quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Žižek: O que Hegel nos ensina sobre como lidar com Trump?


A crítica de Hegel ao humor subjetivo é hoje mais atual do que nunca. O que podemos aprender com ela sobre Donald Trump e seus críticos liberais?


Por Slavoj Žižek.

O que podemos aprender com o Hegel sobre Donald Trump e seus críticos liberais? Bastante, por incrível que pareça. Em sua avaliação crítica da ironia romântica, Hegel firmemente a descarta como sendo um exercício de negatividade vazia, um ato da vã subjetividade que percebe a si mesma como estando elevada acima de todo conteúdo objetivo, tirando sarro de tudo, enredada nas “idas e vindas do humor, que apenas faz uso de cada conteúdo para fazer valer nele seu chiste subjetivo.” Aqui, “é o artista mesmo que penetra na matéria, assim sua atividade principal consiste em deixar decompor-se e dissolver-se em si mesmo tudo o que se quer fazer objetivo e conquistar uma forma firme da efetividade ou que parece tê-la no mundo exterior, e isso mediante o poder de ideias subjetivas, de pensamentos momentâneos, de modos de apreensão surpreendentes.”1


Hoje, podemos facilmente reconhecer nessas linhas um intelectual pós-moderno que obsessivamente “desconstrói” toda e qualquer valor ou instituição social. Mas afinal, ao que Hegel contrapõe essa vã ironia? Geralmente, a postura de Hegel é tida como conservadora: ao invés da ironia anárquica totalmente destruidora dos românticos, deve-se reconhecer o Bem e o verdadeiro embutidos nos costumes sociais, isto é, seu próprio núcleo racional… No entanto, a posição hegeliana é na verdade muito mais ambígua. Em primeiro lugar, sua censura básica ao humor subjetivo não é que ele relativiza e solapa todo e qualquer conteúdo objetivo, não levando nada a sério, e sim que essa postura irônica demolidora é na realidade simplesmente impotente. Ela de fato não ameaça nada; apenas fornece ao sujeito irônico a ilusão de uma liberdade e superioridade interiores. Quando os indivíduos se enredam numa teia impenetrável de relações sociais, a única maneira que sobra para afirmar sua subjetividade é no nicho das piadas que supostamente demonstram sua superioridade interior.

Hegel contrapunha à ironia subjetiva romântica uma ironia ontológica muito mais radical, que caracteriza o fulcro da dialética. A propósito da ironia socrática, ele assinala que, “assim como toda dialética, ela dá força ao que é – tomado em sua imediatez, mas apenas a fim de permitir que a dissolução inerente nela transcorra; e podemos denominar isso a ironia universal do mundo”.2 Percebendo a realidade como sendo em si mesma antagônica, uma abordagem dialética não busca ativamente sobrepujá-la; e sim apenas deixa com que ela seja aquilo que ela é (ou melhor, o que alega ser), levando ela mais a sério do que ela própria o faz, permitindo assim que ela própria leve a cabo sua destruição. A ironia é de certa forma objetiva então não é de se surpreender que em uma passagem breve (e infelizmente pouco desenvolvida), Hegel contrapõe ao “humor subjetivo” aquilo que ele denomina “humor objetivo”:

[Quando] ao humor, por outro lado, interessa também o objeto e a configuração deste no seio de seu reflexo subjetivo, então alcançamos, desse modo, uma interiorização no objeto, um humor como que objetivo. […] A Forma que aqui é referida mostra-se primeiramente quando o comentário do objeto não é um mero nomear, não é uma inscrição ou título, que apenas diz o que em geral o objeto é, e sim se são acrescentados um sentimento profundo, um chiste oportuno, uma reflexão rica de sentido e um movimento pleno de espírito da fantasia, a qual vivifica e amplia a mínima coisa por meio da poesia da apreensão;”3

Aqui, estamos diante de um humor que, ao focalizar detalhes sintomas significantes, traz à tona as inconsistências/antagonismos inerentes à ordem existente. Então, não seria legítimo extrapolar dessas indicações a ideia de que a totalidade social em si é atravessada por antagonismos, permeada por de inversões cômicas? A liberdade torna-se terror, a honra torna-se adulação – não seriam essas inversões matéria da astúcia da razão? Podemos imaginar um caso mais aterrorizante de “humor objetivo” do que o do stalinismo, da inversão cômica das grandes esperanças emancipatórias em uma violência terrorista autodestrutiva? Nesse sentido, não é Stálin o grande zombeirão do século vinte? E, nos tempos de hoje, não poderíamos dizer que a liberdade individual de escolha é também uma piada cuja verdade é a desesperada situação de um trabalhador precário?

Em virtude do fato de que o maior produto cultural da era stalinista são piadas políticas, é tentador parafrasear mais uma vez Brecht: o que é a melhor piada anti-stalinista diante da piada que é a própria política stalinista em si? Ou, numa versão mais atual: o que são até mesmo as melhores piadas sobre Trump diante da piada que é a própria política dele? Imagine que, alguns anos atrás, um comediante encenasse para uma plateia as declarações, os tuítes e os feitos de Trump. Suas piadas certamente seriam vistas como não-realistas e exageradas. Isso porque Trump já é uma paródia de si mesmo, com o estranho efeito de que a realidade de próprios seus atos é mais escandalosamente engraçada do que muitas paródias.

A crítica de Hegel ao humor subjetivo é hoje mais atual do que nunca. Um dos mitos populares dos regimes comunistas tardios na Europa Oriental era que havia um departamento da polícia secreta cuja função consistia não em recolher e sim de efetivamente inventar e colocar em circulação piadas políticas contra o regime e seus representantes, pois tinham ciência da função positiva estabilizadora das piadas (afinal, as piadas políticas oferecem uma maneira fácil e tolerável de desabafar, aliviando as frustrações das pessoas).
E, num nível diferente, o mesmo vale para Trump. Basta lembrar quantas vezes a mídia liberal anunciou que Trump havia sido pego de calças curtas e tinha cometido suicídio político (tirar sarro dos pais de um herói de guerra morto, se gabar de poder “agarrar mulheres pela boceta” quando quiser etc.). Os comentaristas liberais arrogantes ficam pasmos ao perceber como seus contínuos ataques incisivos ao comportamento de Trump – suas irrupções racistas e sexistas vulgares, suas imprecisões factuais, as baboseiras que diz sobre economia, etc. – não chegam de forma alguma a o ferir e talvez ainda ampliam o seu apelo popular do presidente dos EUA. O ponto é que eles não compreenderam como opera de fato o processo de identificação. Via de regra, nós nos identificamos com as fraquezas do outro, não apenas e nem principalmente com seus pontos fortes. É por isso que quanto mais as limitações de Trump são ridicularizadas, tanto mais as pessoas comuns se identificam com ele, lendo os ataques desferidos contra o presidente como ataques condescendentes da elite liberal voltados a eles próprios. Enquanto que os apoiadores de Trump sentem-se constantemente humilhados pela atitude paternalista da elite liberal perante a eles, a mensagem subliminar que as vulgaridades de Trump transmitem às pessoas comuns é: “Eu sou um de vocês!”. Como bem resumiu Alenka Zupančič, “os muito pobres lutam pelos muito ricos, como ficou claro com a eleição de Trump. E a esquerda faz pouco mais do que repreender e insultá-los.”4 Ou pior, podemos acrescentar aqui, o que a esquerda faz é algo muito mais perverso: ela “compreende” paternalisticamente a confusão e a cegueira do povo… Essa arrogância liberal-esquerdista explode em sua manifestação mais pura no novo gênero de talk show humorístico de comentário político (vide os programas de Jon Stewart, John Oliver etc.) que em larga medida encenam a pura arrogância da elite intelectual liberal:

“Parodiar Trump na melhor das hipóteses fornece uma distração de sua verdadeira política; no pior dos casos, isso converte toda a política em uma piada. O processo não tem nada a ver com os atores, apresentadores e escritores ou suas escolhas. Trump construiu sua candidatura agindo como um bufão babaca – há décadas essa é a persona dele na cultura pop. É simplesmente impossível parodiar efetivamente um homem que já é uma autoparódia consciente de si mesmo, e que se tornou presidente dos Estados Unidos com base nesse comportamento.”5

Em meus livros, eu costumo citar uma piada contada bons e velhos tempos do socialismo realmente existente e muito popular entre os dissidentes. Na Rússia do século XV ocupada por Mongóis, um fazendeiro e sua esposa caminham por uma poeirenta estrada de terra. No meio do caminho, surge a cavalo um guerreiro mongol. Ele aproxima-se do casal, diz ao fazendeiro que irá estuprar sua esposa e acrescenta: “Mas como há muita poeira no chão, você vai segurar meus testículos enquanto eu a estupro, para que eles não se sujem!” Assim que o mongol parte depois de ter terminado o serviço o fazendeiro começa a dar gargalhadas de felicidade. Espantada, a esposa indaga: “Como você pode estar pulando de alegria sendo que eu acabo de ser brutalmente estuprada na sua frente?” O fazendeiro responde: “Mas eu peguei ele! Suas bolas estão cobertas de poeira!” Por mais politicamente incorreta que possa soar, a piada traz à tona uma triste verdade. Ela revela a situação dos dissidentes: eles pensavam estar administrando sérios golpes aos testículos da nomenclatura, enquanto ela continuava estuprando as pessoas… E não podemos dizer exatamente a mesma coisa a respeito de Jon Stewart & Cia. tirando sarro de Trump? Não poderíamos dizer que eles apenas sujam as bolas do presidente de poeira, ou, no melhor dos casos, as arranham?

* Artigo enviado pelo autor diretamente ao Blog da Boitempo. A tradução é de Artur Renzo.

Notas

1 G. F. W. Hegel. Cursos de estética. Vol. II. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. Consultoria Victor Knoll. p. 336. São Paulo, Edusp: 2000.
 
2 G. F. W. Hegel, Lectures on the History of Philosophy, Part One: Greek Philosophy. First Period, Second Division. Citado pelo autor em: https://www.marxists.org/reference/archive/hegel/works/hp/hpsocrates.htm
 
3 G. F. W. Hegel, Cursos de estética. Vol. II. Trad. Marco Aurélio Werle e Oliver Tolle. Consultoria Victor Knoll. p. 323. São Paulo, Edusp: 2000.
 
4 Alenka Zupančič, “Back to the Future of Europe” (unpublished manuscript).
5 Stephen Marche, “The Left has a post-truth problem too. It’s called comedy.” [A esquerda também tem um problema de pós-verdade. Chama-se comédia.], Los Angeles Times, 6 jan. 2017.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014) e o mais recente O absoluto frágil (2015). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.

FONTE:  https://blogdaboitempo.com.br/2018/01/17/zizek-o-que-hegel-nos-ensina-sobre-como-lidar-com-trump/

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