terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Domenico de Masi Sem trabalho, mas maravilhoso

"O Brasil não está sem dinheiro. 
Os milionários não fazem parte do país?", 
diz o sociólogo italiano 
Domenico de Masi, de 78 anos

Por Cristiane Barbieri
Domenico de Masi olha para a câmera do computador e pede desculpas. "Acabei de pedir um cafezinho e infelizmente não posso oferecer um pouco para você", afirma, dando risada, enquanto bebe um gole. "Pelo menos por enquanto. Porque, na próxima revolução tecnológica, certamente o café vai até aí." Para o sociólogo italiano, o fato de ele estar em Tiradentes, enquanto a reportagem do Valor o entrevistava de São Paulo, via Skype, é um "verdadeiro milagre". "Passei metade da minha vida sem tecnologia e posso garantir que a segunda metade foi muito melhor", diz ele, que foi a Minas Gerais participar da primeira edição do Fórum do Amanhã. Lá, foram discutidos o futuro da política, da educação, da economia, das cidades, do meio ambiente, do trabalho e da governança. Para De Masi, é exatamente essa tecnologia que acabará com o trabalho como o conhecemos hoje e obrigará as pessoas a repensarem todas suas relações. "Haverá a necessidade de uma educação para o tempo livre, como hoje temos hoje a educação para o trabalho", diz. 

Leia, a seguir, trechos da entrevista que De Masi concedeu. 


Valor: Em suas entrevistas mais antigas, o senhor tinha uma visão bastante otimista do Brasil: já éramos o país do presente e não mais o do futuro. Continuamos, porém, com 13 milhões de analfabetos e 40 milhões de analfabetos funcionais. Há um descrédito gigantesco na política e o país está quebrado. Sua visão do futuro do Brasil ainda é a mesma? "Só restará o trabalhador criativo. Todos os outros serão substituídos por máquinas. Devemos (...) preparar o mundo sem trabalho" 


Domenico De Masi: Há três anos, o Brasil não era um país desesperançado. Eu pergunto: o que aconteceu em três anos para transformar um país tão otimista em um país tão sem esperança? Não foram nem três anos: foram três meses. Quando Dilma foi reeleita, 52% dos brasileiros eram otimistas. Poucos meses depois, todos estavam pessimistas. Parece estranho porque ninguém sabe a resposta. Para nós, que estamos longe do Brasil, é difícil entender. Mas sou otimista porque o elemento de base do Brasil continua o mesmo, de três ou de dez anos atrás. O Brasil é um país 28 vezes maior do que a Itália, com matérias­ primas abundantes, 200 milhões de habitantes, 42 etnias de todos os tipos e uma riqueza cultural que vai dos índios e da pré ­história à Embraer, uma companhia aérea das mais modernas do mundo. Nenhum país do mundo apresenta uma variedade tão ampla da realidade. Os elementos de base estão aqui, o problema é a redistribuição deles. 

Valor: É o mesmo cenário, inclusive com alguns políticos e alguns brasileiros que às vezes têm práticas pouco éticas. 

De Masi: Não creio que haja diferença entre o povo e a elite. Por exemplo, vi em um centro comercial do Rio uma loja onde se vendiam Ferraris. Quem compra Ferrari em um shopping? Em nenhum país há centros comerciais ricos e luxuosos como no Brasil e em nenhum deles se vendem Ferraris. Há um sentimento forte coletivo contra a corrupção. Por outro lado, muitos brasileiros também se comportam como bilionários. Apesar de ser o sétimo país em PIB, o PIB per capita não é tão grande. O Brasil não é um país singularmente rico. 

Valor: O senhor acredita que a operação Mãos Limpas, que resultou na eleição de Silvio Berlusconi, se repetirá com a Lava ­Jato? 

De Masi: Do que entendo, a técnica e o objetivo da Mãos Limpas são os mesmos da Lava­ Jato. Idênticas. A técnica usada pela Mãos Limpas foi, ao saberem que uma pessoa era corrupta, prendiam­na e esperavam que delatasse o outro. Me parece que é a mesma usada no Brasil. O objetivo também me parece o mesmo. A Mãos Limpas queria eliminar uma classe dirigente corrupta. Creio que [o juiz Sergio] Moro tem como objetivo acabar com a classe política corrupta. Não é culpa dos juízes o que ocorre depois. O que acontece depois é culpa da sociedade civil e da sociedade política. 
 
"Só restará o trabalho criativo. 
odos os outros serão substituídos 
por máquinas. Devemos (...) 
prepara o mundo sem trabalho."

Valor: Como assim? 

De Masi: Na Itália, as sociedades civil e política não estavam prontas para essa transição. Quem se aproveitou da situação foi o Berlusconi, que tinha nas mãos uma grande potência: a mídia. Só que, a Berlusconi não interessa a política, não interessa o poder, mas sim sua empresa e as mulheres. Ele não levou o país nem adiante nem à frente: ficamos parados por 20 anos, que são muito nesse momento histórico em que vivemos, é quase como um século. Experimentamos uma forma pós ­industrial de ditadura, a ditadura midiática, feita não pela força, com as armas, mas pela sedução da mídia. Foi um experimento muito trágico para a Itália: hoje temos 13% de graduados nas universidades, enquanto a Turquia tem 15%. O percentual italiano é menos do que a metade dos EUA. Isso se deu pelo fato de que, durante o período Berlusconi, a cultura e os interesses humanísticos eram secundários. Foi um grande dano para o país. Outro dano foi que não se criou uma nova classe dirigente. Depois da Lava ­Jato, se o Brasil conseguir nova classe dirigente que não seja corrupta, não seja violenta, que reduza a distância entre ricos e pobres, os efeitos serão positivos. Se o Brasil não tiver nova classe dirigente, o problema será igual ao italiano. 

Valor: Em entrevistas antigas, o senhor falava com admiração de vários políticos brasileiros. Eles foram uma decepção? 

De Masi: Venho ao Brasil há 25 anos. Na primeira vez que vim ao país, Fernando Henrique Cardoso estava no poder. Eu o conhecia como um grande sociólogo. Li seus livros sobre a sociologia do subdesenvolvimento e muitos outros de autores brasileiros. Naquele período, conheci ministros, governadores, arquitetos, artistas, intelectuais. Fiquei muito impressionado com a qualidade da classe dirigente brasileira. Comparada com a Itália, era muito boa, sobretudo a classe dirigente periférica, dos Estados, os governadores. Na Itália, os governadores quase sempre são muito medíocres. Criei lá um seminário anual de italianos e brasileiros e muitos dos que conheci aqui foram à Itália para as discussões. 

Valor: O que aconteceu com alguns desses políticos? 

De Masi: Um dos grandes problemas do Brasil é a distância entre ricos e pobres. É um dos países com maior desigualdade social, ocupa o 127º lugar no índice Gini, entre 196 nações. Como sociólogo, sempre julguei os governos pela capacidade de reduzir a distância entre ricos e pobres. No segundo governo FHC e nos dois governos Lula, a distância entre ricos e pobres no Brasil diminuiu. Só dois países no mundo passaram por isso: China e Brasil. Mas no Brasil foi muito mais. Saíram da pobreza 40 milhões de brasileiros. Na China foram 300 milhões, mas sobre 1,4 bilhão de pessoas, é um percentual muito menor. Além disso, o Brasil é um país democrático. Como sociólogo, o Brasil representou uma exceção única: foi o único país capitalista no qual 20% da população mudou de nível social. É um fato único. Para mim, sociólogo, isso é muito importante. Os elementos racionais, para admirar o governo de Fernando Henrique e depois o governo de Lula eram certos. Eram dados objetivos. No primeiro governo de Dilma [Rousseff], houve uma grande crise mundial, que não existia na época de Fernando Henrique nem de Lula. Mesmo com a crise internacional, a distância entre ricos e pobres não aumentou. Com essa base de dados objetiva, tive grande admiração por esses três governantes. Tenho simpatia pela Dilma também porque é mulher. Na Itália não conseguimos levar uma mulher à Presidência. Nem na França. Ou nos Estados Unidos. Não é algo trivial, e Dilma conseguiu ser eleita duas vezes. Havia elementos para que tivesse grande estima pelos governantes brasileiros. Sempre ouvi dizer que havia corrupção no Brasil, inclusive no tempo de Fernando Henrique. A Itália também é corrupta. Mas para que haja a corrupção, é necessário corruptos e corruptores. Não estão na prisão apenas os políticos. É preciso dizer que a política e a economia são corruptas. São corruptos os políticos, os empresários e a mídia, que não os denunciou antes. 

Valor: Em um país com desemprego crescente, o trabalhador pode aproveitar de alguma maneira o ócio criativo para se qualificar? 

De Masi: O problema do trabalho depende de multi fatores, sendo que os principais são a globalização e a tecnologia. Existem três tipos de trabalho: o físico do operário; o intelectual executivo, do empregado de bancos e escritórios; e o trabalho intelectual criativo, que fazemos eu e você. As primeiras máquinas automáticas substituíram muito o trabalho físico de operários, o que gerou grande desocupação nessa categoria. Depois chegaram os computadores, que substituíram muito trabalho intelectual executivo. Agora, com a inteligência artificial, será substituído também muito trabalho criativo. Sou professor universitário e muitos estão sendo substituídos pelo "e­learning". Todos os trabalhos estão sendo ameaçados pela globalização e pela tecnologia. Seguramente, num futuro próximo, em dez anos, precisaremos de muito menos trabalho humano. Produziremos melhor os serviços, com menos trabalho. O problema será como redistribuir a riqueza. Hoje, a riqueza é distribuída pelo trabalho. Para o desocupado, não há riqueza. Quando forem multi desocupados, o que acontecerá? 

Valor: O quê? 

De Masi: Creio que possam acontecer duas coisas: uma fisiológica e outra patológica. A patologia serão grandes conflitos sociais. A fisiologia se dará em três níveis: no atual, se toma consciência do problema; na segunda fase, ao ter consciência, se redistribui o trabalho. Hoje, o pai trabalha dez horas por dia e o filho é desocupado. Numa segunda fase, o pai vai trabalhar cinco horas e o filho cinco horas. Numa terceira fase, o problema será o tempo livre. O que fazer com o tempo livre será o grande problema do futuro. Quando todos tivermos muito tempo livre de trabalho, se formos pessoas cultas, saberemos como viver. Se formos pouco cultos, há o perigo da droga, da violência, da depressão. Haverá a necessidade de educação para o tempo livre, como hoje temos uma educação para o trabalho. 

Valor: Não seria o momento de qualificar a população, nesse momento de alta de desemprego? 

De Masi: Em 1930, Keynes calculou que a nossa geração deveria trabalhar 15 horas por semana para evitar a desocupação. No futuro próximo não haverá trabalho. É inútil essa qualificação para o trabalho. Será sempre menos trabalho. Só restará o trabalhador criativo. Todos os outros serão substituídos por máquinas. Devemos pensar, inventar e preparar o mundo sem trabalho. Será um mundo maravilhoso. 

Valor: Estamos discutindo a reforma da Previdência num país quebrado e a principal alternativa apresentada é o aumento da idade para a aposentadoria. Não haveria uma alternativa a isso? Reduzir a carga de trabalho gradativamente, mais cedo? 

De Masi: O Brasil não está sem dinheiro. Os milionários não fazem parte do país? O Brasil tem muito dinheiro. Os pobres é que não têm dinheiro. Os impostos no Brasil são de cerca de 30%, enquanto na Itália giram em 60%. É preciso redistribuir essa carga. Bem como muitas coisas: é preciso redistribuir o trabalho, a riqueza, o poder, o saber, as oportunidades e as garantias. A economia liberal não é capaz de distribuir, mas de produzir. Para distribuir, é preciso uma economia social democrática. 

Valor: Como o senhor vê o impacto das novas tecnologias e engajamento popular? A Primavera Árabe, em última instância, ajudou a deflagrar a crise dos refugiados. Nós soltamos o gênio mau da lâmpada? 

De Masi: Passei uma parte da minha vida sem tecnologia. A segunda parte, com tecnologia. A segunda fase da minha vida foi muito melhor, graças às novas tecnologias. Percebe que você está em São Paulo e eu em Tiradentes, vendo as belas plantas que estão atrás de você? Para mim, isso é um milagre. Demos grandes passos adiante e não vejo aspecto negativo na tecnologia. A Primavera Árabe foi sufocada pelos países ocidentais que forneceram armas aos inimigos. Por outro lado, a falta da tecnologia traz isso sim, muito mais problemas. Quantas vidas humanas o celular salvou? Se houvesse celular no tempo de Romeu e Julieta, bastava um telefonema dela avisando que estava chegando. Se Napoleão tivesse um telefone em Waterloo a história teria sido outra. 
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Valor Econômico impresso. Cad. EU&FIM DE SEMANA, 06/01/2017, pág. 4 a 6.

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