quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Bolsonaro e a ética judaica

“Ir em direção ao homem é ir em direção a Deus. O contrário não é necessariamente verdadeiro”

A participação de uma significativa parcela da comunidade judaica em apoio a Jair Bolsonaro, é um aspecto das eleições que ainda merece uma análise mais detida.

Houve a palestra na Hebraica do Rio de Janeiro, que de certa forma catapultou a candidatura do ex-capitão entre as elites. Houve a internação no Hospital Israelita Albert Einstein, após a facada. E agora, o flerte de nosso presidente com o premiê israelense Bibi Netanyahu, e a perspectiva da mudança da embaixada para Jerusalém, seguindo o exemplo de Trump.

Assim como Edir Macedo, Bolsonaro também adotou a iconografia religiosa judaica em várias de suas aparições públicas.

Não se pode dizer que toda a comunidade judaica aderiu a sua candidatura. Mas houve quem dissesse que se tratava de 90%. Em contrapartida, criou-se no facebook o grupo judeus contra Bolsonaro, que conta com mais de 10 mil curtidas. Calcula-se em 120 mil, a população judaica brasileira, da qual faço parte.

O rabino Michel Shlesinger, bacharel de direito pela USP, é uma liderança humanista e moderada que expressa com considerável conhecimento os saberes da ética judaica. Oficia na Congregação Israelita Paulista, historicamente associada ao movimento de luta pelos direitos humanos. Henry Sobel era seu líder quando protagonizou importante papel de denúncia no assassinato de Vladimir Herzog, nos porões da ditadura, em 1975.

Rabino Michel escreveu um artigo para a Folha de S. Paulo, há três semanas, no qual evocou conceitos como o voto útil, o Estado laico e o direito das minorias.

“A maneira como o Estado trata povos indígenas e descendentes de quilombolas, quanta liberdade dá ou não a religiões afrodescendentes e o quanto se engaja na luta para que negros e mulheres possuam as mesmas chances que homens brancos é um tema central para o voto imbuído de valores judaicos”, escreveu na ocasião.

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Diante de tudo que aconteceu, qual seria sua orientação para as pessoas?
Tivemos um processo eleitoral bastante polarizado, e isso fez com que pessoas que se querem bem discutissem de maneira pouco gentil e delicada. Acho que agora, passadas as eleições, temos pela frente o desafio da reconciliação. Assim é o processo democrático, uns vencem, outros perdem. Agora é hora das pessoas voltarem a se abraçar, darem as mãos e resgatarem o carinho e a confiança que tinham antes de todo esse processo.

Gostaria de discutir o apoio que parte de comunidade judaica deu ao Bolsonaro. Como isso soou para você?
Eu vi com naturalidade. Temos uma comunidade plural, e tenho orgulho que ela seja assim. Nós tivemos pessoas que apoiaram o candidato vencedor e pessoas que apoiaram o candidato perdedor. Havia campanhas na mídia digital e rodas de conversa em uma direção e na outra. É uma comunidade que tem pessoas que pensam diferente, que defendem diferentes pontos de vista.

Há duas semanas fiz uma entrevista com a Monja Coen com o seguinte título: “Budistas de verdade não votam em Bolsonaro”. Judeus de verdade apoiam Bolsonaro?
Alguns sim, é possível.

Apoiar uma proposta como a dele não contraria a ética judaica?
Eu acredito que a ética judaica passa pela possibilidade de você admitir diversos pontos de vista. E foi o que aconteceu durante as eleições. Essa é a beleza da democracia, essa é a beleza do judaísmo, no sentido de que a gente não tem uma estrutura hierarquizada. As pessoas têm direito e liberdade de defender o que acreditam, e de apoiar as campanhas e as pessoas que elas querem apoiar. Isso, em especial, é motivo de orgulho, é bonito.
O que há de negativo, na minha opinião, foi uma agressividade que aconteceu durante todo esse processo. Isso é o que me preocupa, famílias que pararam de se falar, grupos de WhatsApp desmembrados porque pessoas não conseguiam mais se relacionar. Temos um caminho de cicatrização pela frente, de reaproximar essas pessoas, que são pessoas que se gostam, que se amam, mas que no fervor da defesa de um ou outro candidato acabaram de desentendendo.

Tem alguma passagem bíblica que te inspira nesse momento de reconciliação?
Existem muitas. Mas, em especial eu me lembro de uma passagem do Talmud (tratado sobre lei, ética e costumes judaicos), que diz que devemos ser discípulos de Aaron – o irmão de Moisés, que segundo a literatura rabínica era um conciliador.
Quando havia duas pessoas que brigavam, ele chegava pra uma delas e falava: “Olha, o outro está com saudades de você, não aguenta mais essa separação, não sabe viver sem você”, e falava isso para o outro também. E aí as duas pessoas acabavam se aproximando e reconciliando.
Então eu acho que a gente tem um pouco agora essa função de ser discípulos de Aaron, no sentido de ajudar as pessoas a superarem as mágoas. E acho que foram muitas mesmo, eu tenho visto isso.
Quem estava em uma trincheira se sentiu muito distante da outra, com dificuldade de ouvir, de dar qualquer passo na direção contrária. Essa distância criada entre os dois candidatos se refletiu em seus apoiadores.

Eu entendo que a ética judaica aprecie a diversidade. Mas, quando a gente tem um discurso que é preconceituoso, que ataca as minorias, que propõe de armar a população. Esse tipo de proposta dialoga com a religião?
A religião é muito ampla. As fontes judaicas – assim como as fontes de qualquer tradição religiosa – têm um pouco de tudo, e depende de onde você coloca a lente de aumento.
As religiões têm passagens lindas, das quais a gente se orgulha muito, e têm passagens não tão bonitas também, nas fontes do judaísmo e de todas as outras tradições religiosas. Portanto, falar “religião” é algo extremamente amplo.
É verdade que o judaísmo, de forma bastante sistemática, defendeu o direito das minorias, os direitos humanos. Defendeu a ética e o combate à corrupção. Tudo isso é algo coerente com a defesa dos valores que a tradição judaica privilegiou em detrimento de diversos outros.
A amplitude das fontes religiosas pode servir como legitimação de posturas fanáticas – como acontece em todas as religiões; existem minorias fanáticas que acabam legitimando suas posições nas fontes de suas tradições religiosas. Isso é também parte da religião. As fontes têm um pouco de tudo. A pergunta é: o que você resolve sublinhar?
Pessoalmente, enfatizo os valores que eu enxergo como os mais importantes da tradição judaica. E entre eles está, sem dúvida nenhuma, a questão dos direitos humanos, da defesa das minorias.

Na cultura judaica existe a sombra do que foi o holocausto e o nazismo. Como ela dialoga com essas escolhas?
 Eu acho que a gente vive de sombras.
Essa é uma passagem recente da História da humanidade que atingiu a comunidade judaica de forma particular, assim como o regime militar é uma passagem recente da História brasileira e tem efeitos importantes sobre o que somos hoje.
Infelizmente a humanidade coleciona passagens sombrias, de alguma forma a gente carrega elas com a gente, e acaba tomando decisões que são muitas vezes motivadas por essas passagens, ou por aproximação, ou por distanciamento.

Justamente venceu o discurso da negação da ditadura.
 Eu te entendo e tenho conversado com pessoas que têm essa dificuldade que você está expressando.
Tem uma coisa do processo democrático que é dura mesmo. Às vezes o seu posicionamento, aquilo que você defende como o ideal, o certo – e talvez seja mesmo –, é derrotado. E é parte do jogo da democracia. Não é fácil, é duro, é difícil, porque às vezes você tem muita convicção de estar do lado correto, do lado do bem, da luz. E, eventualmente sua posição é derrotada.

O que cada um de nós pode fazer para vivenciar essa reconciliação?
Aqueles que não apoiaram o candidato que venceu devem participar de maneira muito próxima do que vai acontecer daqui em diante. A democracia é assim. Alguém governa e quem perde faz oposição. A oposição é uma posição tão importante na democracia quanto a situação. Na História recente do Brasil, a oposição foi responsável por tirar governantes que escorregaram, que não fizeram o que deveria ser feito. A gente tem uma História curta de democracia com vários governantes que não terminaram seus mandatos por conta de uma oposição que acompanhou de perto o que estava acontecendo e teve força suficiente de interromper o mandato. Com a Dilma foi assim, com o Collor foi assim. O papel da oposição é importantíssimo. As pessoas que não foram eleitas, foram eleitas como oposição.

Escutei de várias pessoas que esses sentimentos de ódio e intolerância estavam guardados e saíram do armário, vieram à tona. Você concorda com isso?
Concordo. A polarização da campanha fez com que muitas pessoas que tinham posicionamentos, sentimentos, ideias que não tinham coragem de assumi-las de maneira pública, clara, se posicionassem, fazendo com que alguns esqueletos saíssem do armário.

Tivemos duas passagens marcantes: a palestra do Bolsonaro na Hebraica do Rio e a internação dele após a facada no Hospital Albert Einstein. Foram dois momentos onde houve articulação de algumas lideranças judaicas. Você acha que para a comunidade isso é bom? Isso poderia alimentar o preconceito, por parte de quem não é partidário dele.
Se a comunidade estivesse toda fechada em torno de qualquer uma das duas campanhas não seria positivo, não seria bom. Mas, haver pessoas da comunidade judaica próximas de um ou de outro candidato e se sentindo na obrigação de estabelecer pontes com a comunidade, aproximar esse candidato da comunidade e etc, eu acho positivo. É positivo dentro dessa noção de pluralismo, de uma comunidade que tem pessoas que pensam de uma forma ou de outra, que se sentem próximas de um partido ou de outro.

Essa palestra na Hebraica foi para um só candidato…
Houve uma reação acertada da liderança da comunidade judaica quando isso aconteceu, dizendo justamente que a comunidade é plural. Existem pessoas que estão mais próximas de um candidato ou de outro, mas isso não significa que a comunidade está apoiando alguém.

Tem um outro aspecto que é curioso, que é o apreço que os evangélicos têm pela cultura judaica. No dia da vitória, o candidato Bolsonaro fez um discurso, e no cenário da casa dele parece que sempre há uma chanukiá (candelabro de nove braços), ou algum símbolo, objeto que remete a nossa religião. Como isso soa pra você?
Existe uma conexão muito forte com Israel por parte dos evangélicos, sem dúvida. E isso nos aproxima, porque a comunidade judaica sente uma relação afetiva, espiritual muito grande com Israel. Nesse sentido a comunidade evangélica e judaica ficam próximas.
Mas do ponto de vista religioso, teológico existem diferenças. De fato, existem alguns símbolos judaicos que foram incorporados ao ritual de parte das igrejas evangélicas, isso cria alguma identificação. Mas, obviamente, são religiões diferentes, com posicionamentos diferentes em questões da mais variadas.

Bolsonaro disse que a primeira viagem internacional que ele faria seria para Israel. E ainda acenou com a possibilidade da embaixada ser transferida para Jerusalém, seguindo o que os Estados Unidos fizeram.
Eu escutei tudo isso, e tudo isso passa por essa proximidade muito grande que os evangélicos e judeus têm com Israel. Israel é uma referência espiritual para os dois povos.

Mas acaba extrapolando um pouco a questão da fé, quando uma proposta como trocar a embaixada de lugar entra na mesa. Envolve uma outra complexidade que é mais geopolítica e acaba empoderando os homens fortes.
Para muita gente da comunidade, se você não é favor de qualquer que seja a política de Israel, é como se fosse contra Israel.
O que não é necessariamente correto.
Como brasileiros, nós eventualmente criticamos o governo do Brasil, e isso não significa traição a nossa cidadania, pelo contrário. É pelo fato de gostarmos do Brasil que a gente assume uma posição crítica que às vezes elogia e às vezes vai ser negativa a algum tipo de posicionamento. O mesmo tem que acontecer em relação a Israel.

Israel é motivo de muito orgulho para a comunidade judaica, mas é um país liderado por pessoas. Pessoas falíveis como você e eu. Eu acho que amar Israel significa ter a possibilidade de elogiar os caminhos que Israel segue, e também ter a possibilidade de criticar eventuais erros.

Você escreveu no seu artigo sobre o conceito de Estado laico. O slogan de Bolsonaro foi “O Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo”.
Acho que a resposta mais honesta é: a conferir. Vamos ficar vigilantes para ver de que maneira isso vai caminhar. Eu acredito que Estado laico é uma conquista enorme da democracia brasileira. Devemos nos manter vigilantes para que essa conquista permaneça. A separação entre Estado e religião ainda está se aperfeiçoando, acho que ainda não é uma separação completa e absoluta. O exemplo disso são os símbolos cristãos em repartições públicas como tribunais, etc, que ainda são resquícios de um Brasil oficialmente católico. Acho que essa separação ainda está amadurecendo e que qualquer retrocesso não seria saudável para nossa democracia.

O que você acha da ideia de escola sem partido?
Embora eu não conheça a proposta em profundidade, o que eu posso dizer é que me oponho a qualquer cerceamento de liberdade. Acho que os excessos precisam ser investigados e punidos à posteriori. Qualquer tipo de censura prévia é ruim, é um retrocesso. A escola, a universidade, é lugar do pensamento livre.

E a ideia do retorno aos valores mais tradicionais da família? Existe um discurso corrente por um retorno a um modelo mais convencional, um saudosismo, uma proposta de retornar aos valores cristãos de família.
Os valores de família não necessariamente são cristãos, porque tem família na comunidade muçulmana, na comunidade judaica, na comunidade budista. Os valores de família são mais universais, não somente cristãos. E ninguém se opõe à família, obviamente. Temos que ver na prática o que isso vai significar.

Se o resgate de valores de família significa a exclusão do outro, de quem não se encaixa no modelo tradicional de família, então estamos falando de discriminação. E discriminação não só é ruim, como é crime. Então precisamos ver de que maneira isso vai acontecer.

No judaísmo, o conceito de família é absolutamente essencial, importantíssimo. Mas, não podemos discriminar aquele que não se encaixa no modelo tradicional de família.

Na vida convivi também com um perfil de praticante da religião, que é praticante na sinagoga, mas que no campo profissional às vezes é um predador.
Eu fico às vezes com a impressão de que quem fala exageradamente em nome de Deus, deveria antes de mais nada olhar para si.
Talvez essa seja uma generalização. Mas, o que existe são pessoas que investem muito no ritual, e comprometem de maneira leviana as relações pessoais. Na minha avaliação, essa não é uma pessoa religiosa. Uma pessoa religiosa busca um equilíbrio entre o ritual e as relações sociais, e mais do que isso, quando encontra conflito entre um e outro, privilegia as relações sociais.

Ir em direção ao homem é ir em direção a Deus. O contrário não é necessariamente verdadeiro.
Quando você está indo somente em direção a Deus, somente praticando rituais – de qualquer que seja a tradição – você não necessariamente está contribuindo para uma sociedade mais justa, para uma sociedade melhor. Quando isso entra em conflito, você precisa privilegiar o social em detrimento do ritual.

Existe uma passagem que lemos no último shabbat (dia do descanso semanal), que conta que Abraão estava na porta de sua tenda conversando com Deus, recebendo a presença divina. Aparecem três visitantes, e ele abandona Deus falando sozinho e corre em direção aos visitantes. A tradição judaica clássica aproveitou essa passagem para questionar: “Como é possível? Ele está conversando com Deus. Ele abandona Deus, ele deixa Deus falando sozinho para receber visitantes?”. E a resposta é maravilhosa: “ao correr na direção dos visitantes, ele estava correndo na direção de Deus”.

Quando você se compromete com a sociedade, quando você paga os seus impostos, quando você paga os salários dos seus funcionários, quando você se preocupa com aqueles que têm menos e que vivem na margem da sociedade, como os refugiados, você está indo na direção de Deus, está cumprindo um papel religioso tão ou mais importante que um ritual.

A sinagoga não tem regras arquitetônicas, cada uma tem um cara. Mas a sinagoga tem que ter janelas, porque a sinagoga tem que manter contato com o que acontece do lado de fora, na rua. Na hora que a sinagoga se isola do que está acontecendo na sociedade, ela deixa de ter razão para existir. Na minha leitura de judaísmo, um ritual como um fim em si mesmo não faz nenhum sentido. Um ritual é um meio de aprimoramento da pessoa para que ela tenha ferramentas para aprimorar a sociedade.

Talvez esse seja um recado interessante para os nossos governantes: pensar mais nos humanos e menos em Deus. Porque através dos humanos você chega em Deus.
Isso. E o contrário não necessariamente é verdadeiro.

Você acha que resta uma autocrítica para ser feita de tudo isso?
Sim, mas de ponta a ponta. Eu acho que a sociedade brasileira precisa deitar no divã depois de tudo isso que aconteceu. E não seria justo dizer que esse divã é de um candidato ou partido específico.
Eu acho que a gente precisa de uma autoanálise corajosa. Olhar para tudo que está acontecendo e se comprometer com o presente e o futuro do Brasil.

Eu acho que esse é o momento da gente se unir em torno do desejo que o novo governo seja bem sucedido. E fazer uma oposição responsável. Acho que o caminho é esse. Desejo o melhor para o Brasil, e o que for melhor para o Brasil será o melhor para os judeus daqui.
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Reportagem por:  Morris Kachani - 31 Outubro 2018 
Fonte:  https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/bolsonaro-e-a-etica-judaica/?utm_source=estadao:allin&utm_medium=newsletter&utm_campaign=estadaonoite::e&utm_content=link:::&utm_term=::::

CIRO: "Fomos miseravelmente traídos por Lula, não farei mais campanha para o PT."

O candidato derrotado à Presidência pelo PDT, Ciro Gomes, durante entrevista em seu apartamento em Fortaleza

O candidato derrotado à Presidência pelo PDT, Ciro Gomes, durante entrevista em seu apartamento em Fortaleza - Jarbas Oliveira/Folhapress

Candidato derrotado nega que tenha traído partido de Lula e diz que foi convidado a ser vice do ex-presidente no lugar de Haddad

 
Gustavo Uribe
Fortaleza 
 
Terceiro colocado na eleição presidencial, Ciro Gomes (PDT) afirmou, em entrevista à Folha, que foi "miseravelmente traído" pelo ex-presidente Lula e seus "asseclas".

Em seu apartamento, onde concedeu nesta terça-feira (30) sua primeira entrevista desde a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), Ciro nega ter lavado as mãos ao ter viajado para a Europa depois do primeiro turno. "A gente trai quando dá a palavra e faz o oposto".

"Não declarei voto ao Haddad porque não quero mais fazer campanha com o PT", disse.

O pedetista critica a atuação do PT para impedir o apoio do PSB à sua candidatura e diz que considerou um insulto convite de Lula para assumir o papel de seu vice no lugar Fernando Haddad (PT).

No primeiro turno, o senhor afirmou que choraria e deixaria a política se Bolsonaro ganhasse. Deixará a vida pública? Eu disse isso comovidamente porque um país que elege o Bolsonaro eu não compreendo tanto mais, o que me recomenda não querer ser seu intérprete. Entretanto, do exato momento que disse isso até hoje, ouvi um milhão de apelos de gente muito querida. E, depois de tudo o que acabou acontecendo, a minha responsabilidade é muito grande. Não sei se serei mais candidato, mas não posso me afastar agora da luta. O país ficou órfão.

E não tomou uma decisão se será candidato em 2022? Não. Quem conhece o Brasil sabe que você afirmar uma candidatura a 2022 é um mero exercício de especulação, porque a adrenalina não pacificou. Só essa cúpula exacerbada do PT é que já começou a campanha de agressão. Eu não. Tenho sobriedade e modéstia. Acho que o país precisa se renovar.

O senhor disse que deixaria a vida pública porque a razão de estar na política é confiar no povo brasileiro. Deixou de confiar? Não, procurei entender o que aconteceu. Esse distanciamento me permitiu isso. O que aconteceu foi uma reação impensada, espécie de histeria coletiva a um conjunto muito grave de fatores que dão razão a uma fração importante dessa maioria que votou no Bolsonaro. O lulopetismo virou um caudilhismo corrupto e corruptor que criou uma força antagônica que é a maior força política no Brasil hoje. E o Bolsonaro estava no lugar certo, na hora certa. Só o petismo fanático vai chamar os 60% do povo brasileiro de fascista. Eu não, de forma nenhuma.

Naquele momento do país, uma viagem à Europa não passou uma impressão de descaso? [Ciro viajou para Portugal, Itália e França após o 1º turno] Descaso não, rapaz, é de impotência. De absoluta impotência. Se tem um brasileiro que lutou, fui eu. Passei três anos lutando.

Com a sua postura de neutralidade, não lavou as mãos em um momento importante para o país? Não foi neutralidade. Quem declara o que eu declarei não está neutro. Agora, o que estava dizendo, por uma razão prática, não iria com eles se fossem vitoriosos, já estaria na oposição. Mas estava flagrante que já estava perdida a eleição.

Por não ter declarado voto, não teme ser visto como um traidor pelos eleitores de esquerda? A gente trai quando dá a palavra e faz o oposto. Quem tiver prestado a atenção no que falei, está muito clara a minha posição de que com o PT eu não iria.

Não se aliará mais ao PT? Não, se eu puder, não quero mais fazer campanha para o PT. Evidente, você acha que eu votei em quem?

No Haddad? Vou continuar calado, mas você acha que votei em quem com a minha história? Eles podem inventar o que quiserem. Pega um bosta como esse Leonardo Boff [que criticou Ciro por não declarar voto a Haddad]. Estou com texto dele aqui. Aí porque não atendo o apelo dele, vai pelo lado inverso. Qual a opinião do Boff sobre o mensalão e petrolão? Ou ele achava que o Lula também não sabia da roubalheira da Petrobras? O Lula sabia porque eu disse a ele que, na Transpetro, Sérgio Machado estava roubando para Renan Calheiros. O Lula se corrompeu por isso, porque hoje está cercado de bajulador, com todo tipo de condescendências.

Quem são os bajuladores? É tudo. Gleisi Hoffmann, Leonardo Boff, Frei Betto. Só a turma dele. Cadê os críticos? Quem disse a ele que não pode fazer o que ele fez? Que não pode fraudar a opinião pública do país, mentindo que era candidato?

Por que o senhor não aceitou ser candidato a vice-presidente de Lula? Porque isso é uma fraude. Para essa fraude, fui convidado a praticá-la. Esses fanáticos do PT não sabem, mas o Lula, em momento de vacilação, me chamou para cumprir esse papelão que o Haddad cumpriu. E não aceitei. Me considerei insultado.

Por que não declarou voto em Haddad? Aquilo era trivial. O meu irmão foi a um ato de apoio a Haddad, depois de tudo o que viu acontecendo de mesquinho, pusilânime e inescrupuloso. É muito engraçado o petismo ululante. É igual o bolsominion, rigorosamente a mesma coisa. O Cid está lá tentando elaborar uma fórmula de subverter o quadro e é vaiado. Estou devendo o que ao PT?

Não declarou voto no Haddad por causa do Lula? Não declarei voto ao Haddad porque não quero mais fazer campanha com o PT. Agora, em uma eleição que tem só dois candidatos, na noite do primeiro turno, disse à imprensa: "Ele não". O que ele quer mais agora?

Cid Gomes cobrou uma autocrítica dos petistas. E quais foram os erros cometidos pelos pedetistas? Devemos ter cometido algum erro e merecemos a crítica. Mas, nesse contexto, simplesmente multiplicamos por um milhão as energias que nos restaram para trabalhar. Fomos miseravelmente traídos. Aí, é traição, traição mesmo. Palavra dada e não cumprida, clandestinidade, acertos espúrios, grana.

Isso por Lula? Pelo ex-presidente Lula e seus asseclas. Você imagina conseguir do PSB neutralidade trocando o governo de Pernambuco e de Minas? Em nome de que foi feito isso? De qual espírito público, razão nacional, interesse popular? Projeto de poder miúdo. De poder e de ladroeira. O PT elegeu Bolsonaro.

Todas as pesquisas, não sou eu quem estou dizendo, dizem isso. O Haddad é uma boa pessoa, mas ele, jamais, se fosse uma pessoa que tivesse mais fibra, deveria ter aceito esse papelão. Toda segunda ir lá [visitar Lula], rapaz. Quem acha que o povo vai eleger pessoa assim? Lula nunca permitiu nascer ninguém perto dele. E eles empurram para a direita, que é o querem fazer comigo.

A postura do senhor não inviabiliza uma reaglutinação das siglas de esquerda? Não quero participar dessa aglutinação de esquerda. Isso sempre foi sinônimo oportunista de hegemonia petista. Quero fundar um novo campo, onde para ser de esquerda não tem de tapar o nariz com ladroeira, corrupção, falta de escrúpulo, oportunismo. Isso não é esquerda. É o velho caudilhismo populista sul-americano.

A liberdade de imprensa está ameaçada? É muito epidérmica a nossa sensibilidade. Não acho que tem havido nenhuma ameaça à liberdade de imprensa até aqui. Por isso que digo que uma das centralidades do mundo político brasileiro deveria ser um entendimento amplo o suficiente para cumprir a guarda da institucionalidade democrática. E um dos elementos centrais disso é a liberdade de imprensa. A imprensa brasileira nepotista e plutocrata como é parte responsável também por essa tragédia.

A imprensa ajudou a eleger Bolsonaro? A arrogância do [William] Bonner achando que podia tutelar a nação brasileira, falar pela nação brasileira. A Folha que repercute uma calúnia contra uma cidade inteira que é reconhecida mundialmente como um elemento de referência de educação para me alcançar [Ele se refere a reportagem sobre relatos de estudantes de fraudes em avaliações nas escolas de Sobral, no Ceará].

E os ataques feitos pelo Bolsonaro à Folha? É uma ameaça? Não considero, não. A Folha tem capacidade de reagir a isso e precisa ter também um pouco de humildade, de respeitar a crítica dos outros.
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FONTE:  https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/fomos-miseravelmente-traidos-por-lula-nao-farei-mais-campanha-para-o-pt-diz-ciro.shtml

Trump e os novos bárbaros

Juremir Machado da Silva*
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Novos bárbaros?

      Sete mil pessoas avançam pelo México em direção aos Estados Unidos. São desesperados da Guatemala, de El Salvador e de Honduras em busca da sobrevivência. Nada parece capaz de tirar-lhes o ânimo na caminhada. São movidos pela miséria. Como nada mais têm a perder, arriscam o que lhes resta: a pele. Os teóricos da globalização alardearam durante anos o fim do Estado-nação e a queda das fronteiras. Nem sempre disseram que isso deveria valer para as mercadorias. Não necessariamente para os seres humanos.

Guy Debord, autor do livro clássico “A sociedade do espetáculo”, advertira numa bela e triste fórmula: “O espetáculo não canta os homens e suas armas, mas as mercadorias e suas paixões”. A frase mais óbvia seria: “O espetáculo não canta os homens e suas paixões, mas as mercadorias e suas armas”. Certo é que, como no passado europeu, “hordas” avançam agora em direção ao império estadunidense. São os novos hunos, godos, burgúndios, alanos, suevos, vândalos, anglos, saxões, francos? Os bárbaros mudaram a

Europa e o mundo. O termo designava simplesmente quem era estrangeiro.

Estranho, estrangeiro, diferente, inferior. Essa cadeia falsamente lógica permeou imaginários ao longo dos séculos. Donald Trump pretende barrar os “novos bárbaros” com poderoso aparato militar. No twitter, o presidente dos Estados Unidos recorreu à sua tradicional retórica bélica: “É uma invasão do nosso país e nosso Exército estará esperando vocês!” Cinco mil soldados foram deslocados para a fronteira mexicana. Trump completou: “Muitos membros de gangues e algumas pessoas muito más estão na caravana rumo a nossa fronteira sul. Por favor, voltem, vocês não serão admitidos nos EUA a não ser que seja pelo processo legal”. Faz sentido.

O problema é que desesperado não podem esperar o processo legal que dificilmente lhes daria ganho de causa. O que fazer contra uma “invasão” de miseráveis capaz de marchar sem violência?  É verdade que, quando atacados com bombas de gás lacrimogênio, os retirantes responderam com paus e pedras. Essa cena parece ser apenas o prenúncio de outras. Na Europa, africanos jogam-se ao mar, onde muitos perecem, em barcos precários na tentativa de aceder à costa italiana. A fome é um combustível poderoso.

De quem fogem esses migrantes que com certeza adorariam não sair de casa? De ditadores, de maus gestores, de corruptos, de políticos venais, de exploradores de todos os tipos e da falta de perspectiva. Como ficar sem futuro? A reação das potências é fechar suas portas. Que se virem. Esbarram em duas questões: o senso de humanidade – os Direitos Humanos – que cobra uma atitude; e impossibilidade cada vez mais concreta de frear os avanços desses “novos bárbaros” dispostos a morrer para quem sabe conseguir viver.

O que fará Donald Trump se novas “hordas” surgirem nos “portões” do império e não pararem diante do poderio militar à espera? E dizer que um dia um certo Francis Fukuyama anunciou o fim da história. Ela nunca acaba. Às vezes, move-se para trás. Outras, dá saltos imprevisíveis para a frente.
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* Jornalista. Sociólogo. Prof. Universitário. Escritor.
Fonte:http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/10/11295/trump-e-os-novos-barbaros/
Imagem da Internet 

Como os discursos de Bolsonaro podem afetar a sociedade


018 Foto: Reprodução/YouTube Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, 
e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’

Em entrevista ao ‘Nexo’, ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro analisa o acirramento das tensões entre eleitores e o clima pós-eleições Eleições 2018.

O discurso extremado de Jair Bolsonaro contra imprensa, organizações da sociedade civil e adversários políticos é apontado como uma das evidências de que sua chegada ao poder traz consigo riscos às instituições democráticas.

Mas, para além das falas e ações do próprio presidente eleito, como sua atitude se reflete no comportamento da sociedade? Sobre o tema, o Nexo conversou com Renato Janine Ribeiro, professor de Ética do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação no segundo mandato de Dilma Rousseff.

Isso diante de episódios recentes, que vão da autorização por parte de juízes eleitorais de batidas policiais em universidades públicas, passam pela criação de um canal de “denúncia” contra professores “doutrinadores”, por ameaças a jornalistas e autoridades e desembocam, também, em episódios de violência nas ruas.

A campanha e a vitória de Bolsonaro são elementos para constituição de um clima de permissividade na sociedade em relação ao seu discurso, de investidas contra o que chama de ‘comunistas’, por exemplo, e também contra ativistas e minorias em geral?

Renato Janine Ribeiro Aparentemente sim. Como tudo isso é novo no Brasil, é difícil de dizer. Tivemos uma ditadura, muita gente foi perseguida, mas em nenhum momento ela teve um apoio popular comparável ao que Bolsonaro teve nas eleições. Então, os grupos que o apoiaram com mais intensidade parecem estar se sentindo autorizados a fazer vários ataques.
No próprio caso da USP, uma página do Facebook teve mais de 2.000 confirmações no domingo (28), no sentido de fazer um ataque à Faculdade de Filosofia que, ao tudo indica, a ação do reitor e da diretora da faculdade impediram que ocorresse.

Por outro lado, é bom notar que nos dias anteriores e mesmo no dia da eleição teve muito pouca gente nas ruas com propaganda de qualquer um dos candidatos, camisetas, adesivos etc, ao contrário de eleições anteriores. Na verdade, eu considero que, apesar da votação grande que Bolsonaro teve, já no primeiro turno, não existe um entusiasmo social tão grande a ponto de significar uma caça às bruxas generalizada. Me parece mais possível que grupos pequenos, aguerridos, se sentindo autorizados a atacar, participem disso. Mas eu não creio que isso constitua um clima generalizado na sociedade de ódio ao que eles chamam de esquerda.

A circulação de armas em ambientes públicos também pode ser impactada mesmo sem mudanças formais na lei sobre armamentos?

Renato Janine Ribeiro Bom, isso continua proibido. Resta ver como vai acontecer. Há pessoas fazendo várias coisas que não são permitidas. Há pessoas que estão fazendo uso da violência e é provável que tenhamos excessos desse tipo, mas não sabemos se vai perdurar ou não. Isso depende da atuação de outros órgãos.

As instâncias superiores do Judiciário, na última semana, colocaram limite na proibição de discussões de matéria política nas universidades. Resta ver então se o Judiciário vai colocar um obstáculo ou não. Os dois poderes eleitos, o Executivo e o Legislativo, foram maciçamente tomados pelo grupo de Bolsonaro, pelo grupo mais conservador do Direito.

É curioso porque o Judiciário foi, de certa forma, o poder que sobreviveu mais tempo ao “harakiri” efetuado nos últimos anos. Depois que o Executivo se liquefez nos últimos anos, em parte com Dilma Rousseff e Michel Temer, e o Legislativo também, com Eduardo Cunha, o Judiciário assumiu um protagonismo, seja pelo Supremo, seja pelo juiz Sérgio Moro. É difícil saber agora se o Judiciário vai retomar esse protagonismo ou se vai ficar silencioso frente a essa situação.

Em um dos seus discursos da vitória, Bolsonaro disse que vai governar para todos. Essas declarações podem limitar eventuais excessos, ou seria preciso ser mais categórico?

Renato Janine Ribeiro Claro que precisaria ser mais categórico. Agora, o fato é o seguinte: tivemos uma vitória acachapante da chamada extrema direita. Acontece que esses grupos são muito despreparados para o exercício do poder, inclusive para a gestão da economia.

Enquanto a antiga direita, podemos chamar de direita democrática, o PSDB histórico e o MDB, foi praticamente esmagada, essa nova direita, mais extremista, conseguiu uma votação extraordinária se beneficiando das acusações de corrupção contra a antiga direita. Mas ela carece de projetos. Ela se beneficiou do quê? De um lado, de uma pauta anticorrupção a qual se somou uma pauta conservadora nos costumes. São duas coisas diferentes, mas ficaram mais ou menos associadas. Como se atacar a corrupção e atacar homossexuais fossem a mesma coisa.

Por outro lado, do ponto de vista econômico, eles são muito despreparados. Pode parecer um pouco atrevido, mas de um modo geral, tirando os economistas da educação, que estudam educação, os economistas brasileiros são pouco preparados para uma pauta moderna. Estão muito mais preocupados com o que o Estado deve ou não deve fazer do que com a formação de uma mão de obra mais qualificada.

Em qualquer autor internacional, Neil Ferguson, por exemplo, referência de um pensamento estritamente liberal, você vê que um dos pontos cruciais é ter uma mão de obra qualificada graças à educação. Esse ponto em nenhum momento esteve na pauta do candidato Bolsonaro, nem dos outros candidatos que ganharam como [Wilson] Witzel, [João] Dória e [Romeu] Zema. E esse é um ponto muito delicado, pois indica que eles não sabem direito como governar. Então me parece que vão ter um período todo de muita instabilidade, caminhando para um lado francamente mais reacionário, da repressão aos costumes, repressão política, ou tentando às vezes entrar numa pauta econômica, o que é muito difícil.

Mesmo os economistas mais respeitados do Brasil, se não forem economistas da educação, têm dificuldades de sair da repetição, do mantra da privatização, da desregulamentação, da reforma trabalhista, que podem ter um papel para você ter, vamos dizer, um ambiente mais pró-negócios, mas que não resolvem o problema de ter uma mão de obra que está há 40, 50 anos estagnada na sua qualificação. Qualquer pessoa que acompanha o debate internacional vê que o debate brasileiro de economia está defasado. Ele já estava defasado com o governo Temer, e com este governo também fica. Mas acho que o crucial é, se nem os economistas do governo Temer souberam reconhecer a importância da educação para a economia, nesses governos novos vai ser ainda mais difícil. Acho que vão fazer muitas experiências. Os dois discursos do Bolsonaro ilustram essa dificuldade: governar com a pauta do combate, da destruição do inimigo, e governar para todos -- ocasião em que você não pode mais falar em inimigo, porque você governa para todos.

Uma deputada catarinense criou um canal de denúncias contra o que chama de doutrinação de esquerda em sala de aula, incorporando um discurso que foi recorrente na campanha do presidente eleito. Qual impacto que atitudes dessa natureza podem ter no ambiente educacional?

Renato Janine Ribeiro Esse é o problema de toda a dinâmica da chamada Escola Sem Partido, que na verdade é uma escola doutrinadora, com partido, apenas não aceita uma visão de mundo que é diferente da dela. O problema crucial que vejo nisso é o seguinte: você teve toda uma deterioração do prestígio do papel do professor.

Houve perda de poder aquisitivo, sobretudo na educação básica, que é realmente essencial porque é aí que você gera a gigantesca desigualdade que há no Brasil. É aí também que você inibe e destrói uma quantidade enorme de talentos, que nunca chegam a ser descobertos. Então, houve um desprestígio nisso.

Eu entendo esses canais de denúncia como um fator a mais para tornar a profissão de professor pouco atrativa. Além de você receber pouco, além de ter uma valorização social baixa, você passa a ficar na mira da polícia, de ter de se defender. Para a educação, tudo isso é muito ruim.

Se eu somo isso com a declaração do general [Aléssio Ribeiro Souto, responsável pelo plano de Bolsonaro para a educação] que queria que ensinassem o criacionismo na educação básica, o que eu vejo é que o ponto crucial para o desenvolvimento econômico do Brasil, que é a qualificação da mão de obra, em matérias científicas, matemática, química, física e biologia, no ensino médio e até antes dele, fica sob sério risco. Já temos uma dificuldade enorme de ter bons professores de ciências no Ensino Médio. Às vezes, você tem turmas nas quais não há professor para isso e é o professor de outra matéria que tem de lecionar. Então, se além disso, você tiver a intenção de ensinar religião, pois criacionismo é religião, e a profissão de professor estiver visada, por exemplo, se alguém falar em Darwin e Teoria da Evolução puder ser denunciado ou algo assim, vai ser ainda mais difícil de ter professores.

A atual onda política brasileira, seu resultado nas urnas e sua capacidade de pautar o debate público pode influenciar as instituições brasileiras em geral?

Renato Janine Ribeiro No caso do Legislativo e do Executivo, eles já foram preenchidos com uma maioria extremista. Tirando os governadores do Nordeste, você tem praticamente a eleição de governadores de extrema direita. Mesmo quando você tem partidos tradicionais, como em São Paulo, onde o governador eleito se colocou sob a égide do Bolsonaro. Ele se separou da linhagem, dos conceitos e dos valores históricos do PSDB. Não tem nada de social-democrata nele, que ele deve considerar algo de esquerda e repudiar. No caso do Judiciário e do Ministério Público, há uma interferência sim do poder Executivo na nomeação dos seus membros. Assim como os ministros dos tribunais superiores são nomeados pelo presidente da República como o aval praticamente automático do Senado, a mesma coisa para o procurador-geral da República. Tudo indica que não vai mais haver um sistema de escolha pela própria comunidade do seu chefe. Então, a interferência do Executivo nesses poderes provavelmente vai ser muito grande.

Algumas profissões jurídicas estão sob a égide direta do Executivo, como as polícias; outras podem até ter um poder próprio, como o Judiciário, mas em todas elas a atuação do Executivo pode ser forte. O governo Lula não aparelhou essas áreas, o governo Fernando Henrique controlou. Agora, todo o discurso que a gente ouviu do candidato é no sentido de um controle muito férreo sobre essas áreas. Então isso torna a própria questão das liberdades civis muito ameaçada. Não se sabe como vai ser se, por exemplo, as polícias federal ou estadual tiverem ordem para matar.
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Por Camilo Rocha 30 Out 2018 (atualizado 31/Out 01h02) Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/10/30/Como-os-discursos-de-Bolsonaro-podem-afetar-a-sociedade?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo
Como os discursos de Bolsonaro podem afetar a sociedade Camilo Rocha 30 Out 2018 (atualizado 31/Out 01h02) Em entrevista ao ‘Nexo’, ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro analisa o acirramento das tensões entre eleitores e o clima pós-eleições Eleições2018 Foto: Reprodução/YouTube Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’ Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’ O discurso extremado de Jair Bolsonaro contra imprensa, organizações da sociedade civil e adversários políticos é apontado como uma das evidências de que sua chegada ao poder traz consigo riscos às instituições democráticas. Mas, para além das falas e ações do próprio presidente eleito, como sua atitude se reflete no comportamento da sociedade? Sobre o tema, o Nexo conversou com Renato Janine Ribeiro, professor de Ética do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação no segundo mandato de Dilma Rousseff. Isso diante de episódios recentes, que vão da autorização por parte de juízes eleitorais de batidas policiais em universidades públicas, passam pela criação de um canal de “denúncia” contra professores “doutrinadores”, por ameaças a jornalistas e autoridades e desembocam, também, em episódios de violência nas ruas. A campanha e a vitória de Bolsonaro são elementos para constituição de um clima de permissividade na sociedade em relação ao seu discurso, de investidas contra o que chama de ‘comunistas’, por exemplo, e também contra ativistas e minorias em geral? Renato Janine Ribeiro Aparentemente sim. Como tudo isso é novo no Brasil, é difícil de dizer. Tivemos uma ditadura, muita gente foi perseguida, mas em nenhum momento ela teve um apoio popular comparável ao que Bolsonaro teve nas eleições. Então, os grupos que o apoiaram com mais intensidade parecem estar se sentindo autorizados a fazer vários ataques. No próprio caso da USP, uma página do Facebook teve mais de 2.000 confirmações no domingo (28), no sentido de fazer um ataque à Faculdade de Filosofia que, ao tudo indica, a ação do reitor e da diretora da faculdade impediram que ocorresse. Por outro lado, é bom notar que nos dias anteriores e mesmo no dia da eleição teve muito pouca gente nas ruas com propaganda de qualquer um dos candidatos, camisetas, adesivos etc, ao contrário de eleições anteriores. Na verdade, eu considero que, apesar da votação grande que Bolsonaro teve, já no primeiro turno, não existe um entusiasmo social tão grande a ponto de significar uma caça às bruxas generalizada. Me parece mais possível que grupos pequenos, aguerridos, se sentindo autorizados a atacar, participem disso. Mas eu não creio que isso constitua um clima generalizado na sociedade de ódio ao que eles chamam de esquerda. A circulação de armas em ambientes públicos também pode ser impactada mesmo sem mudanças formais na lei sobre armamentos? Renato Janine Ribeiro Bom, isso continua proibido. Resta ver como vai acontecer. Há pessoas fazendo várias coisas que não são permitidas. Há pessoas que estão fazendo uso da violência e é provável que tenhamos excessos desse tipo, mas não sabemos se vai perdurar ou não. Isso depende da atuação de outros órgãos. As instâncias superiores do Judiciário, na última semana, colocaram limite na proibição de discussões de matéria política nas universidades. Resta ver então se o Judiciário vai colocar um obstáculo ou não. Os dois poderes eleitos, o Executivo e o Legislativo, foram maciçamente tomados pelo grupo de Bolsonaro, pelo grupo mais conservador do Direito. É curioso porque o Judiciário foi, de certa forma, o poder que sobreviveu mais tempo ao “harakiri” efetuado nos últimos anos. Depois que o Executivo se liquefez nos últimos anos, em parte com Dilma Rousseff e Michel Temer, e o Legislativo também, com Eduardo Cunha, o Judiciário assumiu um protagonismo, seja pelo Supremo, seja pelo juiz Sérgio Moro. É difícil saber agora se o Judiciário vai retomar esse protagonismo ou se vai ficar silencioso frente a essa situação. Em um dos seus discursos da vitória, Bolsonaro disse que vai governar para todos. Essas declarações podem limitar eventuais excessos, ou seria preciso ser mais categórico? Renato Janine Ribeiro Claro que precisaria ser mais categórico. Agora, o fato é o seguinte: tivemos uma vitória acachapante da chamada extrema direita. Acontece que esses grupos são muito despreparados para o exercício do poder, inclusive para a gestão da economia. Enquanto a antiga direita, podemos chamar de direita democrática, o PSDB histórico e o MDB, foi praticamente esmagada, essa nova direita, mais extremista, conseguiu uma votação extraordinária se beneficiando das acusações de corrupção contra a antiga direita. Mas ela carece de projetos. Ela se beneficiou do quê? De um lado, de uma pauta anticorrupção a qual se somou uma pauta conservadora nos costumes. São duas coisas diferentes, mas ficaram mais ou menos associadas. Como se atacar a corrupção e atacar homossexuais fossem a mesma coisa. Por outro lado, do ponto de vista econômico, eles são muito despreparados. Pode parecer um pouco atrevido, mas de um modo geral, tirando os economistas da educação, que estudam educação, os economistas brasileiros são pouco preparados para uma pauta moderna. Estão muito mais preocupados com o que o Estado deve ou não deve fazer do que com a formação de uma mão de obra mais qualificada. Em qualquer autor internacional, Neil Ferguson, por exemplo, referência de um pensamento estritamente liberal, você vê que um dos pontos cruciais é ter uma mão de obra qualificada graças à educação. Esse ponto em nenhum momento esteve na pauta do candidato Bolsonaro, nem dos outros candidatos que ganharam como [Wilson] Witzel, [João] Dória e [Romeu] Zema. E esse é um ponto muito delicado, pois indica que eles não sabem direito como governar. Então me parece que vão ter um período todo de muita instabilidade, caminhando para um lado francamente mais reacionário, da repressão aos costumes, repressão política, ou tentando às vezes entrar numa pauta econômica, o que é muito difícil. Mesmo os economistas mais respeitados do Brasil, se não forem economistas da educação, têm dificuldades de sair da repetição, do mantra da privatização, da desregulamentação, da reforma trabalhista, que podem ter um papel para você ter, vamos dizer, um ambiente mais pró-negócios, mas que não resolvem o problema de ter uma mão de obra que está há 40, 50 anos estagnada na sua qualificação. Qualquer pessoa que acompanha o debate internacional vê que o debate brasileiro de economia está defasado. Ele já estava defasado com o governo Temer, e com este governo também fica. Mas acho que o crucial é, se nem os economistas do governo Temer souberam reconhecer a importância da educação para a economia, nesses governos novos vai ser ainda mais difícil. Acho que vão fazer muitas experiências. Os dois discursos do Bolsonaro ilustram essa dificuldade: governar com a pauta do combate, da destruição do inimigo, e governar para todos -- ocasião em que você não pode mais falar em inimigo, porque você governa para todos. Uma deputada catarinense criou um canal de denúncias contra o que chama de doutrinação de esquerda em sala de aula, incorporando um discurso que foi recorrente na campanha do presidente eleito. Qual impacto que atitudes dessa natureza podem ter no ambiente educacional? Renato Janine Ribeiro Esse é o problema de toda a dinâmica da chamada Escola Sem Partido, que na verdade é uma escola doutrinadora, com partido, apenas não aceita uma visão de mundo que é diferente da dela. O problema crucial que vejo nisso é o seguinte: você teve toda uma deterioração do prestígio do papel do professor. Houve perda de poder aquisitivo, sobretudo na educação básica, que é realmente essencial porque é aí que você gera a gigantesca desigualdade que há no Brasil. É aí também que você inibe e destrói uma quantidade enorme de talentos, que nunca chegam a ser descobertos. Então, houve um desprestígio nisso. Eu entendo esses canais de denúncia como um fator a mais para tornar a profissão de professor pouco atrativa. Além de você receber pouco, além de ter uma valorização social baixa, você passa a ficar na mira da polícia, de ter de se defender. Para a educação, tudo isso é muito ruim. Se eu somo isso com a declaração do general [Aléssio Ribeiro Souto, responsável pelo plano de Bolsonaro para a educação] que queria que ensinassem o criacionismo na educação básica, o que eu vejo é que o ponto crucial para o desenvolvimento econômico do Brasil, que é a qualificação da mão de obra, em matérias científicas, matemática, química, física e biologia, no ensino médio e até antes dele, fica sob sério risco. Já temos uma dificuldade enorme de ter bons professores de ciências no Ensino Médio. Às vezes, você tem turmas nas quais não há professor para isso e é o professor de outra matéria que tem de lecionar. Então, se além disso, você tiver a intenção de ensinar religião, pois criacionismo é religião, e a profissão de professor estiver visada, por exemplo, se alguém falar em Darwin e Teoria da Evolução puder ser denunciado ou algo assim, vai ser ainda mais difícil de ter professores.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/10/30/Como-os-discursos-de-Bolsonaro-podem-afetar-a-sociedade?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo

© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
Como os discursos de Bolsonaro podem afetar a sociedade Camilo Rocha 30 Out 2018 (atualizado 31/Out 01h02) Em entrevista ao ‘Nexo’, ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro analisa o acirramento das tensões entre eleitores e o clima pós-eleições Eleições2018 Foto: Reprodução/YouTube Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’ Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’ O discurso extremado de Jair Bolsonaro contra imprensa, organizações da sociedade civil e adversários políticos é apontado como uma das evidências de que sua chegada ao poder traz consigo riscos às instituições democráticas. Mas, para além das falas e ações do próprio presidente eleito, como sua atitude se reflete no comportamento da sociedade? Sobre o tema, o Nexo conversou com Renato Janine Ribeiro, professor de Ética do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação no segundo mandato de Dilma Rousseff. Isso diante de episódios recentes, que vão da autorização por parte de juízes eleitorais de batidas policiais em universidades públicas, passam pela criação de um canal de “denúncia” contra professores “doutrinadores”, por ameaças a jornalistas e autoridades e desembocam, também, em episódios de violência nas ruas. A campanha e a vitória de Bolsonaro são elementos para constituição de um clima de permissividade na sociedade em relação ao seu discurso, de investidas contra o que chama de ‘comunistas’, por exemplo, e também contra ativistas e minorias em geral? Renato Janine Ribeiro Aparentemente sim. Como tudo isso é novo no Brasil, é difícil de dizer. Tivemos uma ditadura, muita gente foi perseguida, mas em nenhum momento ela teve um apoio popular comparável ao que Bolsonaro teve nas eleições. Então, os grupos que o apoiaram com mais intensidade parecem estar se sentindo autorizados a fazer vários ataques. No próprio caso da USP, uma página do Facebook teve mais de 2.000 confirmações no domingo (28), no sentido de fazer um ataque à Faculdade de Filosofia que, ao tudo indica, a ação do reitor e da diretora da faculdade impediram que ocorresse. Por outro lado, é bom notar que nos dias anteriores e mesmo no dia da eleição teve muito pouca gente nas ruas com propaganda de qualquer um dos candidatos, camisetas, adesivos etc, ao contrário de eleições anteriores. Na verdade, eu considero que, apesar da votação grande que Bolsonaro teve, já no primeiro turno, não existe um entusiasmo social tão grande a ponto de significar uma caça às bruxas generalizada. Me parece mais possível que grupos pequenos, aguerridos, se sentindo autorizados a atacar, participem disso. Mas eu não creio que isso constitua um clima generalizado na sociedade de ódio ao que eles chamam de esquerda. A circulação de armas em ambientes públicos também pode ser impactada mesmo sem mudanças formais na lei sobre armamentos? Renato Janine Ribeiro Bom, isso continua proibido. Resta ver como vai acontecer. Há pessoas fazendo várias coisas que não são permitidas. Há pessoas que estão fazendo uso da violência e é provável que tenhamos excessos desse tipo, mas não sabemos se vai perdurar ou não. Isso depende da atuação de outros órgãos. As instâncias superiores do Judiciário, na última semana, colocaram limite na proibição de discussões de matéria política nas universidades. Resta ver então se o Judiciário vai colocar um obstáculo ou não. Os dois poderes eleitos, o Executivo e o Legislativo, foram maciçamente tomados pelo grupo de Bolsonaro, pelo grupo mais conservador do Direito. É curioso porque o Judiciário foi, de certa forma, o poder que sobreviveu mais tempo ao “harakiri” efetuado nos últimos anos. Depois que o Executivo se liquefez nos últimos anos, em parte com Dilma Rousseff e Michel Temer, e o Legislativo também, com Eduardo Cunha, o Judiciário assumiu um protagonismo, seja pelo Supremo, seja pelo juiz Sérgio Moro. É difícil saber agora se o Judiciário vai retomar esse protagonismo ou se vai ficar silencioso frente a essa situação. Em um dos seus discursos da vitória, Bolsonaro disse que vai governar para todos. Essas declarações podem limitar eventuais excessos, ou seria preciso ser mais categórico? Renato Janine Ribeiro Claro que precisaria ser mais categórico. Agora, o fato é o seguinte: tivemos uma vitória acachapante da chamada extrema direita. Acontece que esses grupos são muito despreparados para o exercício do poder, inclusive para a gestão da economia. Enquanto a antiga direita, podemos chamar de direita democrática, o PSDB histórico e o MDB, foi praticamente esmagada, essa nova direita, mais extremista, conseguiu uma votação extraordinária se beneficiando das acusações de corrupção contra a antiga direita. Mas ela carece de projetos. Ela se beneficiou do quê? De um lado, de uma pauta anticorrupção a qual se somou uma pauta conservadora nos costumes. São duas coisas diferentes, mas ficaram mais ou menos associadas. Como se atacar a corrupção e atacar homossexuais fossem a mesma coisa. Por outro lado, do ponto de vista econômico, eles são muito despreparados. Pode parecer um pouco atrevido, mas de um modo geral, tirando os economistas da educação, que estudam educação, os economistas brasileiros são pouco preparados para uma pauta moderna. Estão muito mais preocupados com o que o Estado deve ou não deve fazer do que com a formação de uma mão de obra mais qualificada. Em qualquer autor internacional, Neil Ferguson, por exemplo, referência de um pensamento estritamente liberal, você vê que um dos pontos cruciais é ter uma mão de obra qualificada graças à educação. Esse ponto em nenhum momento esteve na pauta do candidato Bolsonaro, nem dos outros candidatos que ganharam como [Wilson] Witzel, [João] Dória e [Romeu] Zema. E esse é um ponto muito delicado, pois indica que eles não sabem direito como governar. Então me parece que vão ter um período todo de muita instabilidade, caminhando para um lado francamente mais reacionário, da repressão aos costumes, repressão política, ou tentando às vezes entrar numa pauta econômica, o que é muito difícil. Mesmo os economistas mais respeitados do Brasil, se não forem economistas da educação, têm dificuldades de sair da repetição, do mantra da privatização, da desregulamentação, da reforma trabalhista, que podem ter um papel para você ter, vamos dizer, um ambiente mais pró-negócios, mas que não resolvem o problema de ter uma mão de obra que está há 40, 50 anos estagnada na sua qualificação. Qualquer pessoa que acompanha o debate internacional vê que o debate brasileiro de economia está defasado. Ele já estava defasado com o governo Temer, e com este governo também fica. Mas acho que o crucial é, se nem os economistas do governo Temer souberam reconhecer a importância da educação para a economia, nesses governos novos vai ser ainda mais difícil. Acho que vão fazer muitas experiências. Os dois discursos do Bolsonaro ilustram essa dificuldade: governar com a pauta do combate, da destruição do inimigo, e governar para todos -- ocasião em que você não pode mais falar em inimigo, porque você governa para todos. Uma deputada catarinense criou um canal de denúncias contra o que chama de doutrinação de esquerda em sala de aula, incorporando um discurso que foi recorrente na campanha do presidente eleito. Qual impacto que atitudes dessa natureza podem ter no ambiente educacional? Renato Janine Ribeiro Esse é o problema de toda a dinâmica da chamada Escola Sem Partido, que na verdade é uma escola doutrinadora, com partido, apenas não aceita uma visão de mundo que é diferente da dela. O problema crucial que vejo nisso é o seguinte: você teve toda uma deterioração do prestígio do papel do professor. Houve perda de poder aquisitivo, sobretudo na educação básica, que é realmente essencial porque é aí que você gera a gigantesca desigualdade que há no Brasil. É aí também que você inibe e destrói uma quantidade enorme de talentos, que nunca chegam a ser descobertos. Então, houve um desprestígio nisso. Eu entendo esses canais de denúncia como um fator a mais para tornar a profissão de professor pouco atrativa. Além de você receber pouco, além de ter uma valorização social baixa, você passa a ficar na mira da polícia, de ter de se defender. Para a educação, tudo isso é muito ruim. Se eu somo isso com a declaração do general [Aléssio Ribeiro Souto, responsável pelo plano de Bolsonaro para a educação] que queria que ensinassem o criacionismo na educação básica, o que eu vejo é que o ponto crucial para o desenvolvimento econômico do Brasil, que é a qualificação da mão de obra, em matérias científicas, matemática, química, física e biologia, no ensino médio e até antes dele, fica sob sério risco. Já temos uma dificuldade enorme de ter bons professores de ciências no Ensino Médio. Às vezes, você tem turmas nas quais não há professor para isso e é o professor de outra matéria que tem de lecionar. Então, se além disso, você tiver a intenção de ensinar religião, pois criacionismo é religião, e a profissão de professor estiver visada, por exemplo, se alguém falar em Darwin e Teoria da Evolução puder ser denunciado ou algo assim, vai ser ainda mais difícil de ter professores.

Link para matéria: https://www.nexojornal.com.br/entrevista/2018/10/30/Como-os-discursos-de-Bolsonaro-podem-afetar-a-sociedade?utm_campaign=anexo&utm_source=anexo

© 2018 | Todos os direitos deste material são reservados ao NEXO JORNAL LTDA., conforme a Lei nº 9.610/98. A sua publicação, redistribuição, transmissão e reescrita sem autorização prévia é proibida.
Como os discursos de Bolsonaro podem afetar a sociedade Camilo Rocha 30 Out 2018 (atualizado 31/Out 01h02) Em entrevista ao ‘Nexo’, ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro analisa o acirramento das tensões entre eleitores e o clima pós-eleições Eleições2018 Foto: Reprodução/YouTube Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’ Transmitido pelo celular, Jair Bolsonaro faz discurso a apoiadores concentrados em SP, em 21 de outubro, e afirma que vai ‘varrer do mapa’ os ‘bandidos vermelhos’ O discurso extremado de Jair Bolsonaro contra imprensa, organizações da sociedade civil e adversários políticos é apontado como uma das evidências de que sua chegada ao poder traz consigo riscos às instituições democráticas. Mas, para além das falas e ações do próprio presidente eleito, como sua atitude se reflete no comportamento da sociedade? Sobre o tema, o Nexo conversou com Renato Janine Ribeiro, professor de Ética do Departamento de Filosofia da USP e ex-ministro da Educação no segundo mandato de Dilma Rousseff. Isso diante de episódios recentes, que vão da autorização por parte de juízes eleitorais de batidas policiais em universidades públicas, passam pela criação de um canal de “denúncia” contra professores “doutrinadores”, por ameaças a jornalistas e autoridades e desembocam, também, em episódios de violência nas ruas. A campanha e a vitória de Bolsonaro são elementos para constituição de um clima de permissividade na sociedade em relação ao seu discurso, de investidas contra o que chama de ‘comunistas’, por exemplo, e também contra ativistas e minorias em geral? Renato Janine Ribeiro Aparentemente sim. Como tudo isso é novo no Brasil, é difícil de dizer. Tivemos uma ditadura, muita gente foi perseguida, mas em nenhum momento ela teve um apoio popular comparável ao que Bolsonaro teve nas eleições. Então, os grupos que o apoiaram com mais intensidade parecem estar se sentindo autorizados a fazer vários ataques. No próprio caso da USP, uma página do Facebook teve mais de 2.000 confirmações no domingo (28), no sentido de fazer um ataque à Faculdade de Filosofia que, ao tudo indica, a ação do reitor e da diretora da faculdade impediram que ocorresse. Por outro lado, é bom notar que nos dias anteriores e mesmo no dia da eleição teve muito pouca gente nas ruas com propaganda de qualquer um dos candidatos, camisetas, adesivos etc, ao contrário de eleições anteriores. Na verdade, eu considero que, apesar da votação grande que Bolsonaro teve, já no primeiro turno, não existe um entusiasmo social tão grande a ponto de significar uma caça às bruxas generalizada. Me parece mais possível que grupos pequenos, aguerridos, se sentindo autorizados a atacar, participem disso. Mas eu não creio que isso constitua um clima generalizado na sociedade de ódio ao que eles chamam de esquerda. A circulação de armas em ambientes públicos também pode ser impactada mesmo sem mudanças formais na lei sobre armamentos? Renato Janine Ribeiro Bom, isso continua proibido. Resta ver como vai acontecer. Há pessoas fazendo várias coisas que não são permitidas. Há pessoas que estão fazendo uso da violência e é provável que tenhamos excessos desse tipo, mas não sabemos se vai perdurar ou não. Isso depende da atuação de outros órgãos. As instâncias superiores do Judiciário, na última semana, colocaram limite na proibição de discussões de matéria política nas universidades. Resta ver então se o Judiciário vai colocar um obstáculo ou não. Os dois poderes eleitos, o Executivo e o Legislativo, foram maciçamente tomados pelo grupo de Bolsonaro, pelo grupo mais conservador do Direito. É curioso porque o Judiciário foi, de certa forma, o poder que sobreviveu mais tempo ao “harakiri” efetuado nos últimos anos. Depois que o Executivo se liquefez nos últimos anos, em parte com Dilma Rousseff e Michel Temer, e o Legislativo também, com Eduardo Cunha, o Judiciário assumiu um protagonismo, seja pelo Supremo, seja pelo juiz Sérgio Moro. É difícil saber agora se o Judiciário vai retomar esse protagonismo ou se vai ficar silencioso frente a essa situação. Em um dos seus discursos da vitória, Bolsonaro disse que vai governar para todos. Essas declarações podem limitar eventuais excessos, ou seria preciso ser mais categórico? Renato Janine Ribeiro Claro que precisaria ser mais categórico. Agora, o fato é o seguinte: tivemos uma vitória acachapante da chamada extrema direita. Acontece que esses grupos são muito despreparados para o exercício do poder, inclusive para a gestão da economia. Enquanto a antiga direita, podemos chamar de direita democrática, o PSDB histórico e o MDB, foi praticamente esmagada, essa nova direita, mais extremista, conseguiu uma votação extraordinária se beneficiando das acusações de corrupção contra a antiga direita. Mas ela carece de projetos. Ela se beneficiou do quê? De um lado, de uma pauta anticorrupção a qual se somou uma pauta conservadora nos costumes. São duas coisas diferentes, mas ficaram mais ou menos associadas. Como se atacar a corrupção e atacar homossexuais fossem a mesma coisa. Por outro lado, do ponto de vista econômico, eles são muito despreparados. Pode parecer um pouco atrevido, mas de um modo geral, tirando os economistas da educação, que estudam educação, os economistas brasileiros são pouco preparados para uma pauta moderna. Estão muito mais preocupados com o que o Estado deve ou não deve fazer do que com a formação de uma mão de obra mais qualificada. Em qualquer autor internacional, Neil Ferguson, por exemplo, referência de um pensamento estritamente liberal, você vê que um dos pontos cruciais é ter uma mão de obra qualificada graças à educação. Esse ponto em nenhum momento esteve na pauta do candidato Bolsonaro, nem dos outros candidatos que ganharam como [Wilson] Witzel, [João] Dória e [Romeu] Zema. E esse é um ponto muito delicado, pois indica que eles não sabem direito como governar. Então me parece que vão ter um período todo de muita instabilidade, caminhando para um lado francamente mais reacionário, da repressão aos costumes, repressão política, ou tentando às vezes entrar numa pauta econômica, o que é muito difícil. Mesmo os economistas mais respeitados do Brasil, se não forem economistas da educação, têm dificuldades de sair da repetição, do mantra da privatização, da desregulamentação, da reforma trabalhista, que podem ter um papel para você ter, vamos dizer, um ambiente mais pró-negócios, mas que não resolvem o problema de ter uma mão de obra que está há 40, 50 anos estagnada na sua qualificação. Qualquer pessoa que acompanha o debate internacional vê que o debate brasileiro de economia está defasado. Ele já estava defasado com o governo Temer, e com este governo também fica. Mas acho que o crucial é, se nem os economistas do governo Temer souberam reconhecer a importância da educação para a economia, nesses governos novos vai ser ainda mais difícil. Acho que vão fazer muitas experiências. Os dois discursos do Bolsonaro ilustram essa dificuldade: governar com a pauta do combate, da destruição do inimigo, e governar para todos -- ocasião em que você não pode mais falar em inimigo, porque você governa para todos. Uma deputada catarinense criou um canal de denúncias contra o que chama de doutrinação de esquerda em sala de aula, incorporando um discurso que foi recorrente na campanha do presidente eleito. Qual impacto que atitudes dessa natureza podem ter no ambiente educacional? Renato Janine Ribeiro Esse é o problema de toda a dinâmica da chamada Escola Sem Partido, que na verdade é uma escola doutrinadora, com partido, apenas não aceita uma visão de mundo que é diferente da dela. O problema crucial que vejo nisso é o seguinte: você teve toda uma deterioração do prestígio do papel do professor. Houve perda de poder aquisitivo, sobretudo na educação básica, que é realmente essencial porque é aí que você gera a gigantesca desigualdade que há no Brasil. É aí também que você inibe e destrói uma quantidade enorme de talentos, que nunca chegam a ser descobertos. Então, houve um desprestígio nisso. Eu entendo esses canais de denúncia como um fator a mais para tornar a profissão de professor pouco atrativa. Além de você receber pouco, além de ter uma valorização social baixa, você passa a ficar na mira da polícia, de ter de se defender. Para a educação, tudo isso é muito ruim. Se eu somo isso com a declaração do general [Aléssio Ribeiro Souto, responsável pelo plano de Bolsonaro para a educação] que queria que ensinassem o criacionismo na educação básica, o que eu vejo é que o ponto crucial para o desenvolvimento econômico do Brasil, que é a qualificação da mão de obra, em matérias científicas, matemática, química, física e biologia, no ensino médio e até antes dele, fica sob sério risco. Já temos uma dificuldade enorme de ter bons professores de ciências no Ensino Médio. Às vezes, você tem turmas nas quais não há professor para isso e é o professor de outra matéria que tem de lecionar. Então, se além disso, você tiver a intenção de ensinar religião, pois criacionismo é religião, e a profissão de professor estiver visada, por exemplo, se alguém falar em Darwin e Teoria da Evolução puder ser denunciado ou algo assim, vai ser ainda mais difícil de ter professores.

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