sexta-feira, 26 de outubro de 2018


QUAL SERÁ O LUGAR DO BRASIL?

 
"Se Bolsonaro for agressivo em relação ao Acordo de Paris e a ONU, o mercado não vai receber
bem", afirma Roett"


Por Diego Viana | Para o Valor, de São Paulo
Declarando-se pessimista, o cientista político e brasilianista americano Riordan Roett, de 80 anos, encerra a entrevista com um leve toque de otimismo. "Só quero lembrar que Deus é brasileiro, talvez Ele conserte as coisas." Para ele, há muito a consertar: investimento baixo, déficit fiscal alto e investimentos insuficientes para tornar a economia competitiva.

"Nenhum governo fez o que era necessário em termos de educação pública, saúde, saneamento, habitação. Nem os militares, nem os populistas, nem os democratas", afirma o professor da Universidade Johns Hopkins. "Não é à toa que a economia brasileira não é nem produtiva nem competitiva e exporta as mesmas coisas que no século passado." Para piorar, diz, o cenário global em 2019 pode ser hostil ao Brasil, país que não se preparou para a revolução tecnológica do século XXI.

Para o próximo governo, o brasilianista tem pouca expectativa de mudança de cenário. Após um processo eleitoral marcado por altos índices de rejeição, surpresas no Legislativo e nos Estados, acusações pesadas de parte a parte e volumosas manifestações de rua, o país vai às urnas sem poder contar com propostas concretas para enfrentar os problemas fundamentais da economia brasileira.

Mesmo se conseguir uma virada e superar o adversário, o candidato do PT, Fernando Haddad, teria pela frente um contexto de hostilidade no Congresso, nos Estados e em boa parcela da sociedade. Suas iniciativas poderiam ser minadas em todas as frentes. Roett, no entanto, é cético quanto às chances do petista.

O professor também é descrente quanto à capacidade de um eventual governo de Jair Bolsonaro (PSL), líder nas pesquisas de intenção de voto, para dar conta dos desafios do país. Com pouca experiência, Bolsonaro e Paulo Guedes, seu possível ministro da Fazenda, terão de lidar com um Congresso fragmentado e o desafio de fazer reformas complexas, diz. Os sinais em relação à política externa também preocupam o americano. "Parece que vai ser uma gestão familiar, como a de [Donald] Trump", afirma Roett.

Estudioso do Brasil e da América Latina desde 1962, quando esteve pela primeira vez no Recife, Roett é autor de vários livros sobre o país e a região. Destacam-se "The New Brazil" (O Novo Brasil) e "Brazil: What Everyone Needs to Know" (Brasil: O que Todos Precisam Saber). Em 2001, recebeu do presidente Fernando Henrique Cardoso a Ordem do Rio Branco.

Valor: Em "The New Brasil", o senhor discutia a ascensão do país como "global player". Mesmo dois anos atrás, ainda soava otimista com a nação...
Riordan Roett: E aí tudo entrou em colapso.

Valor: O que sobrou desse otimismo?
Roett: O Brasil está entrando numa de suas típicas curvas descendentes, é um país de altos e baixos. O desemprego segue alto, o déficit também, o comércio internacional está estagnado, investimento muito baixo. Historicamente, o Brasil sempre saiu disso depois de cinco ou seis anos. Mas é um tempo enorme a esperar até que as coisas melhorem. Se, uma vez eleito, Bolsonaro falhar, as repercussões serão graves. Paulo Guedes não conhece Brasília, um lugar difícil de trabalhar e governar.

Valor: Desde 2013, todo esse período foi tenso, com manifestações, greves, crise econômica. É uma transição histórica?.
Roett: Tudo depende se Paulo Guedes vai ser capaz de colocar ordem na economia. Esse é um desafio duro. Henrique Meirelles não conseguiu. A economia brasileira é muito complicada, não é competitiva ou produtiva. Não consegue exercer seu peso globalmente e segue exportando as mesmas coisas que há 50 anos. A relação com a China, por exemplo, vai sempre ser muito desigual, a favor da China. O Brasil não controla os preços das matérias-primas. Quem controla é o mercado internacional, cada vez mais influenciado pela China. Não vejo alternativas para o Brasil em termos de comércio e investimento. Lula pensou que seria o "Senhor Brics" durante o crescimento da década passada. O Brasil estava indo bem, reduzindo dívidas, mas o que não fez foi tornar a economia mais produtiva e competitiva. Com a revolução tecnológica, são necessários menos trabalhadores, mas trabalhadores com treinamento melhor. E o Brasil não tem.

Valor: Os EUA estão aos poucos aumentando os juros. No curto prazo, como a economia global pode ter impacto na próxima gestão?
Roett: Tomar empréstimos internacionais vai ser mais caro. Comparado com Argentina, Peru ou Venezuela, o Brasil está em forma razoavelmente boa. Não sabemos nem qual vai ser a posição de Guedes, nem se Bolsonaro vai dar ouvidos a ele. Guedes vem de uma escola tradicional de pensamento econômico no Brasil, de onde também veio Pedro Malan. São todos muito competentes, bem formados, viajados, sabem como funciona a economia internacional. Guedes vai ter que demonstrar que também sabe. Ele nunca foi testado.

Valor: Como o governo Trump encara a eleição brasileira? O líder nas pesquisas é tão conservador e nacionalista quanto o presidente americano?
Roett: Não sabemos. Trump não tem o menor interesse na América Latina. Comparando com a Arábia Saudita, a Coreia do Norte e a China, a América Latina está no fim da fila das preocupações. Exceto, claro, a Venezuela. E ninguém tem muitas respostas sobre o que fazer epolítica internacional, a Casa Branca ia ter que prestar atenção no que está acontecendo. Não vejo Washington se inclinando mais para favorecer uma Presidência Bolsonaro, embora ele seja o tipo de linha-dura, como [Rodrigo] Duterte, que Trump parece admirar.

Valor: E do lado do Brasil?
Roett: A política externa é questão importante para o avanço do Brasil. O país vai ter que achar algum espaço em Washington. Por isso, o embaixador é muito importante. Não sabemos qual vai ser o papel do Itamaraty, como vai ser feita a política externa. Há boatos de que um dos filhos de Bolsonaro é seu principal conselheiro para temas internacionais, e as coisas que ele tem declarado não fazem sentido. Tenho a impressão de que uma das semelhanças com Trump é que vai ser uma Presidência em família. Um filho na Câmara, outro no Senado, o terceiro pode ir para o Planalto como algum tipo de conselheiro para o pai, como ocorre com Ivanka Trump e Jared Kushner. Não é bom sinal.

Valor: No Brasil, o sistema financeiro é majoritariamente favorável a Bolsonaro... Roett: Fiquei chocado quando ouvi isso. Mas entendo, depois do que passou com Dilma [Rousseff] e [Michel] Temer. Quem sinaliza um pouco a favor do setor privado, falando de investimento e privatização, mesmo que de maneira errática, como faz Bolsonaro, está dizendo as coisas que eles querem ouvir. Fico curioso para ver quem vai ser o presidente do Banco Central. Vai ter continuidade? Vai ser politizado? Como se diz, o BC é autônomo, mas não independente. É uma questão que surge em todas as transições brasileiras.

Valor: A imprensa econômica internacional tem publicado matérias editoriais contra Bolsonaro. Como são as expectativas nos mercados globais?
Roett: Muito negativas. Ele não tem experiência. Os mercados globais estão de olhos numa série de crises ao redor do mundo. Angela Merkel pode estar chegando ao fim de seu período como chanceler na Alemanha. A crise fiscal na Itália é séria e o país é grande demais para falhar, mas também grande demais para ser resgatado. Tem o Brexit. A China está esfriando. E agora Trump ataca o Fed [Federal Reserve, o banco central americano] por aumentar os juros. Não tem dinheiro sobrando para investir em mercados emergentes em situação dúbia, como descobriu Mauricio Macri na Argentina. Só espero que alguém consiga incutir um pouco de razão em Bolsonaro, para que ele estabeleça boas relações com o Banco Mundial e o FMI. Se Bolsonaro for agressivo em relação ao Acordo de Paris e a ONU, o mercado não vai receber bem. Isso pode gerar instabilidade em outras áreas. Assim como Fernando Henrique, Bolsonaro reconhece que não sabe nada de economia. Mas Fernando Henrique se cercou de gente muito inteligente. Não vejo isso acontecendo com Bolsonaro.

Valor: Que perspectivas existem para as reformas com um Congresso tão fragmentado?.
Roett: É o mesmo problema que Dilma Rousseff enfrentou. Ela nunca entendeu a importância das coalizões multipartidárias. Bolsonaro, embora tenha estado no Congresso por muito tempo, não me parece que tenha feito muita coisa. Não sei se ele sabe ou se vai ter por perto gente que saiba montar esse tipo de coalizão. É o único jeito de governar o Brasil. Dada a multiplicidade dos partidos agora, com metade da Câmara composta por novos deputados, o que eles sabem sobre fazer coalizões? Vai acontecer uma quantidade imensa de barganhas e negociações. Bolsonaro parece ter o pavio curto, não gosta de perder tempo com negociações. Aliás, militares não negociam muito, simplesmente determinam o que deve ser feito.

Valor: O PSDB fracassou com Geraldo Alckmin, o PT falhou em sua estratégia de transferir votos do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nenhuma terceira via surgiu, como parecia ser o caso de Marina Silva, e agora vemos a ascensão do extremo.
Roett: Partidos estão em crise no mundo todo. Veja o que houve na Polônia, na Hungria, na Bavária. O Partido Radical, na Argentina, desapareceu. Os dois partidos tradicionais da Venezuela, idem. Os do Peru também. O século XXI é um século político muito diferente. O PSDB está condenado no Brasil, não jogou bem seu jogo. O Rede e Marina Silva implodiram, depois de ter 20% dos votos duas vezes. Ninguém sabe para onde vai Ciro Gomes. Onde está a liderança do sistema político tradicional? Ou morta, ou moribunda, ou marginalizada. Isso é o que estamos encarando: um horizonte político novo.

Valor: E os evangélicos, que impacto terão?
Roett: Muito forte. O movimento evangélico é uma parte importante da base de Bolsonaro e vai ser premiado de acordo. Assim como ocorre com a base evangélica de Trump nos EUA. São organizações cada vez mais poderosas e ricas. Também não sabemos o papel que vai ter a bancada ruralista. São atores com poder de veto. Aliás, o Congresso se tornou um ambiente cheio de atores com poder de veto: evangélicos, ruralistas, empreiteiras. É preciso se arranjar com essas pessoas antes de negociar com as correntes ideológicas e políticas da Câmara. O sistema está cada vez mais balcanizado.

Valor: Resta algo da "nova classe média" sobre a qual o senhor escreveu extensamente em seus últimos livros?
Roett: No Brasil, a classe média é como um acordeão. Se a economia vai bem, eles vão bem. Se há um estímulo como o Bolsa Família, muitos se transferem para a classe média baixa, a classe C. Mas depois saem, já que não tem um sistema de apoio, faltam empregos, sobram dívidas. Uma situação terrível. O sonho da ascensão social se tornou, para muitas famílias, um pesadelo. E não vejo a estrutura fiscal no Brasil que seria necessária para restaurar os programas que houve na última década.

Valor: A década de 80 foi chamada de "década perdida"; os anos 90 tiveram crescimento lento. O desempenho da última década não durou, e agora estamos lidando com as consequência de uma crise grave. Pode-se dizer que o país nunca se recuperou da crise da dívida?
Roett: Muitos dos países da região nunca se recuperaram da crise da dívida, mas é mais que isso. Os níveis de investimento são muito baixos, o que traz de volta ao tema da competitividade e da produtividade. A economia brasileira não tem nenhuma das duas, então está atolada. É claro, produz soja e minério de ferro, além de açúcar e gado. Mas o mundo, hoje, é muito mais que isso. As cadeias de valor são cada vez mais tecnológicas. Os países com melhor avaliação da educação são quase todos asiáticos. Isso implica a habilidade de resolver problemas, há muitas capacidades técnicas disseminadas na sociedade. Os países com mais capacitação são os asiáticos. Depois dos africanos, os latino-americanos estão lá no fundo. Então a América Latina, historicamente, nunca foi capaz de superar as crises constantes. A continuidade e a previsibilidade sempre fizeram falta na região. O Brasil não é exceção.

Valor: Por motivos diferentes, tanto Dilma Rousseff quanto Jair Bolsonaro manifestam nostalgia pelo Brasil do último século: seja pela industrialização, seja pela ditadura. Nossa política está presa ao passado?
Roett: Lembro bem dessa época, inclusive do milagre econômico, antes da crise da dívida. Todos pensavam que o Brasil estava no nirvana, que tinha chegado sua vez. As pessoas compravam carros, a classe média tinha uma segunda casa. Mas não se lidava com os problemas fundamentais: educação, saúde pública, habitação social, coisas assim. Os militares nunca entenderam a importância dessas coisas. Isso tudo desaguou, claro, no colapso dos anos 1980. Mas tem alguns problemas subjacentes que o Brasil parece nunca conseguir enfrentar, para poder chegar a ser competitivo e produtivo. As elites parecem achar que criar gado e plantar cana é o suficiente. Pode ter sido no século passado, mas hoje em dia não é mais.

Valor: O senhor começou a estudar o Brasil na década de 60, logo antes do início da ditadura...
Roett: Fui para o Recife em 1962. O fervor intelectual do Brasil no começo dos anos 60 era extraordinário. Celso Furtado na Sudene, escritores e pensadores inovadores, Paulo Freire ensinando as pessoas a ler e escrever. Um período muito criativo. Tudo isso foi por água abaixo depois de 64. Os militares não acreditavam nessas coisas. Os generais têm formação forte, mas num sentido estreito. Não creio que passem muito tempo nas casernas lendo Tucídides ou Montesquieu. Quando voltei, em 65, amigos tinham desaparecido. O país era outro.
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