quarta-feira, 24 de outubro de 2018

'A cartilha de desinformação é apolítica', explica jornalista que cobriu impacto das fake news em eleições no mundo


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Ryan Broderick acompanhou de perto pleitos na América Central, Europa e Ásia

Daniel Salgado
24/10/2018 

O Brasil não é o único país que está tendo de aprender a lidar com o turbilhão de notícias falsas e desinformação que assola as nossas eleições. Por todo o mundo, nos últimos anos, a imprensa, empresas de tecnologias e os governos têm batido a cabeça para tentar solucionar esse fenômeno. Mesmo aqui perto, em países como México, Estados Unidos e Argentina, o processo gerou o caos antes que os eleitores pudessem ir às urnas. 

Ryan Broderick, que é o segundo editor em comando do braço internacional de notícias do Buzzfeed, é uma das pessoas que viu vários desses casos de perto. Tendo coberto eleições pelo mundo — além de estar atuando no Brasil nesta reta final do nosso pleito —, o jornalista percebeu como as redes sociais têm impactado diretamente a política em nível global. No México, ao lado do colega Íñigo Arredondo, entrevistou um dos maiores produtores de notícias falsas do continente; nos EUA, cobriu a atuação muitas vezes falhas das gigantes da tecnologia em detectar e coibir o impacto de robôs e da desinformação durante a eleição de Donald Trump. 

À ÉPOCA, Broderick falou sobre como o fenômeno das fake news funciona no Brasil; sobre os desafios mundiais no combate da desinformação digital e de como empresas como o Facebook precisam tomar atitudes diretas para coibir esses problemas. 

O Facebook — e o Whatsapp, um de seus produtos — tem sido apontado como um dos principais atores da eleição brasileira por serem espaços onde as fake news são compartilhados em massa. Você acha que elas de fato impactarão o resultado das urnas?
Eu não diria que o Facebook tem capacidade de alterar como as pessoas votam, ainda. Mas costuma funcionar assim: as fakes news e a desinformação se espalham e acabam criando uma cultura de polarização, algo que vimos em muitos países. Aí grande mídia e o establishment, muitas vezes, acabam investigando e amplificando esses temas. Isso contribui para um ambiente em que, meses antes da eleição, já há uma divisão da população. O Facebook é parte disso e não o único responsávell. Mas, sim, ele acaba contribuindo para a desconfiança e confusão nesse discurso. 

Muito se fala das similaridades entre Jair Bolsonaro e Donald Trump, não só por conta de suas posições, mas também pela importância da internet em suas campanhas. A comparação se sustenta?
Acho que no Brasil, assim como nos Estados Unidos, se pode argumentar que as razões que levam as pessoas a votar em Bolsonaro — e Trump — não surgiram do dia para a noite. No caso dos EUA, tem muito a ver com a perversão do sonho smericano, o classismo e o racismo. Já Bolsonaro é um produto da desilusão de anos com o Partido dos Trabalhadores e o establishment de esquerda. O surgimento do Bolsonaro, nesse contexto, é quase telegrafado, com fenômenos como a Lava-Jato e o Facebook acontecendo no auge da sua influência. O que não sabemos, ainda, é o quanto disso se trata de um movimento político e o quanto vem da internet. Mas dá para se saber que aconteceu tão rápido porque se trata de uma “tempestade perfeita”, uma expressão que usamos em inglês quando há uma soma de fatores que juntos causam o cenário ideal para esse fenômeno.

Estamos descobrindo que no Brasil diversas pequenas empresas existem para distribuir fake news nas redes, à serviço de candidatos. Em suas matérias, você descreveu uma situação similar nas últimas eleições do México. Como esse serviço operava lá?
Lá se descobriu o funcionamento de algumas centenas de empresas de produção de fake news , e não grandes empresas de marketing como se imaginava. Elas criam esses artigos falsos, mas sem qualquer tipo de protocolo. Ou seja, não são da extrema-direita, mas focadas em ganhar dinheiro. São startups que funcionam como fábrica de hashtags e artigos falsos. E era tudo focado no lado empresarial da coisa. Vale notar que não foi só por lá, mas sim em vários outros países da América Central e do Sul. Aconteceu o mesmo na Guatemala, Peru, Argentina... 

E o que leva esses jovens empresários a abrirem empresas do tipo?
O Facebook concentra 90% da receita em propaganda do mundo. Se você é jovem e entende como a internet funciona — e você vê outras pessoas mais velhas, que não entendem — aí está o emprego perfeito, que é pegar a internet e fazer com que paguem por ela. Isso é moleza se você está mexendo com informação. Foi o caso do Carlos [Merlo, dono de uma das empresas investigadas por Broderick no México], que focava em pessoas mais velhas e não entendiam que estavam vendo sites de notícias falsas. E é bom notar uma coisa: Obrador, presidente eleito no México, é populista, mas de uma corrente tradicional de esquerda. Então o Bolsonaro não precisava ser de extrema-direita para usar esse tipo de conteúdo. A cartilha é apolítica. Se alguém quer tomar o controle de um país utilizando esses métodos, é possível sabendo como usá-los, sem necessariamente ser de direita.

E qual você acha que será o papel do Whatsapp e do Facebook no pós-eleição?
Numa live de Facebook, Bolsonaro disse que iria tentar alterar certas funções do Whatsapp, caso eleito. Ou seja, é um político fazendo promessas de campanha em cima de decisões de empresas do Vale do Silício. Não funciona assim. E a ideia de que um político como ele poderia tentar se meter na privacidade do telefone das pessoas me preocupa. Talvez não seja útil para ele, mas só essa possibilidade já preocupa. As ferramentas para isso estão lá. 

Como o Facebook pode tentar melhorar esses problemas de privacidade, de difusão de notícias falsas e até de sua reputação?
Eu cobri tecnologia na Ásia, América Central, Europa e América do Norte. E a questão é que o Facebook é como a Coca-Cola ou o Mcdonalds. São empresas que entram em países estrangeiros e mudam tudo. Você não precisa pagar para usar o Facebook. Eles têm uma população inteira viciada nos seus serviços e creem que podem fazer o que quiser, e isso gera crises. 

O que aconteceu é que permitimos que uma corporação suplantasse a imprensa. Ele fez isso na Índia. E teve um grande impacto na crise do Mianmar. Existem tantos exemplos do Facebook contribuindo para o caos nas redes sociais dos países. E, se ele realmente quisesse fomentar alguma mudança, seria resolvendo a transparência dos seus algoritmos. Você pode ler numa lata de refrigerante do que ele é feito. Você deveria poder fazer o mesmo na internet. 

E o que você acha que os acontecimentos do Brasil podem trazer de relevante para essa discussão mundial?
Considero o Brasil um país interessante. Ele funciona através de memes, eu costumo brincar. Amo a cultura de internet daí, porque vocês são uma ilha de português na América do Sul, que ama fazer piadas e às compartilhar. E isso é ótimo. 

Aí também vejo um caminho para aprendermos com vocês sobre como lidar com um futuro presidente. Os EUA, de diversas maneiras, perderam a cabeça. E eu acho que poderíamos ter aprendido muito sobre como a imprensa de vocês está checando notícias intensamente. Eu gostaria que os americanos tivessem feito o mesmo. Só soubemos depois das eleições que houve firmas manipulando informações. Vocês sabem antes mesmo de votar. Vou ficar acompanhando. 
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