terça-feira, 16 de outubro de 2018

Quando a isenção é fake

Juremir Machado da Silva*
 Resultado de imagem para “A Redempção” - jornal antigo
 
Outros tempos

      Cada época com a sua linguagem. No século XIX, alguns jornais buscavam uma maneira mais ágil e moderna de se comunicar. Talvez o mais inovador desses periódicos tenha sido o pequeno “A Redempção”, dirigido por Antônio Bento, de São Paulo, que traduzia no cabeçalho a seguinte autodefinição: “Folha abolicionista, comercial e noticiosa”. Era odiado pelos proprietários de terras, homens, leis e bichos.

Em 2 de janeiro de 1887, o texto de abertura abria o jogo sem enrolação: “O título do nosso jornal já indica a nossa missão na imprensa. Divergimos completamente tanto dos liberais resistentes como dos escravocratas, não concordamos com as ideias conservadoras e detestamos aqueles que, trazendo o capacete frígio na cabeça, trazem na mão o bacalhau com que quotidianamente surram os seus miseráveis escravos”. Os escravistas consideravam que o jornal estimulava crimes, promovia a desordem, atrapalhava a produção e mentia. Apenas isso.

Esse editorial citado criticava os hipócritas que se fingiam de libertadores ao mesmo tempo em que faziam de tudo para conservar a ordem vigente. Antônio Bento era atacado por seu radicalismo. Como podia um advogado branco não compreender as necessidades do capital? Não tinha senso de responsabilidade? O artigo em questão apavorava as classes produtoras quando dizia coisas assim: “Nós queremos a libertação imediata, sem prazo; para conseguirmos, aceitamos a própria revolução porque não podemos admitir que continuem debaixo do azorrague e da escravidão tantos brasileiros que, livres, poderiam concorrer vantajosamente para a felicidade da nossa pátria”.

A “Redempção” sofria ataques violentos de quem considerava que esses “tantos brasileiros” eram mais úteis para a “felicidade da nação” como escravos. Uma pergunta cruel não deixava de ser feita:
– Se ficarem livres eles vão ter direito a voto, vão?

Outro abolicionista famoso, Rui Barbosa, foi chamado de “vermelho” pelos seus detratores: “Onde estribar, pois, essas imputações de socialismo, de proselitismo comunista, com que nos tentam desarmar?”  O conservador José de Alencar, que votou contra a lei do Ventre Livre, defendia que um abolicionista não podia tomar café ou fumar charuto: “O filantropo europeu, entre a fumaça do bom tabaco de Havana e da taça do excelente café do Brasil, se enleva em suas utopias humanitárias e arroja contra estes países um aluvião de injúrias pelo ato de manterem o trabalho servil. Mas por que não repele o moralista com asco estes frutos do braço africano?”

José de Alencar parecia fazer ficção até quando pretendia ser realista: “Se algum dia, como é de esperar, a civilização projetar-se pelo continente africano adentro, penetrando os povos da raça negra, a glória desse imenso acontecimento, amargue embora aos filantropos, caberá exclusivamente à escravidão. Foi ela que preparou os precursores negros da liberdade africana”. As posições de Antônio Bento e Rui Barbosa eram acusadas de parcialidade. José de Alencar era elogiado por sua isenção. Eram outros tempos, felizmente revolutos.
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* Jornalista. Escitor. Sociólogo. Prof. Universitário
Fonte:  http://www.correiodopovo.com.br/blogs/juremirmachado/2018/10/11253/quando-a-isencao-e-fake/

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