quarta-feira, 8 de novembro de 2023

A economia humana

Guilherme ​​​​​​​d’Oliveira Martins*

John Maynard Keynes, o mais célebre dos economistas do século XX, e por certo um dos mais notáveis de sempre, afirmou, num texto muito lembrado de 1930 dirigido aos jovens, num momento de máxima incerteza, que o ritmo para alcançar um destino de felicidade económica definir-se-ia por quatro elementos: "A nossa capacidade de controlar a população; a nossa resolução para evitar guerras e conflitos internos; a nossa disponibilidade para confiar à ciência a orientação das questões que são do seu próprio domínio; e a taxa de acumulação fixada pela margem entre a produção e o consumo." E acrescentava que, destes, "o último cuidaria facilmente de si mesmo, se os três primeiros fossem cumpridos" (Ensaios em Persuasão, Imprensa da U. Lisboa, 2018, p. 264). Mas avisava que as questões económicas não deveriam ser sobrestimadas, não podendo sacrificar-se questões e valores de maior e permanente significado, como a dignidade humana. Assim, considerava que os economistas não deveriam ser encarados como mágicos dotados de poderes especiais, mas como pessoas simples e competentes, capazes de ombrear com os bons dentistas.

Com fina ironia, o que o grande pensador queria dizer era que a satisfação das necessidades materiais da vida humana não pode tornar-se um absoluto, devendo submeter-se à justiça e ao respeito por todos. De facto, ao contrário do que se julga, a nossa sociedade não dá a relevância adequada à economia, na sua etimologia de governo da casa (oikos e nomos), fator essencial para a realização do bem comum. Fala-se demais em mercado e de menos em economia. E, não por acaso, o mestre de Cambridge, foi sempre um defensor ativo da cultura e da arte, como demonstração de que o valor se relaciona intimamente com a essência da vida.

Marido de uma notável bailarina, membro do grupo de Bloomsbury, crítico respeitadíssimo de espetáculos e manifestações artísticas, J. M. Keynes foi, desde 1942, presidente do Conselho de Encorajamento da Música e das Artes, que se tornaria em 1945 Conselho das Artes. São exemplares os relatórios que subscreveu na defesa de critérios de independência e de qualidade no apoio à Educação, à Ciência e às Artes - lembrando as fecundas experiências das Repúblicas italianas na criação de valores perenes e as responsabilidades da sociedade e do Estado nesses domínios.

Assim, recusou o que o pensamento pós-moderno tem considerado como a maximização relativista do contexto ou do mercado, nos polos ideológicos tradicionais. A economia humana exige, de facto, desenvolvimento sustentável, consciência dos efeitos dramáticos da destruição do meio ambiente, transição energética, mas também reforço da legitimidade democrática, o que obriga a recusar a estranha noção de pós-verdade e a considerar a perspetiva universalista da liberdade, da dignidade humana e dos direitos fundamentais.

Quando Martin Wolf nos lembra a crise do que designa como "Capitalismo Democrático" põe-nos alerta. Entrámos, de facto, num período de instabilidade macroeconómica, com crises violentas consecutivas, num sistema de polaridades difusas, com agravamento das desigualdades, limitação da capacidade criadora, evolução financeira incerta, com resultados contraditórios e persistência da ilusão do crescimento, acompanhada de redução da coesão e da confiança. Eis por que o Estado social tem de ser desenvolvido no sentido de garantir justiça distributiva e equidade intergeracional, combater a evasão tributária, o branqueamento de capitais e os paraísos fiscais, contrariar o agravamento das desigualdades, privilegiar a independência da comunicação social e mobilizar a sociedade civil e uma cidadania ativa para o bem comum. A economia humana exige a criação de valor. E prevenir o futuro obriga a assumir que a capacidade inovadora de um cientista e o talento de um artista, poeta ou músico, contribuem no seio da economia humana, decisivamente para o progresso, para a liberdade e para a paz.

*Administrador-executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

Imagem da Internet por Marcus Eduardo de Oliveira

Fonte:  https://www.dn.pt/opiniao/a-economia-humana-17257465.html -Acesso 08/11/2023

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