terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Viagem às nossas profundezas: a chave está no intestino

O aparelho digestivo sempre foi alvo de ironias, mas ali se encontra nossa “vida interior”


O homem que recebe, pesaroso, as mostras de dor e solidariedade de familiares e amigos, enquanto contempla o corpo de sua mãe morta, está fazendo a digestão, assim como os que dão os pêsames ou caminham ensimesmados de um lado para outro da funerária, onde alguém se ocupou de servir café e salgadinhos aos visitantes. Alguns dos parentes, enquanto assimilam a perda, dedicam-se a formar na boca, com esses salgados, um bolo alimentar que, uma vez triturado pelos dentes e banhado no caldo produzido pelas glândulas salivares, atravessará a faringe e descerá pelo esôfago até cair nessa bolsa muscular de um litro e meio chamada estômago.

A aventura do bolo alimentar, que perdeu sua forma e talvez parte de sua essência, apenas está começando. No estômago será submetido a um tratamento mecânico-químico que o transformará numa massa chamada quimo. Nada resta de seu contorno original, mas também aqui sua base terá sido alterada para dar origem à separação entre o solúvel e o insolúvel. Em seguida, o quimo atravessará uma porta que leva ao intestino delgado, onde, ao longo de seus seis metros de comprimento, cheios de curvas, continuará degradando-se devido às secreções glandulares, para então chegar ao intestino grosso, um conduto de um metro e meio que desemboca no reto e daí ao ânus, orifício pelo qual são expulsadas as sobras não digeríveis da massa que os familiares citados acima haviam colocado inocentemente na boca, acompanhada de uma taça de café.

A finalidade do processo digestivo é simplesmente transformar os alimentos que levamos à boca em unidades mais simples e solúveis, capazes de serem absorvidas pelas paredes do trato digestivo e penetrar assim na corrente sanguínea para alimentar as células do corpo. Uma aventura química e física notável que realizamos, ou que nosso aparelho digestivo realiza, enquanto recebemos os pêsames, enquanto passeamos pelo parque, assistimos a uma aula de matemática, uma conferência de teologia, uma reunião de trabalho ou à representação de uma peça de Shakespeare. Também enquanto bocejamos em frente ao noticiário, onde aparece uma cidade recentemente bombardeada em que morreram centenas de civis, muitos deles crianças. Aquele casal de jovens que, depois de comer, faz sexo como se o mundo fosse acabar, na sala da fotocopiadora da sua empresa: os dois também fazem a digestão enquanto gemem.

Sabe aquela bolha de ar que chegou até o seu céu da boca no meio de um concerto de Vivaldi interpretado por um quarteto de cordas? É produto da digestão. Chama-se arroto e vem das profundezas abissais que nos formam, das quais estamos feitos e sobre as quais talvez refletiremos um pouco. Quando essa bolha é acre, deve-se a um excesso de acidez no estômago. Talvez você beba demais, coma mal ou tome muito café, não sei. Ou quem sabe sofra de estresse. No aparelho digestivo, com a mesma facilidade com que entra uma massa, penetra uma emoção. Não é fácil saber se uma pessoa é desafortunada pela ardência do estômago ou se tem ardência de estômago por ser desafortunada. A angústia instala-se com frequência ali, na chamada boca do estômago, impedindo a entrada de uma porção apetitosa de presunto de Parma, quando na verdade não podemos engolir é quem nos oferece a iguaria. Tal transformação do psíquico em físico explica, muitas vezes, por que um susto pode provocar uma disenteria ou por que o afã de reter riquezas pode desencadear constipação.

Da boca até as nádegas, enfim, é tudo aparelho digestivo, ou trato digestivo, que soa melhor, mais técnico. O trato, resumindo, é formado, em ordem descendente, por boca, esôfago, estômago, intestino delgado, intestino grosso, reto e ânus. Também fazem parte desse aparelho o fígado, a vesícula biliar e o pâncreas, glândulas que jogam no intestino diversos sucos essenciais ao processo de decomposição dos alimentos. O fígado, além disso, armazena nutrientes e joga fora as toxinas.
Mas o ponto é: somos atravessados por um vazio formado por tubos e câmaras, não por um vazio reto, que busque a distância mais curta entre dois pontos. Pois se da garganta até ânus, por fora, existem apenas quatro ou cinco palmos de longitude, por dentro há onze metros ou mais. O trato, quando chega ao intestino delgado, dobra-se fazendo ziguezagues, como um circuito de Fórmula 1 diabólico ao longo do qual a pasta ingerida no velório da mamãe vai se transformando simultaneamente em alimento e lixo. Seria correto dizer que o aparelho digestivo transforma tudo em excremento, mas também seria injusto e incompleto. Parte dos glucídios, lipídios e proteínas que introduzimos na boca é transformada em ouro, em ouro líquido que é filtrado pelas paredes do tubo para chegar ao sangue, que o transporta até os confins da geografia corporal para nutrir todas as nossas células. A maioria dos órgãos mencionados, que pesam e ocupam seu espaço, está disposta e organizada no interior de uma membrana chamada peritônio, com o mesmo cuidado com que vemos disposta a roupa dentro da mala de um sujeito obsessivo.

Poderíamos afirmar que o ânus é uma boca inversa, já que, ao invés de engolir, “desengole”. Existem mais piadas sobre a bunda que sobre a boca, vai saber por quê. O aparelho digestivo, em geral, sempre foi alvo de incontáveis ironias e até emergiu sobre ele uma subespécie do humor, em sua maioria de mau gosto, qualificado de escatológico. O escatológico, de acordo com uma acepção do dicionário, é o pertencente ou relativo aos excrementos e sujeiras. Nada a ver com o tom grave e circunspecto, quando não professoral, que utilizamos para falar do aparelho cardiorrespiratório, sobre o qual praticamente não existe literatura humorística.
Bactéria que pode gerar infecção de cólon
Pois bem. Acontece que o aparelho digestivo está na moda. Na Alemanha, por exemplo, foram vendidos mais de 1 milhão de exemplares de um livro interessantíssimo e rigoroso chamado A Vida Secreta dos Intestinos. Sua autora, Giulia Enders, conta no prefácio que aos 17 anos apareceu-lhe uma ferida na perna direita. Longe de sarar com os diferentes tratamentos, a ferida se estendeu inexplicavelmente para a outra perna e inclusive para os braços e as costas. Reunindo informações aqui e ali, Enders descobriu o caso de um homem que havia sido acometido por algo parecido depois de tomar antibióticos. Ela também havia tomado. “A partir daquele momento”, diz ela, “deixei de tratar minha pele como um doente da pele e o fiz como um doente do intestino.” O livro de Enders, que não deixa de fora um único assunto relacionado com a digestão, contém dados curiosíssimos. Afirma, por exemplo, que as hemorroidas, a diverticulite e a prisão de ventre quase não existem em países onde as pessoas evacuam de cócoras. Seriam, portanto, patologias provocadas pela postura que somos obrigados a adotar por causa da forma do vaso sanitário, um móvel cuja comodidade e desenho são motivos de orgulho do mundo ocidental. Mas você não precisa ter pressa, diz Enders. Para corrigir os efeitos nocivos do desenho artístico, basta colocar diante do vaso sanitário um banquinho para apoiar os pés enquanto inclinamos um pouco o corpo para frente. E assim os órgãos já estarão dispostos para uma evacuação satisfatória.

O aparelho digestivo reivindicou sua importância, digamos, e não somente ocupa o centro de nosso corpo, formando o eixo ao redor do qual se dispõem nossas metades simétricas, mas também ocupa hoje as conversas sobre nutrição, obesidade, fome, saúde e bem-estar. “Coma pouco e jante menos ainda, que a saúde de todo o corpo se forja na oficina do estômago”, dizia Dom Quixote a Sancho Pança, recomendação que é consenso entre os médicos atuais, quatro séculos depois.

Em relação ao aparelho digestivo se desenvolveu o humor escatológico. Nada a ver com a cerimônia em torno 
do aparelho cardiorrespiratório

O aparelho digestivo na visão de um bioquímico

Tivemos a ideia, a propósito do que estamos falando, de pedir um encontro com o bioquímico e geneticista Carlos López Otín, que nos recebeu em seu gabinete do Departamento de Bioquímica da Universidade de Oviedo. Ante nossas perguntas, ele atribuiu esse renovado interesse pelo aparelho digestivo aos estudos da ciência atual sobre a microbiota e os metagenomas.

− Nosso organismo – diz Lopez Otín – é a soma das células humanas e dos micróbios que nos habitam, cujo conjunto chamamos de microbiota ou microbioma. A soma das duas coisas é chamada holobionte. Um todo.

– Falemos sobre a parte não humana.

– A microbiota é formada fundamentalmente por bactérias, embora também haja vírus e parasitas de todo tipo, mas sobretudo bactérias. Durante muito tempo, pensou-se que o número de bactérias que nos habitam era 10 vezes superior ao número de células humanas. Hoje, com um cálculo muito recente, sabemos que esse número é só um pouco superior, digamos que 1,3 vezes, ou seja, pode haver 40 bilhões de bactérias dentro do corpo humano. Mas dá no mesmo, 30 ou 50. São bilhões.
– E que porcentagem dessas bactérias está no aparelho digestivo?

– Mais de 90%.

– São distribuídas igualmente ao longo de todo o trato?

– Estão concentradas sobretudo no cólon. O cólon humano é um dos lugares de maior densidade microbiana do planeta. De alguma maneira – acrescenta ironicamente –, é a nossa verdadeira vida interior. Nossa vida interior surge daquilo que nos habita, que é mais do que nos é próprio.

– Essas bactérias são especializadas?

– A maioria das bactérias do organismo, a imensa maioria, é absolutamente benéfica e foi se incorporando ao longo da evolução, numa simbiose muito elaborada em que participam estabelecendo uma sintonia adequada de praticamente todas as funções do organismo, incluindo funções neurológicas. O conjunto de bactérias que nos habitam, como já disse, chama-se microbiota ou microbioma. Podemos reconhecer cada coisa e a quem pertence por seu material genético. Cada ser humano tem seu próprio genoma, 3 bilhões de peças químicas acopladas numa tira de mais de dois metros em cada célula humana. As bactérias também têm o seu próprio material genômico, construído com os mesmos princípios, mas muito menor e de forma circular em vez de linear. Você pode analisar o genoma humano e dizer: “Tenho as chaves da essência humana, consultei o oráculo de Delfos e pude ler a mim mesmo; perguntei-me quem sou e o oráculo me respondeu lendo o meu genoma; ainda hoje não sei dizer o que significam muitas das letras que o compõem, muitas das variantes, mas aqui estão os segredos.” Mas se temos dentro de nós material genético de outros seres, também precisamos estudá-lo. O conjunto de todos esses genomas – o humano, o bacteriano, o microbiano, em geral – é chamado de metagenoma, um conceito ecológico pelo qual assumimos que o corpo humano é um ecossistema habitado por diversas espécies, e que todas elas transformam o entorno para a sobrevivência, para a competição no mundo.

– Que interesse isso tem do ponto de vista da saúde?


Tanto que, se alteramos a simbiose entre as células humanas e o microbioma, entramos em disbiose. A disbiose é a perda do equilíbrio entre as células de um organismo humano e as células bacterianas, microbianas em geral, que nos habitam. Trata-se de um conceito emergente que, num futuro não muito distante, nos ajudará a entender muitas das doenças crônicas que hoje nos afetam.

Temos trilhões de bactérias essenciais para nossa saúde. 
Noventa por cento estão no intestino

– As bactérias são, portanto, necessárias para a vida.

– Absolutamente.

– E viemos ao mundo com a microbiota ou microbioma? Isso é transmitido através da mãe?

– Em princípio, a maior parte da microbiota humana se estabelece durante os dois ou três primeiros anos, mas começamos a construí-la no canal do parto. A placenta tem seu próprio microbioma, e inclusive é possível que alguma parte possa ser transferida ao feto.

– O microbioma é uma descoberta recente?

– Há muito se sabe que somos colonizados por bactérias. A novidade é o conhecimento da influência que a microbiota tem sobre a saúde e a doença. Agora existe a tecnologia precisa para estudar as variações na microbiota através da análise do metagenoma. A obesidade, por exemplo, muda à medida que muda a proporção das espécies das comunidades bacterianas.

– Pode-se intervir de maneira eficaz no microbioma?

As hemorróidas, a diverticulite e a prisão de ventre
 quase não existem em países onde 
o costume é evacuar de cócoras

– Sim, claro. Se detectamos que certas espécies microbianas perderam influência, perderam seu nicho porque outras o ocuparam, o que certamente está contribuindo para o surgimento de uma doença, tentamos eliminá-las e substituí-las por outras.

– Como?

– De várias maneiras. Com prebióticos, probióticos e inclusive com transplante de fezes. Essa última técnica está em experimentação, e os resultados são preliminares. Os prebióticos são macromoléculas, fibras não digeríveis consumidas com a dieta e que favorecem a atividade da microbiota. Probióticos são microrganismos vivos ingeridos com a dieta para favorecer a saúde.

– Os que são incluídos com frequência nos iogurtes para recuperar a flora intestinal?

– Para recuperá-la ou modifica-la, sim. Se dentro de cinco anos for descoberto que as pessoas muito longevas têm uma porcentagem mais elevada de uma espécie bacteriana concreta, lá estará Daniel Ramón tentando colocá-la nos iogurtes.

As bactérias que são incluídas nos nossos alimentos

Daniel Ramón é doutor em ciências biológicas e diretor da Biópolis, empresa de biotecnologia radicada em Valência e dedicada, entre outros temas de vanguarda, ao desenho, produção e purificação de bactérias, leveduras e fungos filamentosos através dos métodos de fermentação clássica e o projeto de engenharia metabólica. A companhia fabrica e comercializa prebióticos e probióticos para a indústria farmacêutica e de alimentação. De fato, essas bactérias incluídas no iogurte do café da manhã dos espanhóis certamente procedem do laboratório de Ramón, onde, ao longo do último ano, foram realizadas cerca de 9.000 exames de fezes. Consultamos o especialista para saber se há avanços substanciais nesse campo.

Se analisarmos a saliva de duas pessoas antes e 
depois de que se veijem na boca, encontraremos 
800 milhões de bactérias a mais

– Sim – diz ele –, aprendemos a ver todas as bactérias que existem nas fezes usando uma técnica similar à utilizada para sequenciar o genoma humano. Com as técnicas anteriores, víamos no máximo entre 20% e 30% das bactérias que havia numa amostra fecal. Agora vemos todas. Essa técnica é denominada “análise do microbioma fecal”.

– Segundo o geneticista Carlos López Otín, o número de bactérias que nos habita supera o de células de nosso corpo. Essa quantidade equivale a qual peso?

– Um indivíduo de 70 quilos tem 1 quilo de bactérias dentro de si. Se a analisarmos qualitativamente, veremos que existem mais de 1.000 espécies de bactérias em nosso trato digestivo. Todas elas interagem com as células de nosso trato digestivo e realizam um metabolismo global. Se esse metabolismo for correto, ficamos saudáveis. Do contrário, teremos problemas. Tudo isso era desconhecido há apenas 10 anos. Na verdade, fala-se de microbioma do trato digestivo como um novo órgão de nosso corpo que desconhecíamos. O fascinante é que não há dois indivíduos com o mesmo microbioma digestivo. Se analisamos a saliva de duas pessoas antes e depois de um beijo na boca, cada uma terá 800 milhões de bactérias que antes não tinha.

– E como se faz o transplante de fezes?

– Recolhem-se as fezes de um membro próximo ao núcleo familiar, normalmente o marido ou a mulher, que atua como doador. Depois, acrescenta-se uma solução salina e coloca-se em uma batedeira. O resultado deve ser filtrado ou coado, e depois colocado em uma seringa unida a um catéter. A aplicação é feita no paciente pela parte superior ou inferior do aparelho digestivo. Se é pela superior, utiliza-se uma sonda nasogástrica. Pela inferior, é feita uma colonoscopia ou por meio de um enema. Nenhuma dessas técnicas é agradável, e por isso começaram a ser vendidos comprimidos que contém o "batido de fezes". Atualmente, há um certo vazio legal sobre o uso do transplante fecal. Embora ele pareça muito eficaz no caso das clostridiosis extremas, ainda são necessários mais dados clínicos e a receita de um gastroenterólogo.

Um tesouro oculto

Luis Miguel Ariza

Palavras que soam mal. Tudo que se refere aos excrementos provoca repugnância. E com os sinônimos, como cocô ou merda, definem-se as coisas malfeitas ou desprezíveis. As coisas imundas. No entanto, o que fica no fundo de seu vaso sanitário é muito mais valioso do que você pensa. É a porta para uma revolução na medicina atual, graças às técnicas de sequenciamento do DNA.

Excrementos que curam. As fezes de um indivíduo saudável curam. Não é algo novo. Há 3.000 anos, a coleção de 52 prescrições, o tratado de medicina chinesa mais antigo, já explicava suas virtudes. “Os beduínos também consumiam fezes de camelo para curar infecções como a disenteria”, destaca Jordi Cuñé, doutor em microbiologia e diretor de pesquisa da companhia AB-Biotics.

Quase feitos de bactérias… fecais. A microbiota está aninhada em suas tripas e você não poderia viver sem ela. Os cientistas se sentem tentados a categorizá-la como um novo órgão: uma colônia formada por entre 500 e 1.000 espécies de bactérias, compondo a maior parte da carga do intestino grosso. “Estamos colonizados por bactérias por todos os lados”, afirma Cuñé. Dizem que somos pele, ossos, sangue, neurônios, músculos, gordura e tecido conjuntivo. Seria preciso acrescentar a isso uma comunidade de entre 10 trilhões e 100 trilhões de bactérias.

Nossa estufa. Como vemos, temos tantas bactérias que, se dependesse do número, poderíamos nos considerar um superorganismo. E as fezes são seu principal embaixador, já que se concentram no intestino grosso. “Dizem-nos que o intestino é, guardadas as devidas proporções, como uma espécie de estufa, onde cultivamos as bactérias que são benéficas para nossa digestão e nosso sistema imunológico”, explica Borja Sánchez, membro do Conselho Superior de Pesquisas Científicas da Espanha e promotor da MicroViable Therapeutics, uma empresa de biotecnologia espanhola.

Bancos de fezes. As fezes são essenciais para conhecer se esse complexo universo que mora dentro de nós vive em equilíbrio harmonioso ou se enfrenta em guerras fratricidas. Quando isto ocorre, surge a doença e até a morte. A importância dos excrementos é tão grande que já existem bancos internacionais de fezes, um produto que pode ser tão precioso como o sangue. A OpenBiome, em Massachusetts (EUA), é uma depositária sem fins lucrativos dos excrementos de doadores saudáveis. Na Advanced Bio, em Sacramento (Califórnia), desde o ano passado se congelam fezes para extrair a microbiota saudável. Essas fezes podem salvar vidas.

Transplantes. A bactéria Clostridium difficile se tornou resistente a muitos antibióticos por causa de seu uso indiscriminado durante décadas. Ela aguarda nos hospitais para colonizar suas presas, em geral maiores de 65 anos sob tratamento antibiótico e com uma flora intestinal debilitada. Pode desencadear uma gastroenterite fatal. Nos EUA morrem em consequência dessas diarreias 14.000 pessoas por ano. Na Espanha, sua taxa de mortalidade está aumentando: 159 mortes entre 1999 e 2006. Nos casos mais graves, a única maneira de detê-la é com um transplante de fezes doadas por uma pessoa saudável.

O que fazem por nós (e quando não funcionam bem). A microbiota saudável nos faz sentir melhor. Ao forrar o interior dos intestinos, atua como um muro protetor para evitar que se agarrem a eles agentes patogênicos indesejáveis; e as próprias bactérias segregam toxinas contra outras bactérias. Além disso, a microbiota saudável produz enzimas que somos incapazes de fabricar para romper nutrientes que não são digeridos no estômago e aproveitá-los; educa nossas defesas contra patógenos e alérgenos, e permite que alguns remédios se ativem ao chegar ao intestino.

Conflitos entre bactérias que podem ser fatais. Se não há harmonia, vêm os problemas, explica Jordi Cuñé. Os desequilíbrios dos micro-organismos – que incluem bactérias – presentes na vagina estão relacionados com uma menor fertilidade. E em nossos intestinos, os conflitos da microbiota entre diversas populações estão associados a patologias como a colite ulcerosa, a Doença de Crohn, o cólon irritável e a síndrome metabólica, que aumenta o risco de diabetes, hipertensão e problemas cardíacos. Alguns estudos sugerem que a obesidade poderia estar relacionada com esses desequilíbrios.

− Por que há tantos tipos de fezes?

− Porque no mundo animal há vários tipos de dietas e de digestões. O que você come tem uma influência direta sobre suas fezes. Há animais que só comem vegetais, outros que só comem carne e outros que comem de tudo. Cada um deles defeca diferente. Até para um mesmo animal há diferenças se a dieta é trocada. É muito comum ver isso em cães. Se você altera o tipo de alimentação deles, a consistência e a cor das fezes mudam. Algo similar ocorre nos humanos. Não se assuste se um dia depois de ter comido um bom prato de arroz negro suas fezes saiam negras como o carvão. Entre animais distintos entra em jogo o tipo de digestão, inclusive de ingesta. Depende muito da eficácia de sua digestão. Os ruminantes costumam ter uma digestão muito eficaz. Já a dos coelhos é bastante ineficaz. Por isso eles comem grama, defecam uns primeiros excrementos brancos, que se chamam cecotrofos, em seguida os comem e têm uma segunda defecação, muito mais dura, que já não ingerem. Com essa dupla passagem, conseguem extrair toda a energia do que comem.

– Por que uma alimentação idêntica pode resultar em fezes tão diferentes do ponto de vista da umidade, da textura e da cor?

– Por muitas causas, algumas patológicas e outras não. Uma causa muito clara é a ingestão de água. Quanto mais água se bebe, mais brando se defeca. Os médicos falam de sete tipos de fezes que classificam na chamada “escala Bristol”. Essa escala foi desenvolvida por dois médicos da Universidade de Bristol, que dividem as fezes entre duras, com forma de salsicha ou de morcela, com massa pastosa ou aquosa…

– Que intestinos produzem as fezes mais bonitas?

– Gosto não se discute. Mas para mim, as mais bonitas de todas são as do peixe-papagaio. Esses peixes comem muitíssimo coral, que depois defecam. Quando se acumulam, suas fezes formam areia branca. As praias de areia branca do Caribe têm essa origem.

– Quais são as patologias mais benignas do trato digestivo?

– A acidez no estômago, o refluxo gastroesofágico, a prisão de ventre, a diarreia, os gases…

– O senhor sabe quanto movimenta o setor farmacêutico ou parafarmacêutico com o tratamento dos males do aparelho digestivo?

– Nos EUA, 37% dos cidadãos precisam, a cada ano, de algum tipo de tratamento, remédio ou suplemento nutricional relacionado à chamada “saúde digestiva”. Tudo isso significou, em 2015, vendas de 65 bilhões de dólares (209 bilhões de reais).

– E quanto ao câncer?

– O de cólon é o mais frequente, segundo os dados divulgados na internet pela Associação contra o Câncer. A associação afirma: “É o tumor maligno de maior incidência na Espanha, se se contar homens e mulheres, com cifras entre 28.000 e 33.800 novos casos por ano. Ocorrem aproximadamente 20.000 casos novos em homens e 14.000 em mulheres, e afetará um de cada 20 homens e uma de cada 30 mulheres antes de completar 70 anos. Na Espanha, a taxa de sobrevida em cinco anos [porcentagem de pacientes que vivem pelo menos cinco anos após o diagnóstico da doença] está neste momento acima da média dos países europeus, com 64% [a média europeia é de 57%]”.

– Você acredita que está na moda falar do aparelho digestivo?

– Sem dúvida. Essa moda vem mediada pelo que estamos aprendendo nos últimos anos com a análise dos microbiomas digestivos. Também porque há divulgadores que têm escrito livros interessantes, como A Vida Secreta dos Intestinos, de Giulia Enders. Publicaram uma conferência dela no YouTube e foi um sucesso. A partir daí, escreveu o livro, que divulga de forma muito adequada tudo que está ligado à digestão.

– Diga-me uma coisa: depois que uma pessoa morre, continua fazendo a digestão durante algum tempo?

– Sim, porque as bactérias continuam no sistema digestivo.

Isso significa que no velório com que iniciamos esta reportagem estava trabalhando não só o aparelho digestivo dos parentes, mas também o da mulher morta. Esse ponto − a digestão − unia todos eles. Une todos nós.

Juan José Millás é um escritor e jornalista espanhol nascido em Valência, em 1946. Já escreveu 35 livros − romances, ensaios, crônicas e monólogos − e sua obra narrativa está traduzida em 23 idiomas. Recebeu dez prêmios, como o de Jornalismo Mariano de Cavia em 1999 e o Planeta em 2007
---------- 
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/08/ciencia/1483912831_292885.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário