual, de três, em que os estudantes se formam aos 19 anos. Gosto também do modelo escolar finlandês, que dá menos ênfase às tarefas feitas em casa e mais tempo para a cooperação entre professores. Nos últimos anos, a Finlândia ocupa o lugar mais elevado dos países nórdicos em classificações educacionais, como o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes [Pisa, da sigla em inglês], coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico [OCDE]. [O Brasil está na 63ª posição em ciências, na 59ª em leitura e na 66ª colocação em matemática]. No futuro, os estudantes também precisarão desenvolver habilidades diferentes, como trabalho em equipe, pensamento crítico e inteligência emocional. 

Valor: Além da Islândia, o senhor já morou no Japão, na Dinamarca, no Reino Unido e nos Estados Unidos. Quais as boas experiências de aprendizagem que conseguiu identificar? 

Thorvardarson: Quando estava no Japão como estudante de intercâmbio na escola secundária, aprendi algo que nunca tinha experimentado na Islândia: a disciplina. Levantar­se e se curvar sempre que o professor entrava na sala de aula era muito estranho para mim. Ao mesmo tempo, senti que poderia haver mais espaço para os alunos se expressarem, como estamos mais acostumados na Europa. Na Dinamarca, vivenciei o trabalho em grupo, parte importante das escolas deles. No Reino Unido, gostei das aulas em estilo seminário, em que somos encorajados a refletir sobre os estudos, com outros colegas. Um dos pontos fortes nos Estados Unidos é trazer para a sala de aula mais conhecimentos corporativos, ligados às empresas e organizações governamentais.
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Fonte: Valor Econômico impresso.  Caderno EU&FIM DE SEMANA, Nº 845;  27 de janeiro de 2017, p.3

O luxo do simples

Lya Luft*

Resultado de imagem para simplicidade

Escutei na tevê essa frase tão óbvia e simples, que acabei achando um luxo: “Hoje em dia, a simplicidade é um luxo; e outro luxo é o tempo”. Postei no meu Face, muita gente marcou, pensa assim também. Fiquei elaborando isso com os botões que não uso: essa transformação para valorizar o simples – ainda que seja meio de mentirinha, porque em geral acaba sendo simples sofisticado – é na verdade uma coisa muito boa. Vira tranquilidade. Vira liberdade. É anticorreria, antiostentação, anti-ter-de-tanta-coisa. Não ter de obedecer a tantas regras, poder usar o aventuresco até na casa: cadeiras e copos desiguais de propósito, roupa descombinada, o estilo é o que agrada a cada um. Podermos viajar nas almofadas exóticas ou superdiscretas, tapete idem, folhagem enorme num grande vaso ou flor num copinho de cachaça, tudo ali do jardim ou do terraço, livro espalhado ou mal empilhado. Abrir a cortina e a manhã inaugurar a vida com sol, azul, e até o luxo de um leve nevoeiro baixo. E as amizades, ah, as amizades sem inveja nem ciumeira nem cobrança, nem ressentimento, quando dá a gente se encontra, inventa um happy hour, ou passa meses sem se ver mas continua se amando igual.

Quanto mais o mundo se complica com horários, compromissos, contas, impostos, serviços medonhos e política nauseante, fora as novas descobertas de milhões e milhões desviados enquanto as crianças não têm comida nem escola, e a bandidagem se diverte às custas da polícia e comanda o país, mais nós procuramos a paz. Uma certa paz, a paz possível. Ansiar menos pelos luxos antigos que exigiam uma dinheirama – não querer mais impressionar, mas nos sentirmos bem, de jeito leve. Vamos ter tempo de viver um pouco mais, não em anos, mas em felicidade, sem tantas exigências.

De momento, faço uma tradução de filosofia, sofisticada, mas tudo ao meu redor é simples, portanto é um luxo esse trabalho intenso que há tempos não fazia. Sem complicação. Sem resmungar. Até uma das funcionárias comentou: “A senhora está de novo muito tempo trancada no escritório”, e estou. Mas contente, porque se a crise exige mais trabalho, por outro lado foi minha profissão tantas décadas, e reencontro, nela, velhas alegrias.

Quando o difícil fica cada vez mais difícil na vida, podemos ser mais simples até no café da manhã: cada um prepara o que quer, depois bandejinha no colo cada um na sua poltrona, conversando, comentando notícias (haja estômago) ou olhando quietos as árvores com seu jogo quase sobrenatural de luzes e verdes. Porque para se amar, e estar feliz junto, não é preciso nenhuma aflição.

Isso enche meu coração: o luxo da simplicidade. Volta e meia um filho, filha, neto ou neta posta uma mensagem ou foto do seu iPhone pro meu, e a saudade já encolhe um pouco, pois no cyberspace estamos juntos. Nada daquele compromisso grave de tempos em que era dever visitar a avó, uma senhora de cabelo branco e vestido preto, a quem era preciso tratar com cerimônia – quando quem sabe ela estaria doida por uma brincadeira, uma risada, um encontro alegre?

Um luxo que dá um pouquinho de trabalho: desenrolar o fio cheio de nós das antigas complicações.
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* Escritora. Colunista da ZH
Fonte:  http://www.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a9640613.xml&template=3916.dwt&edition=30548&section=70
Imagem da Internet

Falta de grana mata o amor porque ele perece diante da falta de horizontes

Luiz Felipe Pondé*
Ilustração Luiz Felipe Pondé de 30.jan.2017
O feto tem preço? Sim, tem. E, enquanto você não 
descobriu o seu preço, ainda não pensou
 a fundo no tema. 

Algum tempo atrás, nesta coluna, escrevi que hoje em dia é difícil saber separar afeto de grana (referia-me especificamente ao amor entre pais e filhos, mas o tema vai além disso, tocando o amor romântico também). Recebi alguns e-mails de leitoras revoltadas dizendo que era um absurdo eu não ser capaz de separar amor e grana. Eu já acho o contrário. Enquanto não pensarmos claramente no quanto amor e grana se misturam, não veremos nenhuma fronteira entre os dois. 

Em nossa época, mentiras viraram moeda de troca no mercado do pensamento público. Agradar aos outros é métrica de valor. Eu não jogo esse jogo. 

Devemos escapar da armadilha comum de pensar que assumir um preço para o afeto implica ser uma pessoa interesseira. Claro que esse caso óbvio também existe. Penso em pessoas motivadas pelo afeto mesmo e que, tristemente, às vezes, se batem com o limite material delas. Não era outra coisa que o grande Nelson Rodrigues tinha em mente quando dizia que dinheiro compra até amor verdadeiro. 

O fato é que grana é um potencializador da vida. Com ela você pode criar um ambiente no qual confiança, bem-estar e um forte sentimento de muitas perspectivas se abrem diante de você. Onde bons sentimentos nascem? Num final de semana prolongado em Roma ou no trânsito de oito horas para Praia Grande? 

Grana cria horizontes no quais você se desenvolve e pode sonhar com melhores modelos de você mesmo. Grana dá a você a chance de ser generoso, ousado, seguro de si mesmo. No caso das meninas se dá a mesma coisa. 

Acrescentaria que no caso das meninas existe também um delicado sentimento (às vezes enterrado no mais fundo do cotidiano) de que, se alguém te dá uma bijuteria no lugar de uma joia, você se sente uma bijuteria, e não uma joia. E, em alguma medida, com razão. Porque o preço de uma joia representa o valor investido na mulher para quem você dá essa joia. 

Homens, que na maioria das vezes ganham mais e são mais escravos da obrigação do sucesso material, se sentem investidos de amor pela mulher quando ela demonstra serem eles a sua prioridade. Quando ela reconhece potência em tudo o que eles fazem –o que não significa só ganhar dinheiro. 

Falta de grana mata o amor porque ele perece diante da falta de horizontes. Do sentimento de que a vida está acabada naquela fórmula pobre de ser. Num cotidiano em que a rotina é sempre a da falta de liberdade de escolha. A dificuldade de enxergar isso torna ainda mais o afeto dependente da grana. A mentira sobre isso torna o amor ainda mais barato porque mais indefeso diante das contingências do dia a dia. 

Quer outro exemplo? Você se casa com um cara que tem uma ex-mulher. Se ele der muita atenção para ela e se preocupar muito em deixá-la "bem materialmente" mesmo depois da separação, você vai, sim, achar que ele ainda a ama. Não minta sobre isso só pra ficar bem com o marketing do bem, que deixa o mundo ainda mais cretino do que ele já é normalmente. 

O caso do amor entre pais e filhos não é tão diferente, apesar de depender mais da classe social e da cultura do país. No Brasil, da classe média alta pra cima, se você não der um apartamento para cada filho, fracassou como pai. 

Imagine que seu pai deixou sua mãe por uma mulher 20 anos mais nova do que ele, e que ele teve um filho com ela. Sei, sei, dizem por aí que todos os jovens tiram isso de letra hoje, mas isso é, também, uma mentira do marketing do bem. 

Agora imagine que ele nega para você uma viagem para Paris nas férias, mas faz um lindo quarto de bebê com todas as frescuras que sua nova jovem mulher pede. Quando encontra com você, só fala do novo "irmãozinho". Que tal? 

Invertamos a situação. Imagine que você dedicou 40 anos da sua vida para seu filho. Imagine que agora ele é bem-sucedido profissionalmente, mas deixa você viver numa casa de repouso miserável paga com sua aposentadoria. 

Onde está a fronteira entre amor e grana aí? Em Roma ou Praia Grande? 
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* Filósofo, escritor e ensaísta, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, discute temas como comportamento, religião, ciência. Escreve às segundas.
Imagem  Ricardo Cammarota/Folhapress
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/ 30/01/2017

Vem aí a sociedade algorítmica

António Covas

A sociedade algorítmica da automatização é uma tecnologia realmente disruptiva, criando a breve prazo um forte desemprego estrutural. Mas é também uma oportunidade para a inovação social e política.

Um livro recente do filósofo francês Bernard Stiegler, acerca da sociedade automática e das consequências da automatização sobre a organização social do emprego e do trabalho, suscitou-me algumas reflexões que passo a partilhar com o leitor.

1. A revolução digital confunde-se, cada vez mais, com o advento da sociedade automática e da automatização, se quisermos, dos procedimentos de cálculo automático ou sociedade algorítmica. De que trata a “governação algorítmica”? De plataformas tecnológicas, de redes sociais, de dados brutos extraídos dessas redes sob a forma de sinais infra-pessoais, de procedimentos de cálculo e correlações estatísticas sob a forma de padrões de comportamento.

2. No plano estrutural, a sociedade algorítmica alimenta-se de uma cibercultura, de um vasto ambiente informacional, da hiperinteligência dos dispositivos tecnológicos (a smartificação), da gestão do BigData e do Cloud Computing e, obviamente, da “adição digital” provocada junto dos utilizadores.

3. No plano do conhecimento, a sociedade algorítmica “sabe lidar melhor” com a complexidade, essa é “a sua verdade”, isto é, uma objetividade totalmente colada ao real, produzida em tempo real e sucessivamente reconfigurada por uma massa imensa de dados permanentemente actualizados.

4. No plano operacional, o sistema Big Data faz a limpeza, triagem, categorização e cálculo algorítmico dos dados. Não interessa o contexto, a singularidade, a significação desses dados. Os indivíduos são “agregados temporários de dados brutos”, quantificáveis e sucessivamente reconfigurados a uma escala industrial, se quisermos, uma espécie de coisificação dos indivíduos; tudo fica indexado a um qualquer indicador quantitativo, para os fins da sociedade hipercompetitiva e performativa.

5. No plano da teoria crítica, estamos perante uma espécie de “modelo extrativista” em que os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade.

6. No plano da relação de poder, a sociedade algorítmica é, aparentemente, uma nova forma de gerir a incerteza e a insegurança políticas; todavia, ela procede por inversão dos termos da equação, isto é, são os meios (o sistema técnico e tecnológico) que tomam conta dos fins; como a inovação política e social corre muito mais lentamente há o risco de ficar prisioneira da elevada toxicidade da sociedade algorítmica.

7. No plano das métricas territoriais, a sociedade algorítmica permite-nos introduzir e distinguir duas métricas importantes: a métrica dos territórios-zona (T-Z) e a métrica dos territórios-rede (T-R). A primeira reporta-se ao poder vertical dos territórios convencionais, a segunda ao poder horizontal ou lateral dos territórios inteligentes que cultivam a inteligência colectiva por intermédio das novas plataformas digitais. As plataformas colaborativas e a economia dos bens comuns são uma esperança para todos os territórios, sobretudo os mais desfavorecidos.

8. No plano cognitivo do saber-conceptual, a sociedade algorítmica, na sua exuberância calculatória, transforma os algoritmos em próteses cognitivas, que provocam não apenas a exteriorização do saber mas, também, a proletarização de algumas /muitas classes profissionais e intelectuais. A sociedade algorítmica é, portanto, uma sociedade altamente paradoxal com inúmeros conflitos políticos e societais no horizonte próximo.

9. No plano do sujeito individual, os nossos “duplos algorítmicos” podem ser muito úteis se os soubermos manipular em nosso benefício; no resto, o nosso rasto, a nossa traçabilidade, serão explorados exaustivamente em ordem a produzir padrões supra-individuais que “antecipam e orientam” o nosso comportamento, tudo garantido pela racionalidade algorítmica.

10. No plano da organização social do emprego e do trabalho, a sociedade algorítmica da automatização é uma tecnologia verdadeiramente disruptiva, isto é, cria a breve prazo um forte desemprego estrutural. Mas é também uma grande oportunidade para a inovação social e política que chegará, estou certo, à boleia da sociedade algorítmica. Vem aí a sociedade contributiva e colaborativa, o 4º sector, os bens comuns, as moedas sociais, a inteligência colectiva territorial, o rendimento básico de existência, a economia circular e uma nova organização do trabalho profundamente criativa e inovadora.
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Professor da Universidade do Algarve
Fonte:  http://observador.pt/opiniao/vem-ai-a-sociedade-algoritmica/ Acesso 30/01/2017

Esqueça a pen. O futuro da memória está nos átomo


João Francisco Gomes*
 
É o disco rígido mais pequeno alguma vez criado e poderá revolucionar o armazenamento de dados. Investigadores em Braga e na Holanda garantem ao Observador que o caminho é (mesmo) por aqui.


Imagine todos os livros alguma vez escritos guardados num único disco rígido, do tamanho de um dedo ou de um selo postal. Ou a possibilidade de armazenar numa única pen a sua vida inteira, filmada em alta definição. Parece impossível (ou algo retirado de um episódio da série Black Mirror), mas está cada vez mais próximo de acontecer. Na Universidade de Delft, na Holanda, um grupo de investigadores conseguiu criar um dispositivo capaz de armazenar cada bit num único átomo de cloro. É a memória atómica – “é jogar futebol com os átomos“, diz Paulo Freitas, diretor de um laboratório em Braga que está a colaborar com este projeto.

“Estamos a entrar numa era muito estimulante, em que temos tecnologia suficientemente precisa para controlar a matéria à escala atómica”, defendem os investigadores envolvidos na criação da tecnologia, ao Observador. “É a memória mais densa que se pode criar“. O primeiro protótipo está feito, e não podia ter sido preenchido com uma mensagem mais adequada: quando, em 1959, o físico Richard Feynman desafiou a comunidade científica a construir o mundo à menor escala possível, não imaginou que, seis décadas depois, o seu famoso discurso estivesse gravado no mais pequeno disco rígido alguma vez criado. Mas é precisamente isso que acaba de acontecer.
 
O ENIAC, o primeiro computador digital. Pesava trinta toneladas e servia para cálculos relativamente básicos.
 (Wikimedia Commons) 

Para os leigos, a explicação técnica pode parecer complexa. Mas vamos lá: a unidade mínima de informação digital é o bit zero ou um — e é algo que tem corpo físico, ocupa espaço, portanto, e é composto por “milhares de átomos“, explica ao Observador o investigador holandês Sander Otte, que liderou a investigação.

Paulo Freitas, diretor executivo do Laboratório Ibérico de Nanotecnologia (INL), em Braga, ajuda-nos a perceber a ideia: “Temos, hoje em dia, discos duros, onde armazenamos a informação a nível magnético, na ordem de um terabit [um bilião de bits] por polegada quadrada” [o tamanho de uma moeda de 2 euros, sensivelmente]. Quando vamos a uma loja comprar um disco ou uma pen drive, levamos para casa um dispositivo que se baseia nesta ordem de grandeza.

O progresso nesta área está a ser feito, sobretudo, a tentar comprimir cada vez mais o espaço físico ocupado por um bit. Ou seja, sem sair da tecnologia atual, a maioria dos investigadores quer fazer caber cada vez mais informação no mesmo espaço. Contudo, em paralelo, há quem esteja a querer uma mudança radical e a procurar alternativas — é daí que vem a memória atómica.

"Atualmente, um bit ocupa um espaço de 20 por 20 nanómetros. As tecnologias que estão no mercado continuam a evoluir, mantendo esses tamanhos. Já vamos nos 11 nanómetros, 
mas vai chegar aos quatro ou cinco" 
 Paulo Freitas, diretor-executivo do INL 

Com este protótipo, “precisamos, essencialmente, de um átomo por cada bit“, destaca Sander Otte, sublinhando que “é muito, muito menor” do que o que existe atualmente. Jose Lado, investigador do Laboratório Ibérico de Nanotecnologia (que funciona em Braga, e que apoiou a equipa holandesa no desenvolvimento do projeto), sublinha que “esta tecnologia permite uma densidade de armazenamento 500 vezes maior do que a que a tecnologia atual permite“.
500 x

A densidade de armazenamento deste protótipo é 500 vezes maior do que os dispositivos de memória existentes atualmente. Isto quer dizer que no mesmo espaço físico podemos armazenar 500 vezes mais informação.

Há várias equipas de investigadores, em todo o mundo, a explorar alternativas — “estamos todos à procura do mesmo”, diz Paulo Freitas — mas esta tecnologia desenvolvida em Delft é especial. “A grande diferença deste trabalho é que foi a primeira vez que se conseguiu fazer isto de forma semiautomática. Fez-se um programa. Uma pontinha que corre numa superfície e que consegue manipular os átomos, escrevendo o que queremos escrever”, esclarece o especialista.

Este é um passo natural na evolução da memória. O primeiro computador digital do mundo, o ENIAC, criado nos anos 40, pesava trinta toneladas e só servia para cálculos relativamente básicos, e nem sequer armazenava informação. Até chegar à mais pequena pen drive, passando pelos discos rígidos, pelas disquetes e pelos CDs, foi um salto.

Memória digital à escala do átomo. Como funciona?

Recuemos um pouco. Como nos explica Sander Otte, “um dispositivo de armazenamento tradicional guarda os dados em bits que podem ser zero ou um. Por exemplo: nos discos rígidos, os zeros e os uns estão codificados na direção da magnetização de pequenos pedaços de material magnético. E esses bits podem ser combinados para formar letras. Por exemplo, 01100101 representa a letra ‘e’. Desta forma, pode armazenar-se textos inteiros num disco rígido”. A evolução tem sido no sentido de reduzir o espaço necessário para armazenar um bit.

É aqui que entra a equipa da Universidade de Delft. “A memória que desenvolvemos funciona de uma forma semelhante, exceto que neste caso os bits estão codificados na posição de átomos individuais“, destaca Sander Otte. O grupo criou um dispositivo que consiste, de uma forma simples, numa placa de cobre onde são colocados átomos de cloro. “Alguns átomos podem ocupar uma de duas posições, que representam o zero e o um”, explica o investigador.

É através da posição dos átomos que se formam os bytes — correspondentes a oito bits. Foi nesta fase do processo que, aos seis investigadores que trabalhavam a partir da Holanda, se juntaram dois especialistas em nanotecnologia, a partir de Braga, que criaram um modelo teórico daquilo que viria a ser a disposição dos átomos na superfície de cobre. “Calculámos como eram as interações entre os átomos e como elas possibilitaram a construção de uma memória atómica estável”, explica ao Observador o investigador Jose Lado, do INL.

A tecnologia utilizada neste dispositivo já existe (a de manipular átomos individualmente), pelo menos, há 25 anos, explica Sander Otte. “Mas, nesses 25 anos, a técnica nunca foi desenvolvida de forma a ser utilizada à escala”, porque “a manipulação atómica não era confiável e era difícil de automatizar”. Mas uma descoberta adicional permitiu contornar esta dificuldade: “Descobrimos que é possível manipular átomos em falta, ou seja, orifícios. Isto torna a técnica muito mais estável e, por isso, confiável”, destaca o investigador holandês.
 
Sander Otte e Floris Kalff, outro dos investigadores holandeses envolvidos na investigação. "Podemos guardar, teoricamente, 
todos os livros do mundo num polegar", explica Sander Otte. 

É jogar futebol com os átomos“, descreve Paulo Freitas, sublinhando que “há muito tempo que se fala deste tipo de memória”. Mas, “até agora, nunca houve nada que chegasse perto de um protótipo, e, atualmente, se quiser escrever uma palavra, já é possível” fazê-lo neste dispositivo.

“Uma era muito estimulante”

“Era impensável há 20 anos”, admite Jose Lado, que acredita que “nos próximos anos vamos ver que os componentes das novas tecnologias se podem tornar em átomos individuais, dando origem à engenharia atómica e à engenharia física quântica”. Trata-se de ganhar a capacidade de manipular a matéria na sua unidade mais elementar: “É formidável que o ser humano vá basear a sua tecnologia na manipulação do fabrico da própria matéria, cada átomo individual”. E a evolução deu-se de forma relativamente rápida. “Observámos as primeiras trocas atómicas destes átomos em novembro de 2015. Apenas dois meses depois, em janeiro de 2016, já tínhamos construído um quilobyte inteiro”, recorda Sander Otte.

É formidável que o ser humano vá basear a sua tecnologia 
na manipulação do fabrico da própria matéria, 
cada átomo individual.
Jose Lado, investigador do INL 

Trata-se de uma tecnologia que ainda deverá, contudo, demorar a chegar ao público. Sander Otte admite que prefere ser “cauteloso”, porque ainda estamos perante uma “primeira demonstração científica”. Para o investigador holandês, “a técnica parece muito promissora, mas ainda assim ainda é preciso muito para que possa ser integrada numa tecnologia útil”. Por isso, “a mensagem mais importante neste momento é que agora conseguimos organizar e tratar o mundo a um nível de precisão que era impensável antes”, o que “pode levar a todo o tipo de novas ideias e invenções, que podem ir muito além do mero armazenamento de dados“.

Também Jose Lado prefere avançar com cuidado no que toca à possibilidade de a tecnologia ser comercializada num futuro muito próximo. “Até aqui, a experiência foi feita a temperaturas muito baixas”, e necessita de “uma máquina muito complexa, com um tamanho de vários metros”, para ser bem-sucedida. “É necessário melhorar estes dois aspetos técnicos antes de chegar aos consumidores comuns”, esclarece.

Ainda assim, o investigador espanhol já antevê algumas potenciais utilizações para uma memória tão compacta como esta. “Esta tecnologia permitirá armazenar uma quantidade muito maior de informação, como a que é recolhida em termos de evolução dos mercados, gravações de câmara, comportamento social, fenómenos atmosféricos e astronómicos ou monitorização biológica”, explica o cientista. Trata-se, portanto, da possibilidade de armazenar informação de forma contínua durante anos a fio, sem ter de se alterar o dispositivo de memória.

A tecnologia "pode levar a todo o tipo de novas ideias e invenções, que podem ir muito além do mero 
armazenamento de dados".
Sander Otte, investigador da Universidade de Delft 

Um dispositivo de memória tão denso pode até levar à criação de novos tipos de ficheiros. Jose Lado esclarece: “Há 20 anos, os nossos discos rígidos tinham cerca de um gigabyte, e atualmente mal conseguiríamos guardar um único filme num computador antigo. Desta forma, um grande armazenamento pode levar a que sejam criados novos tipos de ficheiros, permitindo a introdução de novos produtos no mercado. Para empresas como a Dropbox, esta tecnologia poderá permitir oferecer muito mais capacidade de armazenamento aos seus clientes”. E é mesmo aos grandes centros de dados e nas empresas que oferecem armazenamento em cloud que estes investigadores acreditam que a tecnologia chegará primeiro.
 
Imagem do primeiro protótipo construído. Cada bloco representa algumas letras, e cada ponto representa 
a posição de um átomo. Aqui, está gravado um dos mais famosos discursos de Feynman.

Já ninguém usa pens, mas isto vai revolucionar a cloud

O nosso dia-a-dia informático envolve cada vez menos objetos físicos. Passámos das muitas disquetes aos poucos CDs, e desses à pen drive. Mas, com o aparecimento de serviços como a Dropbox e outros serviços de armazenamento na nuvem (cloud), deixámos de precisar de andar com esses pequenos objetos atrás. E, por isso, podemos até pensar que uma revolução como esta no âmbito do armazenamento de informação não nos diz assim tanto. Desengane-se quem pensa assim. Como explica Jose Lado, investigador espanhol do INL, “a informação armazenada na nuvem é informação guardada no disco real de alguém — Google, Microsoft ou Dropbox, por exemplo –, e por isso requer espaço físico tal como aquele que temos no nosso computador“.

Isto quer dizer que a informação que temos armazenada nas nossas contas na nuvem está armazenada em servidores das empresas que nos prestam esse serviço. Já pensou no que poderão essas empresas fazer pelos clientes se tiverem acesso a uma capacidade de armazenamento 500 vezes mais densa? “Esta tecnologia permitiria a essas empresas oferecer aos clientes uma quantidade de espaço para armazenamento muito maior, porque poderiam guardar muito mais informação nos seus discos”, esclarece Jose Lado ao Observador.

A informação armazenada na 'nuvem' é informação guardada no disco real de alguém - Google, Microsoft ou Dropbox, por exemplo -, e por isso requer espaço físico tal como 
aquele que temos no nosso computador. 
Jose Lado, investigador do INL 

“O melhor uso para esta tecnologia será mesmo nos centros de dados“, acrescenta Sander Otte. Por vários motivos. Primeiro, porque de facto são os locais em que há mais utilização de armazenamento de dados. Depois, e principalmente, porque “a memória que construímos só funciona a temperaturas muito baixas e num ambiente de vácuo”. Por enquanto ainda é impossível implementar este dispositivo em aparelhos como laptops ou telemóveis, mas, nos centros de dados, “não será difícil implementar o ambiente de conservação em frio e em vácuo”, garante Sander Otte. Para o sistema ficar estável, é preciso que se mantenha a uma temperatura de 70 kelvin (são 203ºC negativos). Como a temperatura, no fundo, é o grau de agitação dos átomos, ao aumentar a temperatura do dispositivo, os átomos começam a mexer-se, desordenam-se, e a informação perde-se.

“Na verdade, já existem esforços no sentido de desenvolver instalações em ambiente criogénico que conservam muito mais a energia do que os computadores convencionais”, sublinha o investigador holandês. Jose Lado concorda. Apesar de ser difícil implementar esta tecnologia nos dispositivos dos consumidores, “nos centros de dados irá acontecer muito antes”.

Acredito que o armazenamento centralizado de dados é muito mais inteligente do que o armazenamento local. Qual é o objetivo de ter milhões de cópias do mesmo ficheiro, armazenado em milhões de dispositivos, quando podemos ter apenas 
umas cópias, armazenadas centralmente?
Sander Otte, investigador da Universidade de Delft 

E o armazenamento centralizado, para Otte, é mesmo o caminho a seguir. “Acredito que o armazenamento centralizado de dados é muito mais inteligente do que o armazenamento local. Qual é o objetivo de ter milhões de cópias do mesmo ficheiro, armazenado em milhões de dispositivos, quando podemos ter apenas umas cópias, armazenadas centralmente?”, questiona. Mas o investigador avisa que a tecnologia só avança com o investimento de uma grande empresa. “Tudo depende de se a indústria está interessada em desenvolver esta tecnologia”, explica, acrescentando que “se se quiser mesmo desenvolver isto em tecnologia útil, é preciso uma empresa muito maior do que um grupo de investigação de uma universidade”.

Paulo Freitas vai mais longe neste ceticismo. “As tecnologias vão continuar a ser desenvolvidas no sentido do que existe atualmente, que é onde está o grande financiamento das companhias”, assume. “Depois, há os ramos laterais, que estão à procura de novas opções. Esta é uma delas, que parece promissora para alguns nichos de mercado”, sublinha. E o desafio está longe de estar completo. “O grande objetivo agora é controlar a parte da escrita”, garante Paulo Freitas, até porque “a questão da temperatura não é trivial”. E, naturalmente, aumentar a eficiência do processo. É que, com este protótipo, cada bit demora um minuto a escrever.
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* COLUNISTA DO Jornal Observador 

sábado, 28 de janeiro de 2017

NEOLIBERALISMO, ASSEXUALIDADE E DESEJO DE MORTE


170127-Obsessão

Filósofo italiano aponta: obsessão pelo sucesso individual e troca dos contatos corpóreos pelos digitais podem realizar distopia da humanidade insensível, para a qual já alertava Pasolini
Franco Berardi, entrevistado por Juan Íñigo Ibáñez | Tradução: Inês Castilho e Simone Paz | Imagem: Ernst Ludwig Kirchner, A Sala (1920)

Uma das metáforas mais potentes – e de maior ressonância até nossos dias – no imaginário de Pier Paolo Pasolini é a de “mutação antropológica”. Trata-se de uma expressão que o cineasta, escritor e poeta italiano utilizava para ilustrar os efeitos psicossociais produzidos pela transição de uma economia de origem agrária e industrial para outra, de corte capitalista e transnacional.

Durante os anos 1970, Pasolini identificou, em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas, uma verdadeira transmutação nas sensibilidades de amplos setores da sociedade italiana, em consequência do “novo fascismo” imposto pela globalização. Acreditava que esse processo estava criando – fundamentalmente por meio do influxo semiótico da publicidade e da televisão – uma nova “espécie” de jovens burgueses, que chamou de “os sem futuro”: jovens com uma acentuada “tendência à infelicidade”, com pouca ou nenhuma raiz cultural ou territorial, e que estavam assimilando, sem muita distinção de classe, os valores, a estética e o estilo de vida promovidos pelos novos “tempos do consumo”.

Quarenta anos depois, outro inquieto intelectual de Bolonha – o filósofo e teórico dos meios de comunicação Franco “Bifo” Berardi – acha que o sombrio diagnóstico de Pasolini tornou-se profético, diante da situação de “precariedade existencial” e aumento de transtornos mentais que as mudanças neoliberais provocaram.

Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é hoje a segunda causa de morte entre jovens e crianças – a grande maioria do sexo masculino – entre 10 e 24 anos. Do mesmo modo, a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – será em 2020 a segunda forma de incapacidade mais recorrente no mundo.

Berardi acredita que esses dados – assim como a maioria dos atos violentos produzidos nos últimos anos, os assassinatos em massa ou os atentados suicidas radicais – estão estreitamente vinculados às condições de hipercompetição, subsalário e exclusão promovidos pelo ethos neoliberal. Sugere que ao analisar os efeitos que a economia de mercado tem em nossas vidas, devemos também incorporar um elemento novo e transcendente: o modo como os fluxos informativos acelerados a que estamos expostos por meio das “novas tecnologias” influem em nossa sensibilidade e processos cognitivos.
Esclarecimento: Berardi não é nenhum tecnófobo ou romântico dos tempos do capitalismo pré-industrial. Compreende – e utilizou a seu favor – os avanços que a tecnologia introduz em nossas vidas.

Desde o final dos anos 1960, liderou diversos projetos de comunicação alternativa, tais como a revista cultural A/traverso,  a Rádio Alice (uma das primeiras emissoras livres da Europa), a TV Orfeu (a primeira televisão comunitária da Itália). Participou de programas educativos da Rádio e Televisão Italiana (RAI) ligados ao funcionamento e efeitos das novas tecnologias. Além disso, “Bifo” foi um observador atento de fenômenos contraculturais como o ciberpunk, ou as possibilidades futuras de governos tecnofascistas.

Sua carreira foi fortemente marcada pelo compromisso político. Foi membro ativo – desde a Universidade de Bolonha, onde graduou-se em Estética – da revolta de Maio de 68. No início dos anos 70, esteve vinculado ao movimento de esquerda extraparlamentar “Poder Operário”. Posteriormente – no começo dos 80, durante seu exílio na França – frequentou Michel Foucault e trabalhou junto com Félix Guattari no campo disciplinar então nascente da esquisoanálise. Berardi é autor de mais de vinte livros, entre os quais destacam-se El Alma del Trabajo: desde lá alienación a la autonomia (A alma do trabalho: da alienação à autonomia), Generación post-alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo (Geração pós-alfa. Patologias e imaginários no semiocapitalismo), Héroes: asesinato de masa y suicidio (Heróis: assassinato de massa e suicídio) e Fenomenología del fin (Fenomenologia do fim). Segue a entrevista.

Em seus últimos trabalhos, você disse que o efeito das tecnologias digitais, a mediatização das relação de comunicação e as condições de vida que o capitalismo financeiro produz estão estreitamente vinculados ao crescimento das patologias da esfera afetivo- emocional, assim como de suicídios em nível mundial. Disse inclusive que estamos diante de uma verdadeira “mutação antropológica” da sensibilidade. De que maneira esses fenômenos estão relacionados ao aumento de suicídios e de patologias psíquicas?
Trata-se naturalmente de um processo muito complicado que não pode ser reduzido a linhas de determinação simples. A combinação dessas condições técnicas, sociais, comunicacionais pode produzir – e de fato produz, em um grande número de casos – uma condição de individualização competitiva e de isolamento psíquico que provoca uma extrema fragilidade, a qual se manifesta às vezes como predisposição ao suicídio.

Não pode ser acaso o fato de que nos últimos quarenta anos o suicídio tenha crescido enormemente (em particular entre os jovens). Segundo a Organização Mundial de Saúde, trata-se de um aumento de 60%. É enorme. Trata-se de um dado impressionante, que precisa ser explicado em termos psicológicos e também em termos sociais. Quando li pela primeira vez essa informação, me perguntei: o que aconteceu nos últimos 40 anos? A resposta é clara. Ocorreram duas coisas. A primeira foi que Margaret Thatcher declarou que a sociedade não existe, que só há indivíduos e empresas em permanente competição – em guerra permanente, digo eu. A segunda é que, nas ultimas décadas, a relação entre os corpos se fez cada vez mais rara, enquanto a relação entre sujeitos sociais perdia a corporeidade, mas não a comunicação. O intercâmbio comunicacional tornou-se puramente funcional, econômico, competitivo. O neoliberalismo foi, em minha opinião, um incentivo maciço ao suicídio. O neoliberalismo – mais a mediatização das relações sociais – produziu um efeito de fragilização psíquica e de agressividade econômica claramente perigosa e no limite do suicídio.

Qual o sentido profundo do que disse Margareth Thatcher?
Quando Margareth Thatcher disse que não se pode definir nada nem ninguém como sociedade, que só há indivíduos e empresas que lutam por seu proveito, para o sucesso econômico competitivo, declarou algo com enorme potência destrutiva. O neoliberalismo, a meu ver, produz um efeito de destruição radical do humano. A ditadura financeira de nossa época é o produto da desertificação neoliberal. A financeirização da economia é fundada sobre uma dupla abstração. O capitalismo sempre se fundou sobre a abstração do valor de troca (abstração que esquece e anula o caráter útil e concreto do produto). Mas a valorização financeira não precisa passar pela produção útil. O capitalista industrial, para acumular capital, tem de produzir objetos – automóveis, petróleo, óculos, edifícios. Já o capital financeiro não precisa produzir nada. A acumulação do capital financeiro não se faz por meio de um produto concreto, mas tão somente através da manipulação virtual do próprio dinheiro.

Nesse cenário, que peculiaridades você observa nas formas como nos relacionamos com nosso trabalho – diferentemente, por exemplo, do caso de um trabalhador industrial dos anos 70 –, que nos deixa tão expostos à saturação patológica expressa em seus livros?
O movimento dos trabalhadores do século passado tinha como objetivo principal a redução do tempo de trabalho, a emancipação do tempo de vida. A precarização e o empobrecimento produzido pela ditadura neoliberal produziram um efeito paradoxal. A tecnologia reduz o tempo de trabalho necessário, mas o capital codifica o tempo liberado como parado e o sanciona, reduzindo a vida das pessoas a uma condição de miséria material. Em consequência, as pessoas jovens são continuamente obrigadas a buscar um emprego que não podem encontrar, a não ser em condições de precariedade e subsalário. O efeito emocional é ansiedade, depressão e paralisia do desejo. A condição precária transforma os outros em inimigos potenciais, em competidores.

Você tem analisado com regularidade as formas como as tecnologias da comunicação e o uso que delas fazemos interagem com as condições de vida instauradas pelo capitalismo. Qual papel pensa que cumprem as redes sociais, no marco de uma sociedade com um tipo de capitalismo altamente desregulado? De que maneira os efeitos que esse sistema econômico produz em nossas vidas são complementares ou se relacionam com o uso que fazemos desse tipo de plataformas digitais?
As redes sociais são, ao mesmo tempo, uma expansão enorme – virtualmente infinita – do campo de estimulação, uma aceleração do ritmo do desejo e, ao mesmo tempo, uma frustração contínua, uma protelação infinita do prazer erótico, embora nos últimos anos tenham sido criadas redes sociais que têm como função direta o convite sexual. Não creio que as redes (nem a tecnologia em geral) possam ser consideradas como causa da deserotização do campo social, mas creio que as redes funcionam no interior de um campo social deserotizado, de tal maneira que confirmam continuamente a frustração, enquanto reproduzem, ampliam e aceleram o ritmo da estimulação.

É interessante considerar o seguinte dado: no Japão, 30% dos jovens entre 18 e 34 anos não tiveram nenhuma experiência sexual, e tampouco desejam tê-la. Por sua vez, David Spiegelhalter, professor da Universidade de Cambridge, escreveu em Sex by Numbers que a frequência dos encontros sexuais foi reduzida a quase metade, nos últimos vinte anos. As causas? Estresse, digitalização do tempo de atenção, ansiedade. Isso produziu o surgimento do que, para Spiegelhalter, é a “single society” [sociedade solteira], quer dizer, uma sociedade associal, na qual os indivíduos estão por demais ocupados em buscar trabalho e relacionar-se digitalmente para encontrar corpos eróticos com os quais se relacionar.

Nesta mesma linha de análise, você também disse que as formas de relacionamento com as novas tecnologias afetam os paradigmas do humanismo racionalista clássico, em particular nossa capacidade de pensar criticamente. Considerando isso, de que maneira as dinâmicas multitasking [tarefas simultâneas], ou abertura de janelas de atenção hipertextuais podem chegar a deformar as formas sequenciais de elaboração mental?
A comunicação alfabética possui um ritmo que permite ao cérebro uma recepção lenta, sequencial, reversível. São estas as condições da crítica, que a modernidade considera condição essencial da democracia e da racionalidade. Porém, o que significa “crítica”? No sentido etimológico, crítica é a capacidade de distinguir, particularmente, de diferenciar entre a verdade e a falsidade das afirmações. Quando o ritmo da afirmação é acelerado, a possibilidade de interpretação crítica das afirmações reduz-se a um ponto de aniquilamento. McLuhan escreveu que quando a simultaneidade substitui a sequencialidade — ou seja, quando a afirmação se acelera sem limites — a mente perde sua capacidade de discriminação crítica, passando daquela condição a uma neomitológica.

Apesar do déficit comunicacional ao qual muitos especialistas atribuíram a derrota de Hillary Clinton e, concretamente, à sua postura ante o estilo confrontador e “politicamente incorreto” que Trump utilizou para enfrentar temas vinculados com as guerras culturais, esta “redução da capacidade crítica” que você identifica influenciou no resultado das eleições?
Nos últimos meses tem se falado muito da comunicação da pós-verdade no contexto das eleições nos Estados Unidos, que levaram um racista a ganhar a presidência. Porém, eu não acredito que o problema verdadeiro esteja no circuito da comunicação. A mentira sempre foi normal dentro da comunicação política. O verdadeiro problema é que as mentes individuais e coletivas perderam sua capacidade de discriminação crítica, de autonomia psíquica e política.

Embora alguns especialistas reduzam a importância do termo “nativos digitais” (dizendo que não passa de uma metáfora que fala mais do poder desproporcional que cedemos às novas tecnologias do que dos efeitos reais que estas têm sobre os indivíduos), o conceito guarda uma significativa relação com a “mutação antropológica” que você identifica nos jovens da primeira geração conectiva. Que valor você atribui ao conceito de “nativos digitais” e como pode se relacionar com a noção criada por Marshall McLuhan de “gerações pós-alfabéticas” que você tem retomado em alguns de seus livros?
Em absoluto, não creio que a expressão “nativo digital” seja meramente metafórica. Pelo contrário, trata-se de uma definição capaz de nomear a mutação cognitiva contemporânea. A primeira geração conectiva, aquela que aprendeu mais palavras por meio de uma máquina do que pela voz da mãe, encontra-se numa condição verdadeiramente nova, sem precedentes na história do ser humano. É uma geração que perdeu a capacidade de valorização afetiva da comunicação, e que se vê obrigada a elaborar os fluxos semióticos em condições de isolamento e de concorrência. Em seu livro L’ordine simbolico della madre (A ordem simbólica da mãe), a filósofa italiana Luisa Muraro argumenta que a relação entre significante e significado é garantida pela presença física e afetiva da mãe.

O sentido de uma palavra não se aprende de maneira funcional, mas afetiva. Eu sei que uma palavra possui um sentido — e que o mundo como significante possui um sentido — porque a relação afetiva com o corpo de minha mãe me introduz à interpretação como um ato essencialmente afetivo. Quando a presença afetiva da mãe torna-se rara, o mundo perde calor semiótico, e a interpretação fica cada vez mais funcional, frígida. Naturalmente, aqui não me refiro à mãe biológica, nem à função materna tradicional, familiar. Estou falando do corpo que fala, estou falando da voz. Pode ser a voz do tio, da avó ou de um amigo. A voz de um ser humano é a única forma de garantir de maneira afetiva a consistência semântica do mundo. A rarefação da voz transforma a interpretação num ato puramente econômico, funcional e combinatório.

Em seu livro A linguagem e a morte – um seminário sobre o lugar da negatividade, Giorgio Agamben diz que a voz é aquilo que vincula o corpo (a boca, a garganta, os pulmões, o sexo) ao sentido. Se substituirmos a voz por uma tela, o sentido erótico, afetivo e concreto do mundo se desvanece e ficamos sós, trêmulos e desprovidos da garantia de que o mundo seja algo carnalmente concreto. O mundo torna-se puramente fantasmal, matemático, frio.

Em seu livro Heróis, você se concentra no crescente fenômeno de suicídios a nível mundial e relaciona-o com os crimes de massas que presenciamos no final dos anos 1990 — como os massacres em Columbine ou Virginia Tech — até chegar a episódios recentes, como o do piloto suicida da Germanwings, ou o atentado no Bataclan. O que a história de vida dos agressores destes crimes te diz das condições existenciais nos tempos do capitalismo financeiro? De que forma esses episódios nos falam do espírito de nossos tempos?
Acredito que a financeirização é essencialmente o suicídio da humanidade. Em todos os níveis: a devastação do meio ambiente, a devastação psíquica, o empobrecimento, a privatização, provocam medo do futuro e depressão. Basicamente, a acumulação financeira alimenta-se por meio da destruição daquilo que foi a produção industrial no passado. Como pode o capital investido ser incrementado nos tempos do capitalismo financeiro? Somente através da destruição de alguma coisa. Destruindo a escola você incrementa o capital financeiro. Destruindo um hospital, incrementa-se o capital financeiro. Destruindo a Grécia, incrementa-se o capital do Deutsche Bank. É um suicidio, não no sentido metafórico, mas no material.

Nesse cenário, não me parece tão incompreensível que os jovens se suicidem numa situação similar. Além disso, a impotência política que o capitalismo financeiro produz, a impotência social e a precariedade, impulsa jovens desesperados a atuarem numa forma que parece (e que de fato é) ser o único jeito de obter algo: matando pessoas casualmente e matando a si mesmos. Trata-se da única ação eficaz, porque matando obtemos vingança, e matando obtemos a libertação do inferno que o capitalismo financeiro tem produzido.

Pouco tempo atrás, em junho de 2016, um jovem palestino chamado Mohammed Nasser Tarayah, de 17 anos, matou uma menina judia de 13 anos com uma faca e, posteriormente, foi assassinado de maneira previsível por um soldado israelense. Antes de sair de sua casa para ir matar — e se matar — escreveu em seu Facebook: “A morte é um direito, e eu reivindico esse direito”.

São palavras horríveis, porém, muito significativas. Significam que a morte lhe parecia a única forma de se libertar do inferno da violência israelense e da humilhação de sua condição de oprimido.

A nível mundial, a taxa de homens que se suicida é quatro vezes maior que a de mulheres que incorrem na mesma prática, embora segundo a OMS, elas tentem em mais ocasiões. Da mesma forma, não temos visto casos de assassinatos em massa realizados por mulheres. Ao que você atribui que tanto os suicídios, como os crimes de massas, sejam protagonizados quase exclusivamente por homens? De que forma o capitalismo os compele a reproduzirem tais níveis de impotência, violência e autodestruição?
A violência competitiva, a ansiedade que essa violência implica, é uma translação de uma ansiedade sexual que é unicamente masculina. As mulheres são vítimas da violência financeira, bem como da vingança masculina e terrorista contra a violência financeira. A cultura feminista pode considerar-se a única forma cultural e existencial que poderia criar lugares psíquicos e físicos de autonomia frente à agressão econômica e à agressão terrorista suicida. Porém, hoje, quando falamos de suicídio, cabe ressaltar que não estamos falando do velho suicídio romântico, que significava um desespero amoroso, uma tentativa de vingança de amor, um excesso de pulsão erótica. Falamos de um suicídio frio, de uma tentativa de fugir da depressão e da frustração.

Para finalizar, poderia nos falar de possíveis práticas que proponham soluções, ou das potencialidades que você enxerga nesta geração pós-alfabética? Em seu livro Heróis você retoma o interessante conceito de “caosmose”, criado por Félix Guattari, o qual supõe um tipo de instância estético-ética de superação que daria sentido ao contexto de super-estimulação e precariedade existencial que você vê em nossos tempos…
Guattari falava de “espasmo caósmico” para entender uma condição de sofrimento e de caos mental que pode ser solucionada somente através da criação de uma nova condição social, de uma nova relação entre o corpo individual, o corpo cósmico e o corpo dos demais. Somente a libertação da condição capitalista, somente a libertação da escravidão laboral precária, e somente a libertação da concorrência generalizada, poderia abrir um horizonte pós-suicida.

Porém, a afirmação política dos nacionalistas racistas “trumpistas”, em quase todos os países do mundo, me faz pensar que estamos cada vez mais longe de uma possibilidade similar, e que, aos poucos, estamos nos aproximando do suicídio final da humanidade. Eu sinto muito, mas, neste momento, não vejo uma perspectiva de caosmose, somente uma de espasmo final. Mas isso é o que eu consigo entender, e está claro que meu entendimento é muito parcial.
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 Por Redação  27/01/2017
http://outraspalavras.net/capa/neoliberalismo-assexualidade-e-desejo-de-morte/

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Trump fez grandes promessas durante campanha e risco de desilusão é alto

 Paul Krugman* 
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Se os Estados Unidos vivessem sob um sistema parlamentarista, Donald Trump —que passou seu primeiro dia como presidente tendo um faniquito por causa de reportagens que apontaram, com precisão, o baixo comparecimento de público à sua posse— já estaria enfrentando um voto de desconfiança. Como o nosso sistema é outro, teremos de descobrir como sobreviver a quatro anos disso. 

E como é que ele vai reagir a números decepcionantes sobre coisas que realmente importam?
Em seu lúrido e horrendo discurso de posse, Trump retratou um país em péssima situação —"a carnificina norte-americana". O país verdadeiro não se parece com isso em nada. Há muitos problemas, mas as coisas poderiam estar piores. Na verdade, é provável que elas de fato piorem. E como é que um homem incapaz de enfrentar até o mesmo o mais modesto abalo de seu ego lidará com isso? 

Vamos falar sobre as más notícias previsíveis. 

Primeiro, a economia. Quem ouve Trump imaginaria que os Estados Unidos estão em meio a uma depressão em larga escala, com "fábricas enferrujadas espalhadas como lápides por todo panorama de nosso país". O emprego na indústria de fato caiu, de 2000 para cá, mas o nível de emprego geral subiu, e o desemprego é baixo pelos padrões históricos. 

E não é só um indicador que parece bom. Os salários em alta e a ascensão no número de norte-americanos que se sentem confiantes o bastante quanto à economia para pedirem demissão de seus empregos voluntariamente sugerem que a economia está próxima do pleno emprego. 

O que isso quer dizer é que o desemprego dificilmente cairá muito, de seu patamar atual, e portanto, mesmo com boas políticas econômicas e boa sorte, a criação de empregos será muito mais lenta do que nos anos Obama. E porque coisas ruins acontecem, existe uma forte probabilidade de que o desemprego seja mais alto dentro de quatro anos do que é hoje. 

Oh, e os deficit orçamentários que Trump expandirá provavelmente ampliarão o deficit comercial, e com isso é provável que o emprego na indústria caia, em lugar de subir. 

Uma segunda frente quanto à qual as coisas certamente vão piorar é a saúde. O plano de reforma da saúde de Obama (Obamacare) causou uma forte redução na porcentagem de norte-americanos desprovidos de planos de saúde, para o mais baixo total histórico. 

Sua revogação causaria uma disparada imediata no número de pessoas desprovidas de cobertura —de acordo com estimativas do Serviço Orçamentário do Congresso, 18 milhões de pessoas perderiam sua cobertura de saúde no primeiro ano da revogação, e o total posteriormente poderia atingir 30 milhões de norte-americanos. 

E, não, os republicanos que passaram sete anos sem propor uma alternativa real para substituição do plano não desenvolverão uma nova proposta nas próximas semanas, se é que a desenvolverão um dia.
Quanto a uma terceira frente, o crime, as tendências futuras são incertas. A visão de Trump, de áreas urbanas devastadas por "crimes, e gangues e drogas" é só uma fantasia distópica. Os crimes violentos na verdade estão em profunda queda, a despeito do alarde feito recentemente quanto à alta no número de homicídios em algumas grandes cidades. 

Imagino que o crime poderia cair ainda mais, mas também pode subir. O que sabemos é que o governo Trump não será capaz de pacificar as zonas de guerra urbanas dos Estados Unidos, porque elas não existem. 

Assim, como Trump lidará com as más notícias sobre alta no desemprego, queda severa na cobertura de saúde e pouca, se alguma, redução no crime? A resposta é óbvia: ele negará a realidade, da maneira que sempre faz quando ela ameaça seu narcisismo. Mas será que seus eleitores o acompanharão nessa fantasia? 

Pode ser que sim. Afinal, eles bloquearam as boas notícias dos anos Obama. Dois terços dos eleitores de Trump acreditam, falsamente, que o desemprego subiu nos anos Obama. (E 75% deles acreditam que George Soros paga pessoas para que se manifestem contra Trump.) 

Apenas 17% das pessoas que se declaram republicanas estão cientes de que o número de norte-americanos desprovidos de planos de saúde registra uma baixa histórica. A maioria das pessoas achava que o crime estava em alta mesmo quando estava caindo. E por isso pode ser que elas bloqueiem as más notícias dos anos Trump. 

Mas é provável que isso não seja assim tão fácil. Para começar, as pessoas tendem a atribuir melhoras em sua situação pessoal aos seus próprios esforços; com certeza, muitos dos eleitores que conseguiram empregos nos últimos oito anos acreditam tê-lo feito apesar, e não por causa, das políticas de Obama. Será que vão atribuir a culpa por empregos e planos de saúde perdidos a elas mesmas, e não a Trump? Improvável. 

Além disso, Trump fez grandes promessas durante a campanha, e por isso o risco de desilusão é especialmente alto. 

Será que ele vai responder às más notícias aceitando a responsabilidade e tentando se sair melhor? Ou vai renunciar á sua fortuna e entrar para um mosteiro? São duas soluções com igual probabilidade de acontecer.

Não, o egomaníaco em chefe, com toda a sua insegurança, certamente tentará negar as verdades desconfortáveis, e atacará a mídia por reportá-las. E —isso é o que mais me preocupa— é bem provável que empregue o seu poder para fuzilar os mensageiros. 

Falando sério, como é que vocês acham que um homem que comparou a CIA (Agência Central de Inteligência) aos nazistas vai reagir quando o Serviço de Estatísticas do Trabalho reportar uma primeira alta no desemprego ou queda no emprego industrial? O que ele fará quando os Centros de Controle de Doenças ou o Serviço de Recenseamento reportarem uma alta no número de norte-americanos desprovidos de cobertura de saúde? 

Você talvez tenha imaginado que o faniquito da semana passada foi ruim. Mas faniquitos muito, muito piores estão por vir. 

Tradução de PAULO MIGLIACCI
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Prêmio Nobel de Economia (2008), é um dos mais renomados economistas da atualidade. É autor ou editor de 20 livros e tem mais de 200 artigos científicos publicados. Escreve às segundas e sextas.
Fonte:  http://www1.folha.uol.com.br/colunas/paulkrugman/2017/01/1852289-trump-fez-grandes-promessas-durante-campanha-e-risco-de-desilusao-e-alto.shtml