sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

MÃES PODEM SE ARREPENDER?

Tatiana Salem Levy*
 
 "Se as mulheres crescem ouvindo que a opção 
pela não maternidade vai necessariamente 
culminar num arrependimento, então é óbvio 
que muitas mulheres serão mães apenas para 
não correrem o risco de se arrependerem, o 
que demonstra que ter ou não ter filho não é 
propriamente uma escolha 
no nosso mundo"

Começar o ano falando sobre "Mães Arrependidas: Uma Outra Visão da Maternidade" (Civilização Brasileira), de Orna Donath, pode não parecer muito animador. Mas é tudo uma questão de perspectiva. Eu diria que começar o ano falando de questões frequentemente silenciadas é uma forma de nos permitir não apenas um começo de ano melhor, mas também um ano inteiro transformador.

O ano de 2017 foi, no panorama nacional e internacional, um marco para o feminismo e outros movimentos minoritários, que alargaram suas vozes e fizeram com que, mesmo aqueles que não queriam, as ouvissem. A revista americana "Time", por exemplo, elegeu como personalidade do ano as mulheres que denunciaram o assédio sexual e o estupro no movimento #
MeToo. Sinais de um novo tempo. Sinais de que é preciso ouvir quem normalmente é obrigado a se calar.

Daí a importância da pesquisa da socióloga israelense Orna Donath, que ouviu mulheres que se assumem arrependidas por terem tido filhos. Mulheres que, se pudessem, voltariam no tempo e não engravidariam. Vamos logo colocar alguns pingos nos "is" para evitar reações do tipo: "Essas mulheres são egoístas, só pensam em si". Ou: "Se não queriam, não deviam ter tido filhos". É verdade que é sempre estranho ouvir mães dizendo que prefeririam nunca ter dado à luz. No entanto, se elas estão falando, é importante que possam ser ouvidas, pois em suas falas há, não a maldade ou a incapacidade de amar, mas o sintoma de uma sociedade que empurra as mulheres para a maternidade.

Uma coisa que ficou muito clara para mim ao longo da leitura do livro é que o arrependimento da maternidade não é a origem do problema, mas a consequência. E que o problema não é estritamente pessoal, mas social. Quem é mulher e alguma vez cogitou não ter filho certamente ouviu a frase: "Olha que você vai se arrepender!". Uma profecia fatal é lançada sobre qualquer mulher que decida não ter filhos. Quanto mais velha, mais ela ouve sobre o relógio biológico, sobre a urgência em se tornar mãe logo e o arrependimento futuro caso não venha a ter filhos. Quando já passou da idade reprodutiva e não cumpriu sua missão na Terra, em geral é vista como fracassada. A ela, não resta senão lidar com a irreversibilidade da situação.

Se as mulheres crescem ouvindo que a opção pela não maternidade vai necessariamente culminar num arrependimento, então é óbvio que muitas mulheres serão mães apenas para não correrem o risco de se arrependerem, o que demonstra que ter ou não ter filho não é propriamente uma escolha no nosso mundo. Afinal, a sociedade deixa evidente que uma dessas escolhas é má. E, como ninguém quer se arrepender no futuro, lamentar uma ausência irreversível, muitas mulheres se tornam mães pelo medo de ficarem do lado errado da balança.

Uma vez que existo no meu tempo e na minha sociedade, confesso que eu também já pensei assim, que uma mulher sem filhos poderia se arrepender e aí seria tarde demais. Até o dia em que me tornei mãe. Não, não vou dizer que sou uma mãe arrependida. Ao contrário. Sempre quis ter filhos, não só porque adoro crianças (afinal, elas crescem), mas, sobretudo, porque me fascinam a ideia de educar alguém e a relação de afeto entre pais e filhos. Mas posso dizer que a maternidade me abriu os olhos e os ouvidos para quem não quer ser mãe. Hoje, consigo entender perfeitamente uma mulher que opte por não ter filhos. Aliás, acho cada vez mais que só quem quer muito ser mãe (ou pai) deveria se aventurar por esses mares.

Se uma mulher decide ter filho apenas por medo de se arrepender, ela corre um risco ainda maior: o de se arrepender de ter se tornado mãe. E aí o dano é mais catastrófico, porque teremos não só mulheres arrependidas, mas também filhos que precisam lidar com o fato de que suas mães prefeririam não tê-los. Mesmo que os amem muito. Mesmo que sejam excelentes mães. Mesmo que nunca explicitem seu lamento, os filhos saberão sempre, ainda que em silêncio, que suas mães não os queriam.

Esse é um dos pontos mais interessantes do livro de Orna: a distinção entre o arrependimento pela maternidade e o amor pelo filho. Muitas das mulheres entrevistadas amam seus filhos e fazem de tudo para não lhes faltar nada, porém não hesitariam em voltar atrás e escolher outro rumo para suas vidas. Em outras palavras, "elas se arrependem da maternidade, mas não dos filhos". Charlotte, mãe de três, diz o seguinte: "É complicado, porque me arrependo de ser mãe, mas não me arrependo dos meus filhos. Como pessoas, eu os adoro. (...) é realmente paradoxal. Eu me arrependo de ter tido filhos e de ser mãe, mas amo os filhos que tenho". E Debra, outra das entrevistadas, afirma: "Você me perguntou o que eu faria se pudesse voltar no tempo... definitivamente não teria filhos. Apesar de eles serem maravilhosos e encantadores, e do que eles me dão ser incrível".

Eis o que as distingue das mães que vivem a ambivalência de sentimentos: o desejo de voltar atrás e fazer outra escolha. Aquelas que sofrem com o trabalho, com o fato de terem abdicado de parte da sua vida anterior, mas acham que o sorriso do filho faz tudo valer a pena não são caracterizadas pela autora como mães arrependidas. Arrependidas são aquelas que, mesmo que amem os filhos, acreditam que a experiência da maternidade foi um erro.

Apesar de terem que conviver com um sentimento doloroso, muitas delas são dotadas de um forte sentimento de responsabilidade. Doreen afirma: "Eu digo a mim mesma que sou adulta, fiz uma escolha, vou arcar com a responsabilidade. Não penso em fugir dela, mas isso não torna as coisas mais fáceis, não diminui a minha dor". Algumas se mostram exemplares, fazem tudo pelo filho e correspondem ao que se espera de uma boa mãe. Outras saem de casa e os deixam a viver com os pais - e terminam por sofrer o estigma de uma sociedade que não vê mal no pai que abandona os filhos, mas uma crueldade na mãe que o faz.

Não se trata, em nenhum desses casos, de fazer uma apologia do arrependimento materno. Mães arrependidas não são seres superiores. Trata-se, no entanto, de saber ouvi-las e diagnosticar nesse sintoma uma doença social. Várias das entrevistadas, embora quisessem não ter filhos, estão convictas de que se voltassem no tempo não teriam coragem de fazer diferente. Porque fazer diferente significa enfrentar o status quo e ter que lidar com a solidão que isso implica. Grace comenta: "Eu sei que se estivesse naquela situação, passaria o resto da vida me arrependendo de não ter tido filhos". E Nina: "Não sei se teria coragem de decidir ser diferente de todo mundo e não querer ter filhos conscientemente".
De forma geral, elas concordam que, se conhecessem a maternidade de antemão, não teriam tido filhos, mas que, sem conhecer, essa escolha seria quase impossível. Por isso, por mais que seja incômodo ouvir suas histórias, é preciso ouvi-las. Elas existem, e imagino que em número muito maior do que supomos, embora não estejamos acostumados a ouvir sobre esse tipo de arrependimento nem nos debates públicos nem nos escritos feministas sobre maternidade. Trata-se de um tabu extremamente arraigado.

O arrependimento dessas mulheres funciona como um alarme. Há qualquer coisa de errado e mais vale falar sobre ela do que repetir a dor. Acabar com a imagem mítica da mãe e fazer da maternidade uma relação como muitas outras, e não um papel a ser cumprido, seria um bom começo. Orna questiona justamente por que aceitamos o arrependimento em outras relações, mas somos incapazes de entendê-lo quando atrelado à maternidade. "Nesse sentido", diz ela, "o arrependimento pode ajudar a abrir o caminho para romper com a ideia de que as mães são objetos cujo propósito é servir constantemente aos outros, vinculando seu bem-estar ao dos filhos, em vez de reconhecê-las como sujeitos individuais, donas de seu corpo, seus pensamentos, suas emoções, sua imaginação e suas memórias, e capazes de determinar se tudo isso valeu a pena ou não".

Se não ouvirmos o que essas mulheres têm a dizer e nos restringirmos a taxá-las de egoístas e transtornadas, haverá sempre mães arrependidas - a maioria vivendo em silêncio para não terem que conviver também com a vergonha e as agressões que lhe serão destinadas. Não estamos no mundo para seguir uma linha temporal de progressão que tem na maternidade seu ápice. Uma mulher não será menos feminina ou mais fracassada se não for mãe. Tampouco uma pessoa pior caso se arrependa da maternidade. Afinal, ninguém quer se arrepender. O arrependimento não traz nada de bom a quem o sente nem a quem convive com ele dentro de casa. Por isso, falar sobre ele me parece a melhor forma de evitá-lo.
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*Tatiana Salem Levy, doutora em letras e escritora, escreve neste espaço quinzenalmente E-mail: tatianalevy@gmail.com

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