quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Bolsonaro e a ética judaica

“Ir em direção ao homem é ir em direção a Deus. O contrário não é necessariamente verdadeiro”

A participação de uma significativa parcela da comunidade judaica em apoio a Jair Bolsonaro, é um aspecto das eleições que ainda merece uma análise mais detida.

Houve a palestra na Hebraica do Rio de Janeiro, que de certa forma catapultou a candidatura do ex-capitão entre as elites. Houve a internação no Hospital Israelita Albert Einstein, após a facada. E agora, o flerte de nosso presidente com o premiê israelense Bibi Netanyahu, e a perspectiva da mudança da embaixada para Jerusalém, seguindo o exemplo de Trump.

Assim como Edir Macedo, Bolsonaro também adotou a iconografia religiosa judaica em várias de suas aparições públicas.

Não se pode dizer que toda a comunidade judaica aderiu a sua candidatura. Mas houve quem dissesse que se tratava de 90%. Em contrapartida, criou-se no facebook o grupo judeus contra Bolsonaro, que conta com mais de 10 mil curtidas. Calcula-se em 120 mil, a população judaica brasileira, da qual faço parte.

O rabino Michel Shlesinger, bacharel de direito pela USP, é uma liderança humanista e moderada que expressa com considerável conhecimento os saberes da ética judaica. Oficia na Congregação Israelita Paulista, historicamente associada ao movimento de luta pelos direitos humanos. Henry Sobel era seu líder quando protagonizou importante papel de denúncia no assassinato de Vladimir Herzog, nos porões da ditadura, em 1975.

Rabino Michel escreveu um artigo para a Folha de S. Paulo, há três semanas, no qual evocou conceitos como o voto útil, o Estado laico e o direito das minorias.

“A maneira como o Estado trata povos indígenas e descendentes de quilombolas, quanta liberdade dá ou não a religiões afrodescendentes e o quanto se engaja na luta para que negros e mulheres possuam as mesmas chances que homens brancos é um tema central para o voto imbuído de valores judaicos”, escreveu na ocasião.

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Diante de tudo que aconteceu, qual seria sua orientação para as pessoas?
Tivemos um processo eleitoral bastante polarizado, e isso fez com que pessoas que se querem bem discutissem de maneira pouco gentil e delicada. Acho que agora, passadas as eleições, temos pela frente o desafio da reconciliação. Assim é o processo democrático, uns vencem, outros perdem. Agora é hora das pessoas voltarem a se abraçar, darem as mãos e resgatarem o carinho e a confiança que tinham antes de todo esse processo.

Gostaria de discutir o apoio que parte de comunidade judaica deu ao Bolsonaro. Como isso soou para você?
Eu vi com naturalidade. Temos uma comunidade plural, e tenho orgulho que ela seja assim. Nós tivemos pessoas que apoiaram o candidato vencedor e pessoas que apoiaram o candidato perdedor. Havia campanhas na mídia digital e rodas de conversa em uma direção e na outra. É uma comunidade que tem pessoas que pensam diferente, que defendem diferentes pontos de vista.

Há duas semanas fiz uma entrevista com a Monja Coen com o seguinte título: “Budistas de verdade não votam em Bolsonaro”. Judeus de verdade apoiam Bolsonaro?
Alguns sim, é possível.

Apoiar uma proposta como a dele não contraria a ética judaica?
Eu acredito que a ética judaica passa pela possibilidade de você admitir diversos pontos de vista. E foi o que aconteceu durante as eleições. Essa é a beleza da democracia, essa é a beleza do judaísmo, no sentido de que a gente não tem uma estrutura hierarquizada. As pessoas têm direito e liberdade de defender o que acreditam, e de apoiar as campanhas e as pessoas que elas querem apoiar. Isso, em especial, é motivo de orgulho, é bonito.
O que há de negativo, na minha opinião, foi uma agressividade que aconteceu durante todo esse processo. Isso é o que me preocupa, famílias que pararam de se falar, grupos de WhatsApp desmembrados porque pessoas não conseguiam mais se relacionar. Temos um caminho de cicatrização pela frente, de reaproximar essas pessoas, que são pessoas que se gostam, que se amam, mas que no fervor da defesa de um ou outro candidato acabaram de desentendendo.

Tem alguma passagem bíblica que te inspira nesse momento de reconciliação?
Existem muitas. Mas, em especial eu me lembro de uma passagem do Talmud (tratado sobre lei, ética e costumes judaicos), que diz que devemos ser discípulos de Aaron – o irmão de Moisés, que segundo a literatura rabínica era um conciliador.
Quando havia duas pessoas que brigavam, ele chegava pra uma delas e falava: “Olha, o outro está com saudades de você, não aguenta mais essa separação, não sabe viver sem você”, e falava isso para o outro também. E aí as duas pessoas acabavam se aproximando e reconciliando.
Então eu acho que a gente tem um pouco agora essa função de ser discípulos de Aaron, no sentido de ajudar as pessoas a superarem as mágoas. E acho que foram muitas mesmo, eu tenho visto isso.
Quem estava em uma trincheira se sentiu muito distante da outra, com dificuldade de ouvir, de dar qualquer passo na direção contrária. Essa distância criada entre os dois candidatos se refletiu em seus apoiadores.

Eu entendo que a ética judaica aprecie a diversidade. Mas, quando a gente tem um discurso que é preconceituoso, que ataca as minorias, que propõe de armar a população. Esse tipo de proposta dialoga com a religião?
A religião é muito ampla. As fontes judaicas – assim como as fontes de qualquer tradição religiosa – têm um pouco de tudo, e depende de onde você coloca a lente de aumento.
As religiões têm passagens lindas, das quais a gente se orgulha muito, e têm passagens não tão bonitas também, nas fontes do judaísmo e de todas as outras tradições religiosas. Portanto, falar “religião” é algo extremamente amplo.
É verdade que o judaísmo, de forma bastante sistemática, defendeu o direito das minorias, os direitos humanos. Defendeu a ética e o combate à corrupção. Tudo isso é algo coerente com a defesa dos valores que a tradição judaica privilegiou em detrimento de diversos outros.
A amplitude das fontes religiosas pode servir como legitimação de posturas fanáticas – como acontece em todas as religiões; existem minorias fanáticas que acabam legitimando suas posições nas fontes de suas tradições religiosas. Isso é também parte da religião. As fontes têm um pouco de tudo. A pergunta é: o que você resolve sublinhar?
Pessoalmente, enfatizo os valores que eu enxergo como os mais importantes da tradição judaica. E entre eles está, sem dúvida nenhuma, a questão dos direitos humanos, da defesa das minorias.

Na cultura judaica existe a sombra do que foi o holocausto e o nazismo. Como ela dialoga com essas escolhas?
 Eu acho que a gente vive de sombras.
Essa é uma passagem recente da História da humanidade que atingiu a comunidade judaica de forma particular, assim como o regime militar é uma passagem recente da História brasileira e tem efeitos importantes sobre o que somos hoje.
Infelizmente a humanidade coleciona passagens sombrias, de alguma forma a gente carrega elas com a gente, e acaba tomando decisões que são muitas vezes motivadas por essas passagens, ou por aproximação, ou por distanciamento.

Justamente venceu o discurso da negação da ditadura.
 Eu te entendo e tenho conversado com pessoas que têm essa dificuldade que você está expressando.
Tem uma coisa do processo democrático que é dura mesmo. Às vezes o seu posicionamento, aquilo que você defende como o ideal, o certo – e talvez seja mesmo –, é derrotado. E é parte do jogo da democracia. Não é fácil, é duro, é difícil, porque às vezes você tem muita convicção de estar do lado correto, do lado do bem, da luz. E, eventualmente sua posição é derrotada.

O que cada um de nós pode fazer para vivenciar essa reconciliação?
Aqueles que não apoiaram o candidato que venceu devem participar de maneira muito próxima do que vai acontecer daqui em diante. A democracia é assim. Alguém governa e quem perde faz oposição. A oposição é uma posição tão importante na democracia quanto a situação. Na História recente do Brasil, a oposição foi responsável por tirar governantes que escorregaram, que não fizeram o que deveria ser feito. A gente tem uma História curta de democracia com vários governantes que não terminaram seus mandatos por conta de uma oposição que acompanhou de perto o que estava acontecendo e teve força suficiente de interromper o mandato. Com a Dilma foi assim, com o Collor foi assim. O papel da oposição é importantíssimo. As pessoas que não foram eleitas, foram eleitas como oposição.

Escutei de várias pessoas que esses sentimentos de ódio e intolerância estavam guardados e saíram do armário, vieram à tona. Você concorda com isso?
Concordo. A polarização da campanha fez com que muitas pessoas que tinham posicionamentos, sentimentos, ideias que não tinham coragem de assumi-las de maneira pública, clara, se posicionassem, fazendo com que alguns esqueletos saíssem do armário.

Tivemos duas passagens marcantes: a palestra do Bolsonaro na Hebraica do Rio e a internação dele após a facada no Hospital Albert Einstein. Foram dois momentos onde houve articulação de algumas lideranças judaicas. Você acha que para a comunidade isso é bom? Isso poderia alimentar o preconceito, por parte de quem não é partidário dele.
Se a comunidade estivesse toda fechada em torno de qualquer uma das duas campanhas não seria positivo, não seria bom. Mas, haver pessoas da comunidade judaica próximas de um ou de outro candidato e se sentindo na obrigação de estabelecer pontes com a comunidade, aproximar esse candidato da comunidade e etc, eu acho positivo. É positivo dentro dessa noção de pluralismo, de uma comunidade que tem pessoas que pensam de uma forma ou de outra, que se sentem próximas de um partido ou de outro.

Essa palestra na Hebraica foi para um só candidato…
Houve uma reação acertada da liderança da comunidade judaica quando isso aconteceu, dizendo justamente que a comunidade é plural. Existem pessoas que estão mais próximas de um candidato ou de outro, mas isso não significa que a comunidade está apoiando alguém.

Tem um outro aspecto que é curioso, que é o apreço que os evangélicos têm pela cultura judaica. No dia da vitória, o candidato Bolsonaro fez um discurso, e no cenário da casa dele parece que sempre há uma chanukiá (candelabro de nove braços), ou algum símbolo, objeto que remete a nossa religião. Como isso soa pra você?
Existe uma conexão muito forte com Israel por parte dos evangélicos, sem dúvida. E isso nos aproxima, porque a comunidade judaica sente uma relação afetiva, espiritual muito grande com Israel. Nesse sentido a comunidade evangélica e judaica ficam próximas.
Mas do ponto de vista religioso, teológico existem diferenças. De fato, existem alguns símbolos judaicos que foram incorporados ao ritual de parte das igrejas evangélicas, isso cria alguma identificação. Mas, obviamente, são religiões diferentes, com posicionamentos diferentes em questões da mais variadas.

Bolsonaro disse que a primeira viagem internacional que ele faria seria para Israel. E ainda acenou com a possibilidade da embaixada ser transferida para Jerusalém, seguindo o que os Estados Unidos fizeram.
Eu escutei tudo isso, e tudo isso passa por essa proximidade muito grande que os evangélicos e judeus têm com Israel. Israel é uma referência espiritual para os dois povos.

Mas acaba extrapolando um pouco a questão da fé, quando uma proposta como trocar a embaixada de lugar entra na mesa. Envolve uma outra complexidade que é mais geopolítica e acaba empoderando os homens fortes.
Para muita gente da comunidade, se você não é favor de qualquer que seja a política de Israel, é como se fosse contra Israel.
O que não é necessariamente correto.
Como brasileiros, nós eventualmente criticamos o governo do Brasil, e isso não significa traição a nossa cidadania, pelo contrário. É pelo fato de gostarmos do Brasil que a gente assume uma posição crítica que às vezes elogia e às vezes vai ser negativa a algum tipo de posicionamento. O mesmo tem que acontecer em relação a Israel.

Israel é motivo de muito orgulho para a comunidade judaica, mas é um país liderado por pessoas. Pessoas falíveis como você e eu. Eu acho que amar Israel significa ter a possibilidade de elogiar os caminhos que Israel segue, e também ter a possibilidade de criticar eventuais erros.

Você escreveu no seu artigo sobre o conceito de Estado laico. O slogan de Bolsonaro foi “O Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo”.
Acho que a resposta mais honesta é: a conferir. Vamos ficar vigilantes para ver de que maneira isso vai caminhar. Eu acredito que Estado laico é uma conquista enorme da democracia brasileira. Devemos nos manter vigilantes para que essa conquista permaneça. A separação entre Estado e religião ainda está se aperfeiçoando, acho que ainda não é uma separação completa e absoluta. O exemplo disso são os símbolos cristãos em repartições públicas como tribunais, etc, que ainda são resquícios de um Brasil oficialmente católico. Acho que essa separação ainda está amadurecendo e que qualquer retrocesso não seria saudável para nossa democracia.

O que você acha da ideia de escola sem partido?
Embora eu não conheça a proposta em profundidade, o que eu posso dizer é que me oponho a qualquer cerceamento de liberdade. Acho que os excessos precisam ser investigados e punidos à posteriori. Qualquer tipo de censura prévia é ruim, é um retrocesso. A escola, a universidade, é lugar do pensamento livre.

E a ideia do retorno aos valores mais tradicionais da família? Existe um discurso corrente por um retorno a um modelo mais convencional, um saudosismo, uma proposta de retornar aos valores cristãos de família.
Os valores de família não necessariamente são cristãos, porque tem família na comunidade muçulmana, na comunidade judaica, na comunidade budista. Os valores de família são mais universais, não somente cristãos. E ninguém se opõe à família, obviamente. Temos que ver na prática o que isso vai significar.

Se o resgate de valores de família significa a exclusão do outro, de quem não se encaixa no modelo tradicional de família, então estamos falando de discriminação. E discriminação não só é ruim, como é crime. Então precisamos ver de que maneira isso vai acontecer.

No judaísmo, o conceito de família é absolutamente essencial, importantíssimo. Mas, não podemos discriminar aquele que não se encaixa no modelo tradicional de família.

Na vida convivi também com um perfil de praticante da religião, que é praticante na sinagoga, mas que no campo profissional às vezes é um predador.
Eu fico às vezes com a impressão de que quem fala exageradamente em nome de Deus, deveria antes de mais nada olhar para si.
Talvez essa seja uma generalização. Mas, o que existe são pessoas que investem muito no ritual, e comprometem de maneira leviana as relações pessoais. Na minha avaliação, essa não é uma pessoa religiosa. Uma pessoa religiosa busca um equilíbrio entre o ritual e as relações sociais, e mais do que isso, quando encontra conflito entre um e outro, privilegia as relações sociais.

Ir em direção ao homem é ir em direção a Deus. O contrário não é necessariamente verdadeiro.
Quando você está indo somente em direção a Deus, somente praticando rituais – de qualquer que seja a tradição – você não necessariamente está contribuindo para uma sociedade mais justa, para uma sociedade melhor. Quando isso entra em conflito, você precisa privilegiar o social em detrimento do ritual.

Existe uma passagem que lemos no último shabbat (dia do descanso semanal), que conta que Abraão estava na porta de sua tenda conversando com Deus, recebendo a presença divina. Aparecem três visitantes, e ele abandona Deus falando sozinho e corre em direção aos visitantes. A tradição judaica clássica aproveitou essa passagem para questionar: “Como é possível? Ele está conversando com Deus. Ele abandona Deus, ele deixa Deus falando sozinho para receber visitantes?”. E a resposta é maravilhosa: “ao correr na direção dos visitantes, ele estava correndo na direção de Deus”.

Quando você se compromete com a sociedade, quando você paga os seus impostos, quando você paga os salários dos seus funcionários, quando você se preocupa com aqueles que têm menos e que vivem na margem da sociedade, como os refugiados, você está indo na direção de Deus, está cumprindo um papel religioso tão ou mais importante que um ritual.

A sinagoga não tem regras arquitetônicas, cada uma tem um cara. Mas a sinagoga tem que ter janelas, porque a sinagoga tem que manter contato com o que acontece do lado de fora, na rua. Na hora que a sinagoga se isola do que está acontecendo na sociedade, ela deixa de ter razão para existir. Na minha leitura de judaísmo, um ritual como um fim em si mesmo não faz nenhum sentido. Um ritual é um meio de aprimoramento da pessoa para que ela tenha ferramentas para aprimorar a sociedade.

Talvez esse seja um recado interessante para os nossos governantes: pensar mais nos humanos e menos em Deus. Porque através dos humanos você chega em Deus.
Isso. E o contrário não necessariamente é verdadeiro.

Você acha que resta uma autocrítica para ser feita de tudo isso?
Sim, mas de ponta a ponta. Eu acho que a sociedade brasileira precisa deitar no divã depois de tudo isso que aconteceu. E não seria justo dizer que esse divã é de um candidato ou partido específico.
Eu acho que a gente precisa de uma autoanálise corajosa. Olhar para tudo que está acontecendo e se comprometer com o presente e o futuro do Brasil.

Eu acho que esse é o momento da gente se unir em torno do desejo que o novo governo seja bem sucedido. E fazer uma oposição responsável. Acho que o caminho é esse. Desejo o melhor para o Brasil, e o que for melhor para o Brasil será o melhor para os judeus daqui.
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Reportagem por:  Morris Kachani - 31 Outubro 2018 
Fonte:  https://brasil.estadao.com.br/blogs/inconsciente-coletivo/bolsonaro-e-a-etica-judaica/?utm_source=estadao:allin&utm_medium=newsletter&utm_campaign=estadaonoite::e&utm_content=link:::&utm_term=::::

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