domingo, 29 de maio de 2022

Teorema

 Por MARIAROSARIA FABRIS*

Livro: Teorema - Pier Paolo Pasolini | Estante Virtual

Análise do filme de Pier Paolo Pasolini

Do lado de fora de uma fábrica, um repórter está realizando uma enquete filmada entre operários. Mais do que indagar sobre a cessão da fábrica aos trabalhadores por parte do dono, o repórter parece querer arrancar destes um consenso no que diz respeito à sua argumentação: um capitalista, ao doar sua propriedade, erra, pois tira do proletariado a chance de fazer a revolução, e, ao levar toda a humanidade a identificar-se com a burguesia, frustra a luta de classe. Com a enunciação desse princípio, inicia-se Teorema (1968), em que Pier Paolo Pasolini parece dedicar-se antes a explicitar que a burguesia é culpada intrinsecamente e precisa pagar por suas faltas, do que a demonstrar a hipótese formulada.

A ideia de culpa a ser expiada começa a insinuar-se no filme logo após esse preâmbulo, quando, sobre as imagens de um deserto montanhoso, desfilam os créditos e se ouve uma voz-over pronunciar uma frase tirada da Bíblia (Êxodo, 13, 18), que serve de epígrafe à obra: “Assim, pois, Deus fez o povo dar uma volta pelo caminho do deserto…”. A presença do deserto, sobre o qual paira a sentença bíblica, já é uma primeira pista do regresso progressivo a uma temporalidade meta-histórica (a do mito) que Teorema acabará propondo, apesar da objetividade realista que parecia emanar da adoção do tom de documentário da primeira sequência.

Ao optar pelo mito, Pasolini distancia-se da evidência dos fatos para indagar a veracidade das próprias percepções, das próprias intuições, sem trair a lógica formal de um teorema, pois o que se busca nele não é necessariamente a verdade, mas a coerência em relação a seus postulados. Essa opção lhe permitirá, ainda, trabalhar mais com figuras do que com personagens. O Filho, a Mãe, a Filha, a Empregada e o Pai são categorias, a ponto de nem sempre possuírem um nome próprio ou, quando o possuem, ter sua nomeação retardada: Pietro, Lucia, Odetta, Emilia (nome comum às duas empregadas, espécie de homenagem à região da Emília, ao rincão camponês de onde elas provinham) são nomes ouvidos raras vezes no filme e só depois que já se conhece a quem correspondem; o Pai não tem nome.

O recuo aos tempos bíblicos – que culminará, nos planos finais de Teorema, no clamor do homem pela manifestação divina – porá em discussão a noção de sagrado cósmico, ao qual a sociedade contemporânea deu as costas, e a de pecado primordial, que permeia todo o filme, fazendo com que cada uma das personagens citadas se sinta inconscientemente culpada sem ter cometido pecado algum.

Entrando no enredo propriamente dito, Pasolini mostra como a vida de uma típica família da burguesia de Milão – mas, poderia ser de qualquer outra cidade industrial do Norte da Itália – é afetada pela chegada de um Hóspede. Dele, nada se sabe: quem é (“A boy”, diz Odetta), de onde vem. Surge no meio das outras personagens, das quais nada o diferencia em termos de comportamento, assim como sua doçura para com os demais põe em dúvida que possa ser um elemento estranho ao grupo que veio para destruir um mundo, em sua aparência, harmônico. As transformações decorrentes de sua presença levam a pensar muito mais num caso de entropia, ou seja, de desordem dentro de um sistema definido, fechado sobre si mesmo, idéia reforçada pela reiterada focalização do muro e do portão que protegem a casa.

O Hóspede é alguém conhecido e esperado, cuja presença instiga a manifestação de pulsões latentes. Para a Empregada, é o arcanjo mensageiro, o que anuncia o advento de uma nova era (e não seria difícil traçar um paralelo entre o Messias e Emilia, a qual, depois de voltar para sua terra natal, faz um milagre, atrai uma pequena multidão de seres humildes, sobe ao céu e, no fim, se sacrifica em prol da Humanidade); para a família burguesa será o anjo exterminador, que veio pôr a nu as chagas morais de uma sociedade só voltada para si mesma. Ver no Hóspede um anjo não invalida a hipótese da entropia, uma vez que esses seres espirituais podem simbolizar aspirações humanas sublimadas.

Se o amplexo do Hóspede com Emilia pode ser interpretado como a forma de se estabelecer um elo entre as duas forças presentes naquele recinto (a do trabalho e a do capital), o relacionamento que ele mantém com os demais membros da casa nada mais é do que a maneira de instaurar o incesto no seio da família. Ao transar com o Hóspede, o Filho é possuído pelo Pai; a Mãe é possuída pelo Filho; a Filha é possuída pelo Pai; o Pai possui o Filho, pois, dessa vez, é o Pai quem exerce o princípio ativo, prerrogativa do Hóspede nas outras relações sexuais. O relacionamento incestuoso, no entanto, se dá sem que os envolvidos tenham plena consciência de que o estão praticando, pois o objeto do desejo é sempre um substituto de um outro objeto diante do qual o desejo não ousa manifestar-se, o que não impedirá, assim mesmo, o sentimento de culpa e a autopunição.

O vazio deixado pela perda do objeto do desejo leva Odetta (que constatou, no jardim, uma ausência, que nem a foto do Hóspede pode suprir) a recolher-se a seu mutismo; Pietro (depois de aceitar o próprio fracasso como pintor, por não conseguir retratar o Hóspede a não ser por uma mancha azul) a fechar-se em sua impotência criadora; Lucia (que lançará sobre a roupa de outro rapaz o mesmo olhar que havia lançado sobre a roupa do Hóspede) a enclausurar-se numa igreja; o industrial (atraído pelos mesmos olhos azuis e pelo mesmo jeito desbragado do Hóspede que encontra em outro jovem) a encerrar-se no deserto.

Para a Filha, o Filho e a Mãe, trata-se de uma autopunição ditada pela introjeção de uma autoridade externa, coercitiva e castradora. Quanto ao Pai (tácita fonte social da qual emanam as interdições), pode-se vê-lo como o representante de uma condição humana que, por ter perdido a referência do sagrado – não em sentido religioso, mas enquanto pulsão vital, mundo edênico, porque incontaminado pela lógica burguesa, na visão de Pasolini –, está condenado a vagar pelo deserto, para expiar sua culpa. Nu, porque só ao se livrar totalmente da prisão do invólucro (os trajes, a máscara social, as imposições do corpo), o homem conseguirá voltar a seu estado primitivo e reencontrar sua origem divina.

Voltar à origem divina significa reconhecer a falta do Pai enquanto perda de um princípio ordenador transcendente. Por isso, o Pai de Teorema é o que não tem nome, o que disse, “Sou aquele que sou” (Êxodo, 3, 14), não o industrial. Este é antes um filho, mais um Édipo na filmografia pasoliniana, que tem que se livrar de seus desejos e conflitos humanos para alcançar a elevação. De fato, não é difícil estabelecer um paralelo com o herói de andar cambaio da tragédia grega, ao se considerar que Odetta pode ser antes identificada com Antígona do que com Electra em sua fixação pelo afeto paterno.

Como a filha de Édipo, Odetta cultiva os afetos familiares, a ponto de não conseguir romper com os laços da infância, assistindo o pai em sua enfermidade (numa sequência dominada pelo trecho “Agnus Dei” do Requiem, de Mozart: e o cordeiro de Deus é Cristo, o Filho). O industrial, além da doença nas pernas, também havia sido “cegado”, embora a luz que o cega – por duas vezes, em cenas seguidas, uma delas intercalada por um plano do deserto – talvez remeta mais à fulguração de Saulo no caminho de Damasco, o qual, depois da manifestação luminosa, torna-se Paulo. Paolo, nome não pronunciado no filme, mas atribuído ao Pai no romance homônimo derivado de Teorema, no qual Pasolini escreve que o nome de batismo priva um pai de sua autoridade, a profana, devolvendo-o à sua condição de filho (Capítulo 25).

E os filhos, ao se rebelarem contra os pais dentro da sociedade capitalista, promovem apenas uma guerra intestina, nunca uma revolução, segundo o diretor, receoso da identificação da humanidade com a burguesia. Se se aceitar essa premissa, pode-se compreender melhor o preâmbulo de Teorema: sem a luta de classe, a revolta contra os donos do poder se resumirá a uma disputa dentro do mesmo grupo, perdendo seu sentido libertário.

Em 1970, num depoimento publicado pela revista Nuovi Argomenti, dizia o cineasta: “A liberdade é, pois, um atentado masoquista à conservação. A liberdade não pode manifestar-se de outra maneira se não através de um grande ou pequeno martírio. E cada mártir martiriza-se a si mesmo através do verdugo conservador”. Diante disso, entende-se porque, para Pasolini, só depois de uma longa e dolorosa jornada de expiação, o ser humano, finalmente despido de seu condicionamento burguês, pode voltar a escalar a montanha da teofania.

*Mariarosaria Fabris é professora aposentada do Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. Autora, dentre outros livros, de O neo-realismo cinematográfico italiano: uma leitura (Edusp).

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