sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Judias e judeus por qual democracia?

 

Cartaz com o mapa da ocupação israelense ao longo dos anos  

“Pare a ocupação ilegal” (Crédito Unsplash)

Como é possível uma saída bilateral para a paz quando um dos lados está pelo menos, desde 1967, ocupando territórios do outro lado de forma ilegal, violenta e criminosa?

Em 21 de novembro, sete integrantes do Grupo Judias e Judeus pela Democracia – SP publicaram um artigo de opinião na Folha de S. Paulo, com o título “Solução para a causa palestina não é a eliminação de Israel”. O texto, embora curto, é um planetário de equívocos. Nenhum destes, entretanto, diz respeito à condenação aos ataques do Hamas e ao aumento de práticas antissemitas no mundo, o que toda pessoa verdadeiramente e radicalmente democrática deve, no mínimo, subscrever. Tampouco se equivocam ao manifestar o legítimo desejo de construção de um caminho para a paz, o que se espera de quem não se felicita com a morte de quem quer que seja.

Ainda assim, há erros graves, como sugerir que quem defende a “destruição” do Estado de Israel é a favor do genocídio do povo judeu. O uso da palavra “destruição” é indiciário do paradigma de pensamento adotado no artigo. O fato é que a opinião, embora legítima, é substanciada com argumentos questionáveis, quando não equivocados e, em alguns casos, até mesmo paradoxais, o que não seria nada mais do que lamentável, não fosse a publicação ocorrer em meio a um morticínio que já ceifou mais de 15 mil vidas palestinas em 48 dias – o que a torna mais do que apenas isso.

O fundamento do texto, segundo seus autores, é que a única saída para o conflito é um “processo de paz que produza acordo político bilateralmente aceitável”. Para sustentar essa proposta, as autoras e autores questionam o pressuposto de Israel ser um Estado racista e colonial. Aliás, qualificam a compreensão da hierarquia racial que organiza o apartheid israelense e o reconhecimento de suas práticas colonialistas – que são amplamente estudadas por uma miríade de pesquisadores de diferentes áreas e posições ideológicas, incluindo muitos judeus e israelenses – de “refrão” ou simples “jargões”, como se não fossem fatos documentados, notórios e reconhecidos por diversos órgãos internacionais, como a própria ONU. O artigo, portanto, pressupõe a não validade da tese de que Israel seja um Estado racista e colonial, o que é bastante oportuno para a sua conclusão de uma “saída bilateral” para a “paz”, já que isso só seria possível na existência de relações simétricas entre as “partes”.

Perguntamos às autoras e autores, como é possível uma saída bilateral para a paz quando um desses “lados” está pelo menos, desde 1967, ocupando territórios do “outro lado” de forma ilegal, violenta e criminosa? Que saída bilateral é possível quando um desses “lados” é integralmente apoiado pela maior potência econômica e militar do planeta, disposta a fazer tudo o que for necessário para se estabelecer na geopolítica local, a fim de manter sua posição imperial diante do mundo? É do conhecimento das autoras e autores do artigo a história das organizações de representação palestina? Conhecem as variadas estratégias que o Estado de Israel lançou mão para enfraquecê-las e destituí-las de sua legitimidade?

Quem tem tornado o sonho de uma saída bilateral para a paz algo praticamente impossível é exatamente o Estado de Israel ao avançar, a cada dia, mais e mais nas terras que não lhe pertencem segundo o Direito Internacional. Que Estado Palestino poderia emergir da atual realidade de ocupação israelense? Poderia-se alegar que este é um problema de governo, e não de Estado. Mas qualquer breve incursão na história israelense deixa evidente que, a despeito das diferenças nas políticas de governo desde então, as práticas colonialistas são políticas de Estado em Israel. Assim como o apartheid israelense que, por definição, é uma política de desigualdade incorporada no corpo de leis de um Estado nacional.

É possível reformar este Estado a ponto de suas duas principais características – o racismo e o colonialismo – deixarem de operar no interior da burocracia estatal e do sentido de pertencimento nacional? Ou, em outras palavras, o Estado de Israel está disposto a deixar de ser uma etnocracia judaica? Está disposto a abrir-se para a possibilidade de um Estado plurinacional, secular, laico e democrático? Está disposto a, como determina a ONU, garantir o direito de retorno dos palestinos expulsos de seus territórios desde 1948? Qual é a alternativa para a paz bilateral quando um dos “lados” está sendo consumido, expropriado, violentado, encarcerado, assassinado e periodicamente massacrado? A chamada solução de dois Estados foi jogada para o abismo por Israel, motivo pelo qual, Craig Mokhbier, em sua carta de demissão, afirmou que a proposta é motivo de piada nos corredores da ONU.

O artigo afirma o que, na visão das autoras e autores, não é a solução da causa palestina. Mas e os palestinos, o que acham disso? Pensamos que as vozes palestinas deveriam possuir relevância para refletir a melhor solução para a sua causa. Ou não? Na pesquisa realizada pelo Centro Palestino para Pesquisas de Políticas, sediado na Cisjordânia, e divulgada em julho deste ano, a maioria da juventude palestina afirma não acreditar na solução de dois Estados ou não enxergar a viabilidade para sua realização. Na pesquisa, compartilhada com a BBC, Janna Tamimi, de 17 anos, diz que “a solução de dois Estados é um clichê pensado pelo Ocidente que não leva em conta a situação real”. A reportagem ainda afirma que Tamimi expressa desdém em relação ao assunto, acrescentando: “Onde estão as fronteiras?”.

A verdade é que a história já demonstrou ao povo palestino que o combinado sai caro. Mais ainda quando não é cumprido. Com uma autoridade política descredibilizada pela ação de colonos israelenses armados que não respeitam sequer um tratado internacional de paz, e o fazem com o apoio do Estado, é honroso exigir dos palestinos que insistam, pela enésima vez, em uma saída “bilateral para a paz”? Se autodeterminação for algo realmente levado a sério pelo grupo que assina o artigo, queremos acreditar que a agência do povo palestino tem alguma relevância. Se este for o motor do pensamento, o verdadeiro desafio passa da identificação dos sujeitos políticos da ação para a compreensão da correlação de forças para tal ação. A “saída bilateral” se sustentaria?

Em outra passagem, o artigo afirma que “se escolhermos contar essa história por outras narrativas, chegaríamos também aos judeus como povos originários”. Não entraremos no mérito de discutir o caráter histórico da ocupação do território palestino nos últimos milênios, uma vez que dezenas de excelentes estudos estão à disposição para aqueles que têm um verdadeiro compromisso com pensar uma solução real. Mas perguntamos se um sentimento de pertencimento fundado numa narrativa histórica que remonta há milênios é capaz de justificar a expropriação de terras de mais de 750 mil pessoas, em 1948, na Nakba, outras 250 mil em 1967, sem contar aqui as expulsões realizadas de forma ininterruptas durante todo esse período e a atual que assistimos ocorrer hoje em Gaza; se é capaz de justificar que, após um êxodo terrível, essas mesmas pessoas e seus descendentes sejam aprisionados em campos de refugiados, cuja possibilidade de trânsito (de pessoas e suprimentos) é controlada pelo mesmo Estado que os expulsou de suas terras? Se a resposta for sim, paramos por aqui.

Se a resposta for não, chegamos à conclusão de que esse não é um problema de “narrativa histórica”. Antes de tudo, a condição de colonizado implica outra condição, a de um colonizador. E isso não é uma abstração discursiva, um “refrão”, que pode ser desfeita com base em “narrativas históricas”. Isso é um dado da realidade, disponível ao vivo e em cores para qualquer pessoa do nosso tempo. Assim como em outras situações – como na crítica à branquitude -, pode ser difícil e muito complexo aceitar que uma ideologia e uma práxis tão perversas tenham se entranhado naquilo que constitui a nossa identidade e pertencimento. Mas aprendemos com o pensamento de uma das autoras deste mesmo artigo que este é um passo importante a ser dado. É necessário separar o joio do trigo, já que apenas o trigo dá pão.

Por fim, o sionismo parece outro pressuposto inquestionável das autoras e autores. Aqui há outra armadilha: tomar o sionismo como “a” única possibilidade de autodeterminação dos judeus. Em outro artigo, um de nós escreveu que é verdade que o aparato racista e colonialista não é um problema congênito do sionismo, o que explica uma certa perspectiva de coexistência real e plurinacional  que vigorou em uma fase da sua história e as diferentes linhas interpretativas, os debates acalorados e as diversas formas de recepção das suas teorias e projetos políticos em cada lugar que deitou raízes. No entanto, a história do sionismo é a história do que ele realizou até este momento, isto é, a história de uma prática e não apenas de uma ideia.

A prática do sionismo, até aqui, evidencia que ele é, na verdade, “uma” forma de autodeterminação que possui como consequência a expropriação e, no limite, o extermínio, por meio da limpeza étnica, de outros povos; ou, na melhor das hipóteses, busca justificar o deslocamento forçado dessas populações, negando o seu direito à terra de origem. Alguém que se diz progressista ou que se posiciona em defesa da democracia seria capaz de apoiar publicamente uma ideologia dessa natureza? Na ideia de autodeterminação só cabe uma possibilidade, esta possibilidade? Estas são perguntas levantadas por pensadoras como Judith Butler, em Caminhos divergentes: judaicidade e crítica ao sionismo, ou em reflexões como a presente no recente artigo de Tadeu Breda, “Gaza e os filhos de Eichmann”. Acreditamos que seja importante repensarmos o que nós mesmos tomamos como natural, universal e normal.

Talvez seja a hora de revermos os significados de democracia, autodeterminação e Estado que andamos a defender em artigos de opinião, sob risco de praticarmos o contrário daquilo que defendemos. Não é possível defender a democracia – que mais do que um regime político é a característica de uma sociedade que trabalha para ampliar direitos – e hesitar a respeito de um Estado colonialista e com características de apartheid. A menos que nessa ideia de democracia caiba também o seu oposto. Por isso, falamos de uma Palestina “livre do rio Jordão ao mar Meditarrâneo”. Uma Palestina verdadeiramente democrática para todos aqueles e aquelas que queiram viver em uma paz justa e duradoura. A palavra de ordem, que os autores e autoras equivocadamente atribuem ao Hamas, defende a ideia de um território livre de opressão. E, vale dizer, é um canto também ecoado pela esquerda israelense e por judeus antissionistas.

Denunciar o Estado de Israel e, sob determinada estrutura de pensamento, defender a destituição deste mesmo Estado a fim de que outro projeto de autodeterminação contemple todos os povos que ocupam aquele território e que foram perseguidos no passado ou o são no presente, é um caminho possível para a construção da paz. Mas de uma paz concreta, radical, que enfrente as verdadeiras contradições. Uma paz que estabeleça que o “nunca mais” seja um nunca mais para todos.

Fonte:  https://diplomatique.org.br/judias-e-judeus-por-qual-democracia/ 24/11/2023

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