"Luto aqui contra o que me parece ser o principal perigo, pelo menos nos meios que freqüento, que é a idolatria do trabalho. Cuidado, todavia, para não cair no excesso inverso, que seria o desprezo e a rejeição a ele. Não gosto da preguiça, e tenho horror à apatia. Elas nos tentam? Certamente. Mas talvez menos do que se pensa. Quem dentre nós nunca sonhou em poder viver de rendas? (...) O amor à liberdade é mais forte que a aversão ao trabalho. O sonho de felicidade, mas inebriante que a ociosidade. O que enfada no trabalho é menos o esforço que a alienação, a exploração, o tempo perdido ou roubado. (...) O trabalho tomado em si mesmo não é uma virtude; mas o amor ao trabalho bem-feito, repetimos, é - por causa do amor, por causa do bem e por causa dos outros. É o contrário da negligência, da apatia, do laisser-aller, e já é uma maneira de resistir ao egoísmo. A solidariedade é uma grande coisa, mas não vale nada sem a responsabilidade de cada um. (...) A vida é que é boa, não o trabalho. O prazer, não o sofrimento. A liberdade, não a servidão. É por isso que se precisa do trabalho: para que a vida seja possível ou para que seja mais humana (Max: os homens só começam a se distinguir dos animais ao produzir os meios de sua própria existência), para que o prazer e a liberdade possam se desenvolver, bem como a cultura, a criatividade, a afetividade e o lazer... Portanto, nem idolatria ao trabalho, nem apologia da preguiça. O trabalho é apenas um meio, não um fim. (...) O trabalho é uma salvação só para os perdidos; é uma terapia só para os loucos. Para os outros, é o que deve ser: uma obrigação, uma necessidade quase sempre, uma disciplina com frequência e uma paixão às vezes, para os que gostam de seu ofício. Os que transformam o trabalho em felicidade têm muita sorte. Que não esqueçam, todavida, que é o amor que os salva, não o trabalho". (Apontamentos do Livro: A vida humana. André Comte-Sponville, Martins Fonte, SP, cap.Trabalhar, pg.57/63).
sexta-feira, 5 de outubro de 2007
terça-feira, 26 de junho de 2007
RUBEM ALVES, O afogado mais bonito do mundo
O afogado mais bonito do mundo
De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram?"
SOU ANTROPÓFAGO. DEVORO livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro, deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue.
De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram?"
SOU ANTROPÓFAGO. DEVORO livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que os devoro, deixam de pertencer ao autor. São meus porque circulam na minha carne e no meu sangue.
É o caso do conto "O Afogado Mais Bonito do Mundo", de Gabriel García Márquez. Ele escreveu. Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto.
É sobre uma vila de pescadores perdida em nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a excitação do amor sendo algo de que ninguém mais se lembrava...
Aconteceu que, num dia como todos os outros, um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar como aquele até uma forma estranha é motivo de festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou na areia, para o desapontamento de todos: era um homem morto.
Todos os homens mortos são parecidos porque há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar.
E, naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro, os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do mar.Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio.
Uma mulher balbuciou: "Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao entrar em nossas casas. Ele é muito alto...".Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram sim com a cabeça.De novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher... "Fico pensando em como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada, faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque no cabelo?"
E elas sorriram e olharam umas para as outras.
De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra mulher... "Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas? Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e acariciar o seu corpo?"Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro estava se transformando numa ressurreição: um movimento nas suas carnes, sonhos esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, desejos proibidos aparecendo na superfície de sua pele, os corpos vivos de novo e os rostos opacos brilhando com a luz da alegria.
Os maridos, de fora, observavam o que estava acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao perceberem que um morto tinha um poder que eles mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado, nas mulheres que nunca haviam desejado.
A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma. (Folha de São Paulo, terça-feira, 26 de junho de 2007 )
quarta-feira, 13 de junho de 2007
Personal mobile
A sociedade líquida, para usar uma expressão do Bauman, criou o personal mobile. Espécie de personal trainer, para ensinar os usuários de celulares a mexerem com o aparelho novo. Os manuais de instruções já estão obsoletos. Dizem que esses profissionais estão a disposição para resolver qualquer impasse com o aparelho. Vê-se que a criatividade do homus tecnológico é infinita. As empresas lucram com os usuários que 'não têm tempo' para lerem os manuais de instruções e entregam-se às habilidades de um pernosal mobile.
segunda-feira, 4 de junho de 2007
PENSAMENTO não do dia, de sempre
"Não me dê a sua verdade,
busquemos juntos a verdade e
guardemos
a sua e
a minha"
(Antonio Machado - citado por Leonardo Boff, entrevista La Vanguarda, junho/2007)
sexta-feira, 1 de junho de 2007
INTERNET DAS COISAS- 'spimes' .
O desafio da internet das coisas
IHU/UNISINOS – 01/06/2007
Hoje, praticamente mais ninguém duvida da capacidade de pessoas distantes no espaço se encontrarem, via internet, e se comunicarem e trocarem informações que acham pertinentes. Já faz parte da vida. No entanto, a reação de perplexidade toma conta quando se afirma que em breve será possível interconectar coisas. O próximo passo consiste em integrar coisas numa rede de comunicação, a chamada internet das coisas. Para Neil Gershenfeld, pesquisador do MIT e guru deste tipo de pesquisa, “esta é a visão de uma verdadeira rede ubíqua: em qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer pessoa e com qualquer coisa”. E as quatro tecnologias que enumerava para tornar isso possível são: etiquetas de identificação por radiofreqüência (RFID), sensores, inteligência e nanotecnologia.
Segue a reportagem de Tomàs Delclós para o El País, 17-05-2007. A tradução é do Cepat.
A internet nasceu conectando pessoas através de máquinas. Agora, uma parte importante da sua rede, 12% do tráfego, conecta máquinas que falam entre si para cumprir uma tarefa sem necessitar do homem. O próximo passo é a chamada Internet das coisas. Trata-se de que a atual internet salte do universo em que se move para aquele dos objetos, identificados e capazes de se conectar e intercambiar informação. As explicações sobre esta futura internet das coisas estão cheias de metáforas e não é estranho que, junto com cientistas, também tenham escrito sobre este futuro novelistas como Bruce Sterling.
Um dos pesquisadores que com mais persistência trabalha e teoriza este horizonte é Neil Gershenfeld, do MIT. Em 1999, publicou Quando as coisas começam a pensar onde, junto com o relato de experiências de laboratório, havia um lado estritamente programático. “Além de procurar fazer com que os computadores estejam em todas as partes, deveríamos tentar que não estorvassem”, escrevia. Na sua tese fixava os direitos daqueles que empregam as coisas (“fazer uso da tecnologia sem atender as necessidades desta”) e também os direitos das coisas: ter identidade, aceder a outros objetos e detectar o entorno.
No mês passado, Gershenfeld esteve em Barcelona onde o Instituto da Arquitetura Avançada abriu um dos fablabs que ele promove, laboratórios-fábrica nos quais os cidadãos utilizam máquinas para inventar e fabricar coisas que lhes interessam e na sua medida. Diante das profecias que não acreditam que possamos ver um mundo com objetos interconectados em até 30 anos, Gershenfeld acredita que é preciso “diferenciar o longo prazo e os surpreendentes passos que estão sendo dados no curto prazo. Entender o longo prazo permite compreender o que supõe a revolução digital”.
E explica que nos anos quarenta do século passado, Claude Shannon demonstrou que a codificação digital dava a possibilidade de comunicação perfeita apesar dos ruídos. Nos anos cinqüenta, Neumann demonstrou o mesmo princípio no mundo dos computadores: o encaixotamento de peças imperfeitas não impede dispor de uma máquina que cumpra perfeitamente sua função. E este mesmo princípio se aplica à fabricação digital. “Nosso próprio corpo, efetivamente, está construído por pequenos computadores nas proteínas. O atual estágio da pesquisa sobre a fabricação digital consiste em que os computadores não controlem as ferramentas, mas que sejam ferramentas e que os programas não desenhem coisas, mas que sejam coisas”.
Internet 0
Um mundo interconectado parece exigir um cidadão muito competente em novas tecnologias. Gershenfeld considera que “a chave é que quando a gente pode criar sua própria tecnologia é então quando se desperta a paixão. A solução não é só uma educação melhor ou um software mais amigável, mas dar a possibilidade de que as pessoas possam criar tecnologia por si próprias”.
Um conceito associado à Internet das coisas é a internet 0. Diante da Internet que cresce e exige mais largura de banda, a Internet 2 para grandes manobras telemáticas, Gershenfeld fala da Internet 0 porque uma lâmpada não necessita tanta largura de banda. “A expressão Internet 0 nasce precisamente do projeto Media House realizado em Barcelona. Levantou-se uma estrutura com a idéia de uma casa programável baseada em micro-chips que são servidores web, sensores que controlam a energia e podem se comunicar de muitas maneiras diferentes. Custam um dólar. O nome Internet 0 procede do emprego de uma comunicação lenta para facilitar sua implementação. O que os dispositivos fazem na Internet 0 se aproxima mais do Código Morse, usado em telegrafia”. Gershenfeld comenta que se a domótica não avançou o esperado é porque a indústria da construção não se dá conta de que além do departamento de eletricidade ela necessita de uma seção de IT. “O custo não está nos dispositivos, mas na rede e é preciso refazê-la”.
Em novembro de 2005, a União Internacional das Telecomunicações, uma agência das Nações Unidas, apresentou seu relatório sobre a internet das coisas. “O próximo passo é integrar coisas numa rede de comunicação. Esta é a visão de uma verdadeira rede ubíqua: em qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer pessoa e com qualquer coisa”. E as quatro tecnologias que enumerava para tornar isso possível são: etiquetas de identificação por radiofreqüência (RFID), sensores, inteligência e nanotecnologia. Num capítulo em que imaginam o futuro, descrevem a vida de “Rosa, uma estudante espanhola, em 2020”. Se ela quiser passar um fim de semana nos Alpes, os sensores dos pneus a avisam de qualquer avaria, ela compra uma jaqueta multimídia com ajustes de temperatura, faz uma videoconferência com seu noivo através dos óculos e se encontram no caminho graças aos instrumentos de navegação...
O relatório destaca que a adoção de padrões e a interoperabilidade serão resolvidas para facilitar a mudança. O documento insiste nas RFID, o que traz problemas de desconfiança do cidadão. Como controlar o cruzamento inadvertido de dados? Para Gershenfeld, “as RFID têm muitos problemas. O maior é que o usuário pode ler a etiqueta, mas necessitaria de um exército de consultores para a programação de uma etiqueta e torná-la funcional. O atual RFID não tem nada a ver com a internet, mas no mundo da Internet 0 o usuário pode se comunicar fisicamente com as etiquetas. Porque aí cada etiqueta tem uma função e está na rede. As RFID estão isoladas, no vazio. Na Internet 0, as etiquetas são uma pacote físico que faz parte da rede e isso diminui as preocupações sobre a privacidade”.
Joseph Paradells, pesquisador da Politécnica da Catalunha e da Fundação I2cat, comenta que o futuro da Internet das coisas não reside só em conectar coisas, mas em dar inteligência ambiental. “Além da automatização das casas ou a vigilância de doentes, do que se fala muito, estão aplicações para o controle e a salvaguarda do entorno”. E matiza o papel das atuais etiquetas RFID. “As mais conhecidas são passivas, só dão informação quando são ativadas externamente. Em muito pouco tempo haverá as RFID com baterias que podem ter um papel mais ativo, mas sempre se trata de responder a uma pergunta externa. Ao contrário, os sensores têm certa capacidade para captar dados, processá-los, fazer algo com eles. O problema é que as RFID mais simples podem custar centavos. As ativas, entre 20 e 30 euros e os sensores mais. Outro gargalo é a alimentação dos mesmos. Com a necessidade de recarga periódica, suas baterias perdem muita utilidade. Daí os estudos para alimentá-los de forma permanente por vibração, pressão ou energia lumínica”.
Paradells trabalhou em protótipos que mudam a imagem tradicional da domótica. “Habitualmente se pensa em sistemas para controlar a casa, mas se você quiser colocar uma lâmpada num lugar imprevisto... é um problema. A alternativa é estabelecer a comunicação com o interruptor em qualquer tomada, mais que instalar interruptores você instala tomadas. No segundo, os interruptores estão alimentados por baterias e podem estar em qualquer lugar, sem necessidade de tomada”. Ao dotar a lâmpada de uma direção IP e estar conectada à rede, pode ser controlada a partir de qualquer lugar. Outras pesquisas se referem ao controle de eletrodomésticos em função do perfil do usuário (que a televisão se ligue pelo canal preferido de quem quer assisti-la, baixe o volume quando o telefone tocar, etc.) ou a melhora dos mecanismos de tele-assistência.
Os ‘spimes’ de Sterling
Bruce Sterling, em seu livro Shaping Things, chama Spimes a próxima geração de objetos no universo da tecnocultura. Trata-se de “informação mesclada com sustentabilidade”. Na Wikipedia encontra-se claramente o que são os spimes: têm uma identidade única legível digitalmente; são localizáveis e traçáveis; podem ser buscados desde buscadores; recicláveis; desenhados e armazenados virtualmente e em muitos casos podem ser fabricados pelo próprio usuário.
(http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=7531 )
quinta-feira, 31 de maio de 2007
ZYGMUNT BAUMAN* (Final) Entrevista
- O senhor acredita em uma alternativa possível dentro da vida líquida, em uma era onde as utopias parecem nao sobreviver?
Se você digitar utopia no Google verá que existem milhões de sites contendo a palavra, o que indica que seu obituário ainda não deveria ter sido escrito. Ao olhar os sites, claro que encontraremos ocorrências como uma página que reúne jogos ou retrospectivas sobre o conceito. Mas acho que esses sites são minoria. Acredito que o termo utopia é cada vez mais usado por empresas de design, cosméticos e moda. Andrzej Stasiuk, um romancista polonês, sugere que a utopia contemporânea está no poder de se transformar em outro alguém e não mais na salvação. Novas técnicas de cirurgias plásticas surgem a cada dia. Slawomir Mrozek, outro escritor polonês, afirma que antes, se nós estávamos infelizes, acusávamos a Deus. Continuamos infelizes, então elegemos "novos diretores". Mas os negócios não melhoraram com a mudança de poder. E não poderiam, até porque nosso sonho por uma vida melhor está centrado apenas em nossos egos. Nesse sentido, Mrozek compra nosso mundo "com um mercado lotado de vestidos à venda onde as pessoas procuram encontrar suas essências". Qualquer um pode trocar de vestido muitas vezes. Mas a essência verdadeira nunca é encontrada. E se fosse o divertimento acabaria. O sonho de uma felicidade mais estável encontrada nesta troca de vestidos - que poderia representar a troca de egos - constitui a utopia contemporânea.
* ZYGMUNT BAUMAN, sociólogo polonês de 81 anos. Tem 11 livros publicados no Brasil, entre eles O mal estar na pós-modernidade e Globalização: as conseqüências humanas. Vida Líquida. Sociedade Líquida. Amor Líquido. (Entrevista do JB/Idéias & Livros, 24/03/2007, fl.3).
quarta-feira, 30 de maio de 2007
MÃO & COMÉRCIO
"...Elias Canetti descreve as propriedades das mãos (Massa e Poder). Num deslocamento rápido — Canetti retroage à era em que vivíamos nas árvores — as duas mãos não fazem a mesma coisa, num só momento. Uma tenta alcançar o galho seguinte, outra segura o galho anterior. O ato de segurar é estratégico pois é a única coisa que impede a queda. A mão, sobre a qual pende todo o corpo, não pode soltar o que segura. Assim, ela adquire o hábito de uma grande tenacidade. Quando o outro braço alcança o galho seguinte, o galho anterior deve ser solto. Soltar com a rapidez do relâmpago é a aptidão que se agrega às mãos em nossa pré-história. Pegar-soltar-pegar-soltar. Num mesmo instante, uma das mãos faz o contrário da outra, o que dá aos macacos e ao ser humano que estava nascendo a leveza para seguir em frente.O comércio, diz Canetti, guarda semelhante habilidade manual, pois consiste em dar algo em troca de algo. Uma das mãos agarra o objeto com o qual tenta induzir o interlocutor a comprar. A segunda segue para o outro objeto, que se pretende obter em troca. Quando determinada mão toca o objeto pretendido, a outra solta a sua propriedade. Não antes, porque poderia ser privada do que tem. Para evitar isto, vem o sobreaviso na negociação, observa-se o interlocutor.
A alegria do comércio em parte se explica porque ele perpetua uma das mais antigas formas de movimento, em atitude psicológica. A grandeza da mão está na paciência, os seus processos compassados criaram o mundo em que vivemos."
(Exceto do Artigo de Roberto Romano: Técnica, Guerra e Ética (2) in. Correio Popular/Campinas, 30/05/2007)
A alegria do comércio em parte se explica porque ele perpetua uma das mais antigas formas de movimento, em atitude psicológica. A grandeza da mão está na paciência, os seus processos compassados criaram o mundo em que vivemos."
(Exceto do Artigo de Roberto Romano: Técnica, Guerra e Ética (2) in. Correio Popular/Campinas, 30/05/2007)
segunda-feira, 28 de maio de 2007
RUBEM ALVES. Badulaques 120
O bolso do mistério: Ah! Tanta gente quer saber se acredito em Deus! Mas eu não entendo a sua pergunta porque não sei o que elas querem dizer com essa palavra “acreditar”.
E se eu respondesse elas receberiam apenas uma mentira, embora eu tivesse falado a verdade.As palavras são enganosas... Palavras são bolsos, bolsos vazios. À medida em que a gente vai vivendo, a gente vai pondo coisas dentro do bolso. O bolso que tem o nome Deus fica cheio das quinquilharias que catamos pela vida.
Assim, quando falamos sobre Deus, não falamos sobre Deus. Falamos é sobre as coisas que guardamos dentro desse bolso. Assim, se eu respondesse “acredito em Deus”, a outra pessoa se enganaria pensando que dentro do meu bolso eu guardo as mesmas coisas que ela guarda no seu. E concluiria mais: que eu sou uma boa pessoa. Mas, se tivesse dito que não acredito em Deus, ela concluiria que não sou uma boa pessoa.
No filme A Linguagem das Mariposas, passado ao final da guerra espanhola, a aldeia inteira assistie às prisões dos que seriam fuzilados. (O padre sabia e, ao lado dos fuzis, se preparava para a absolvição dos pecados...) E a acusação suprema de impiedade que era lançada contra os caminhantes “dali a pouco cadáveres” era: “Ateus!”. Mas o que importava mesmo era que o generalíssimo Franco acreditava em Deus e era católico de comunhão diária... Muitas pessoas guardam mortes no bolso que têm o nome de Deus.
“Acreditar”, no sentido comum que as religiões dão a essa palavra, refere-se a entidades que ninguém jamais viu, tais como anjos, pecados, santos, milagres, castigos divinos, inferno, céu, purgatório...
No meu bolso sagrado, “acreditar” é palavra que não entra. Ele está cheio com palavras que têm a ver com amor, mesmo que o objeto do meu amor não exista. Lembro-me das palavras de Valéry: “Que seria de nós sem o socorro das coisas que não existem?”.
Eu amo a beleza da natureza, da música, de um poema. Amo a beleza das palavras de amor e de bondade que se trocam. Uma criança adormecida é, para mim, uma revelação, uma ocasião de espanto. Acho que Bachelard adoraria nos mesmos altares que eu: “A inquietação que temos pela criança”, ele escreveu, “sustenta uma coragem invencível”. Uma criança é um pequeno deus.
Para mim, a beleza é sagrada porque, ao experimentá-la, eu me sinto possuído pelo Grande Mistério que nos cerca. Sinto-me como uma aranha que constrói a sua teia sobre o abismo. O abismo está à volta de nós, o abismo está dentro de nós. Os fios da minha teia, eu os tiro de dentro de mim, são partes do meu corpo. Teço a minha teia com poesia e música.
De Deus só temos a suspeita. A beleza é a sombra de Deus no mundo. Sobre ele — ou ela — deve-se calar — muito embora as religiões sejam por demais tagarelas a seu respeito, havendo mesmo algumas que se acreditam possuidoras do monopólio das palavras certas — a que dão o nome de dogmas.
Estou de acordo com Alberto Caeiro: “Pensar em Deus é desobedecer a Deus, porque Deus quis que não o conhecêssemos. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, sem dúvida que viria falar comigo e entraria pela porta a dentro dizendo-me “Aqui estou!”.
E, de acordo também com Walt Whitman: “E à raça humana eu digo: — Não seja curiosa a respeito de Deus, pois eu sou curioso sobre todas as coisas e não sou curioso sobre Deus. Não há palavra capaz de dizer quanto eu me sinto em paz perante Deus e a morte. Escuto e vejo Deus em todos os objetos, embora de Deus mesmo eu não entenda nem um pouquinho...”.
Eu já nem tenho mais o bolso com o nome “Deus”. Ele se presta a muitas confusões. Mas tenho um bolso com o nome “o Grande Mistério”. Mas não sei o que está dentro dele. É mistério...
(Rubem Alves. Badulaques 120. Correio Popular/Campinas on line, 27/05/2007)
PENSAMENTO não do dia, de sempre
"A sociedade de consumo
consegue tornar permanente a insatisfação"
(Zygmunt Bauman. Vida líquida. Zahar,RJ,2007,pg.106)
sexta-feira, 25 de maio de 2007
*ZYGMUNT BAUMAN ( II) Entrevista
- Em ‘vida líquida’ o senhor fala de forças que mantém os indivíduos em silêncio e, ao mesmo tempo, acabam com as vozes infelizes. Como são essas forças na lógica do consumo?
A sociedade moderna líquida promete possibilidade infinitas de “começar de novo”, “nascer de novo”, mudar de identidade, empregos, parceiros, gostos e objetos de desejo. Nada é definitivo e irrevogável, sempre haverá (ou pelo menos acreditamos nisto) uma segunda chance. E uma terceira, uma quarta... Cada frustração pode ser compensada por uma vitória futura. E as vitórias são também temporárias. Em um mundo de incessantes novos começos, viajar é muito seguro e fascinante do que a promessa da chegada. A felicidade está no consumo, embora a sensação de estar soterrado entre tantas opções de compra possa provocar frustração ou arrependimentos. E um outro ponto: a sociedade moderna líquida é individualizada, e dela se espera que encontre soluções individuais para problemas sociais fabricados.
- A modernidade líquida teria então uma grande contradição: a hesitação entre igualdade social e liberdade?
A questão mais pungente (e a mais dolorosa, porque nunca é satisfeita) é entre a liberdade e a segurança. A liberdade de escolha significa assumir riscos que não podem ser previstos. Apenas pessoas muito ricas, poderosas ou corajosas podem esperar que suas escolhas também signifiquem ganho em segurança. A maioria deixaria de lado parte da liberdade em nome da certeza de mais segurança. A modernidade líquida desmantelou toda estrutura de onde provinha a segurança individual ( a família, a comunidade, o estado de bem-estar, uma permanência relativa do emprego) e falhou ao substituí-los. Aumentar a segurança é uma tarefa que foi relegada a indivíduos ingênuos ou estúpidos... Consequentemente, o progresso das liberdades individuais é acompanhado do crescimento do fundamentalismo. Que professam uma simplificação de escolhas, uma rotina fixa de direitos e deveres que eles julgam significar proteção. A contradição entre liberdade e segurança, dois valores indispensáveis a uma existência humana decente e aceitável, é hoje o fator que determina a mais profunda divisão social.
- Na vida líquida não há espaço para revoluções sociais?
Há pouco a se ganhar ao juntar as forças e marchar ombro a ombro. Não há muito espaço para construir uma "boa sociedade". Os problemas enfrentados pelos indivíduos são incrivelmente semelhantes, mas não são resumidos e pensados em conjunto. Cada um tenta encontrar sua própria solução, mesmo que o inferno seja nosso lugar-comum. Como sugeriu o ótimo Ítalo Calvino, os indivíduos deveriam, em vez de tentar controlar seus caldeirões ferventes, juntar forças para apagar o fogo que está debaixo deles...
- O escritor brasileiro Bernardo Carvalho disse em um romance que em "São Paulo publicidade é literatura". O senhor acredita que esta lógica de consumo contamina cada vez mais as relações?
A sociedade de consumo é a civilização do excesso e do desperdício. A economia do consumo deveria satisfazer os consumidores - mas promete satisfação de curto prazo com coisas (inanimadas e animadas!) que os indivíduos já possuem. Então a insatisfação permanece, queremos sempre mais e desejamos coisas diferentes. Se os objetos não são suficientemente obedientes aos meus desejos, são descartados e substituídos por outros mais equipados. Isto se reflete nas relações humanas com consequências desastrosas: se alguém me incomoda ou falha em me proporcionar o prazer que eu gostaria, meu primeiro impulso é voltar ao mercado e fazer uma troca por alguém menos problemático.
- E por isso que as relações são cada vez mais frágeis e breves...
O sociólogo Arlie Russel Hochschild definiu o efeito colateral mais ferino da autalidade: a materialização do amor no consumismo. Como as famílias passam mais da metade do tempo livre em frente à tevê são bombardeadas por anúncios e persuadidos a "precisar" cada vez mais de novos produtos. Mas para comprá-los necessitam de dinheiro - que só conseguem com mais horas de trabalho. Como ficam muito tempo fora de casa compram presentes para compensar a ausência. Materializam o amor. E então o círculo continua: ocupados em ganhar o dinheiro, que eles julgam precisar para garantir a felicidade, homens e mulheres têm menos tempo para negociações - que embora possam ser dolorosas - são necessárias para garantir a construção de empatia e intensidade nas relações.
* ZYGMUNT BAUMAN, sociólogo polonês de 81 anos. Tem 11 livros publicados no Brasil, entre eles O mal estar na pós-modernidade e Globalização: as conseqüências humanas. Vida Líquida. Sociedade Líquida. Amor Líquido. (Entrevista do JB/Idéias & Livros, 24/03/2007, fl.3).
HANNAH ARENDT e JOÃO XXIII
A história sobre o Cardeal Roncalli ( papa João XXIII) está contada assim: “A mesma presença de espírito, que os franceses chamam esprit, é mostrada por outra história inédita. Num banquete do corpo diplomático, quando era anúncio apostólico na França, um dos cavalheiros quis embaraçá-lo e fez circular pela mesa uma foto de uma mulher nua. Roncalli olhou para figura e devolveu-se ao sr. N., com a observação: “Sra. N., suponho”. (ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. Cia. De Letras,SP,1987, pg. 62)
quinta-feira, 24 de maio de 2007
PENSAMENTO não do dia, de sempre
"Trazemos conosco, como um tesouro irrecusável,
um monte de crenças e de certezas indignas.
Mesmo quem consegue desembaraçar-se delas,
e vencê-las, permanece - no deserto de sua lucidez - ainda fanático:
de si mesmo,
de sua própria existência..."
(CIORAN. Breviário de Decomposição, Rocco RJ, 1989, pg.66)
COTIDIANO
O transporte coletivo de porto alegre é algo de louco. As freiadas fazem as mãos buscarem o encosto do banco da frente; quando o motorista arranca quem está subindo paga mico no corredor do ônibus, ri, mas de raiva...porque fica balançando que nem coqueiro a beira do mar em tempo de vendaval. Nas sinaleiras, tudo acontece igual. E o pior que não tem onde reclamar...
MANTER UM BLOG
Manter um blog atual exige tempo. O que seria o tempo? O melhor mesmo é criar um "personal trainer" do tempo....
quarta-feira, 23 de maio de 2007
HANS KÜNG - Morrer para entrar na luz
MORRER PARA ENTRAR NA LUZ
HANS KÜNG
Para mim, pessoalmente, eu aceitei a “aposta” de Blaise Pascal, e ponho todas as minhas fichas em Deus, e contra o zero e o nada – não com base no cálculo das probabilidades, nem na lógica matemática, mas sim com base em uma razoável confiança. Não acredito nas formas legendárias mais tardias da mensagem neotestamentária da ressurreição, mas acredito sim, em seu núcleo original: que este Jesus de Nazaré não morreu por nada, mas sim para Deus. Confiando nesta mensagem, eu, como cristão, e como muitas outras pessoas de outras religiões, acredito que não morro para o nada, o que e parece ao extremo irracional e sem sentido. Acredito, pelo contrário, que morro para a realidade primeira e última, para Deus, o que – na real e oculta dimensão do infinito, além do espaço e do tempo – supera toda a razão e toda imaginação humana. Nenhuma criança, se já não tiver disso conhecimento, espera ver no casulo de uma lagarta a existência livre e luminosa de uma borboleta, não mais presa à terra! Tenho plena consciência, evidentemente, do risco inerente a esta aposta, mas estou convencido de que, mesmo que na morte eu viesse a perder a aposta, nada teria perdido para minha vida, pelo contrário, eu teria de qualquer forma vivido melhor e com mais alegria e sentido do que se não tivesse tido esperança nenhuma.
É esta minha esperança, esclarecida e fundamentada: morrer é um despedir-se para dentro de si, a fim de ingressar e abrigar-se na origem e fonte do mundo, em nossa verdadeira pátria: uma despedida – dependendo do casão – talvez não sem dor e angústia, mas de qualquer modo na segurança e na entrega, ou pelo menos sem lamentos nem queixas, sem amargura ou desespero, mas pelo contrário, em confiante expectativa e silenciosa certeza, e (depois de acertar tudo quanto precisa ser acertado) em tímida gratidão por tudo quanto de bom e de menos bom ficou definitivamente para trás – graças a Deus.
Posso, assim, entender o todo da realidade, mesmo que não seja capaz de apreende-lo:
Deus como Alfa e Ômega, como início e fim de todas as coisas.
E por isso, morrer para entrar na luz.
(KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Petrópolis, RJ, Vozes, 2007, pg.278,279)
HANS KÜNG
Para mim, pessoalmente, eu aceitei a “aposta” de Blaise Pascal, e ponho todas as minhas fichas em Deus, e contra o zero e o nada – não com base no cálculo das probabilidades, nem na lógica matemática, mas sim com base em uma razoável confiança. Não acredito nas formas legendárias mais tardias da mensagem neotestamentária da ressurreição, mas acredito sim, em seu núcleo original: que este Jesus de Nazaré não morreu por nada, mas sim para Deus. Confiando nesta mensagem, eu, como cristão, e como muitas outras pessoas de outras religiões, acredito que não morro para o nada, o que e parece ao extremo irracional e sem sentido. Acredito, pelo contrário, que morro para a realidade primeira e última, para Deus, o que – na real e oculta dimensão do infinito, além do espaço e do tempo – supera toda a razão e toda imaginação humana. Nenhuma criança, se já não tiver disso conhecimento, espera ver no casulo de uma lagarta a existência livre e luminosa de uma borboleta, não mais presa à terra! Tenho plena consciência, evidentemente, do risco inerente a esta aposta, mas estou convencido de que, mesmo que na morte eu viesse a perder a aposta, nada teria perdido para minha vida, pelo contrário, eu teria de qualquer forma vivido melhor e com mais alegria e sentido do que se não tivesse tido esperança nenhuma.
É esta minha esperança, esclarecida e fundamentada: morrer é um despedir-se para dentro de si, a fim de ingressar e abrigar-se na origem e fonte do mundo, em nossa verdadeira pátria: uma despedida – dependendo do casão – talvez não sem dor e angústia, mas de qualquer modo na segurança e na entrega, ou pelo menos sem lamentos nem queixas, sem amargura ou desespero, mas pelo contrário, em confiante expectativa e silenciosa certeza, e (depois de acertar tudo quanto precisa ser acertado) em tímida gratidão por tudo quanto de bom e de menos bom ficou definitivamente para trás – graças a Deus.
Posso, assim, entender o todo da realidade, mesmo que não seja capaz de apreende-lo:
Deus como Alfa e Ômega, como início e fim de todas as coisas.
E por isso, morrer para entrar na luz.
(KUNG, Hans. O princípio de todas as coisas. Petrópolis, RJ, Vozes, 2007, pg.278,279)
segunda-feira, 21 de maio de 2007
GILLES LIPOVETSKY A sociedade da decepção
A sociedade da decepção.
Na juventude, Gilles Lipovetsky militou num grupo pós-trotskista, mas nunca foi exatamente um comunista. Ele já escreveu sobre o luxo e virou consultor de grifes famosas, mas tampouco é um consumista. Redige seus livros à mão, em folhas de papel, nas mesas de hotéis, enquanto roda o mundo apresentando idéias tão acessíveis quanto polêmicas. Seu mais novo libelo se chama A sociedade da decepção (Ed. Manole), com lançamento marcado para segunda-feira 21, em São Paulo.
Nesta quarta-feira, dia 23, Lipovetsky estará na UNISINOS participando do Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
Ele foi entrevistado por Luciano Suassuna da revista IstoÉ, 23-05-2007.
Eis a entrevista.
O que é a sociedade da decepção?
A decepção é uma experiência humana universal desde sempre. Nas sociedades antigas, ela era restrita. Primeiro porque o desejo era mais limitado, existia uma cultura da resignação, resumida na expressão “é a vida”. E, depois, havia a religião, que limitava a decepção.
E quando ocorreu essa mudança?
A sociedade moderna fez explodir o sentimento da decepção. A democracia abriu o desejo das pessoas. Ela cria frustrações porque não suporta a desigualdade. E a era hipermoderna, que vivemos hoje, acelerou mais ainda a decepção, que agora está em todos os lugares, em todos os níveis sociais.
Primordialmente onde?
Quais outras fontes de decepção?
A escola. Antes ela tinha a virtude de permitir a ascensão social. Mas hoje temos jovens muito qualificados que trabalham em coisas que não correspondem a essa qualificação – e isso gera decepção.
Mas vive-se bem melhor do que no passado.
De que maneira essas frustrações estão ligadas ao consumo?
Por que isso não é verdade?
Então qual o consumo que leva à decepção?
E no campo das relações humanas?
Vivemos então um modelo fracassado?
Entrevista com Gilles Lipovetsky
21/05/2007
21/05/2007
Na juventude, Gilles Lipovetsky militou num grupo pós-trotskista, mas nunca foi exatamente um comunista. Ele já escreveu sobre o luxo e virou consultor de grifes famosas, mas tampouco é um consumista. Redige seus livros à mão, em folhas de papel, nas mesas de hotéis, enquanto roda o mundo apresentando idéias tão acessíveis quanto polêmicas. Seu mais novo libelo se chama A sociedade da decepção (Ed. Manole), com lançamento marcado para segunda-feira 21, em São Paulo.
Nesta quarta-feira, dia 23, Lipovetsky estará na UNISINOS participando do Simpósio Internacional O Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indivíduos?
Ele foi entrevistado por Luciano Suassuna da revista IstoÉ, 23-05-2007.
Eis a entrevista.
O que é a sociedade da decepção?
A decepção é uma experiência humana universal desde sempre. Nas sociedades antigas, ela era restrita. Primeiro porque o desejo era mais limitado, existia uma cultura da resignação, resumida na expressão “é a vida”. E, depois, havia a religião, que limitava a decepção.
E quando ocorreu essa mudança?
A sociedade moderna fez explodir o sentimento da decepção. A democracia abriu o desejo das pessoas. Ela cria frustrações porque não suporta a desigualdade. E a era hipermoderna, que vivemos hoje, acelerou mais ainda a decepção, que agora está em todos os lugares, em todos os níveis sociais.
Primordialmente onde?
Na política, por exemplo. As pessoas, em todos os países, estão sempre decepcionadas com a política. Com a globalização, não há mais a esperança revolucionária. É a era do direito do homem, e este é sempre inferior ao desejo.
Quais outras fontes de decepção?
A escola. Antes ela tinha a virtude de permitir a ascensão social. Mas hoje temos jovens muito qualificados que trabalham em coisas que não correspondem a essa qualificação – e isso gera decepção.
Mas vive-se bem melhor do que no passado.
Vive-se globalmente melhor. As pessoas podem até se declarar felizes, mas isso não significa grande coisa. Há outros indicadores como a ansiedade no trabalho e com os filhos, taxas de suicídio e casos de depressão e dependência, que mostram como a sociedade de bem-estar é uma sociedade de frustrações.
De que maneira essas frustrações estão ligadas ao consumo?
Depois dos anos 60, desenvolveu- se a idéia de que o consumismo cria a decepção porque mostra o que você não vai ter. Ou que você seria forçosamente frustrado porque, quando tem uma coisa, já sonha com outra, como se isso levasse a pessoa a uma decepção permanente.
Por que isso não é verdade?
O consumo de bens materiais não é tão produtor de decepções. Os objetos têm um valor pela novidade. Não é porque você não tem um Jaguar que o seu carro modesto não o satisfaz. Você pode gostar da sua casa, sem que ela seja um castelo.
Então qual o consumo que leva à decepção?
O consumo cultural é o que decepciona. Veja, por exemplo, a televisão. Ela é feita para ser um espetáculo, mas se você fica zapeando é porque o espetáculo não o satisfaz. O zapping é uma permanente decepção.
E no campo das relações humanas?
A decepção mais forte, mais intensa, a mais cruel é a que você tem com outras pessoas. Então se engana quem culpa o consumo pela infelicidade. O que dá frustração é a individualização do mundo, é a relação com os outros e consigo mesmo.
Vivemos então um modelo fracassado?
Evito o pessimismo. A sociedade da decepção não é a da paralisia ou da depressão. As pessoas hoje têm mais iniciativa, existem mais associações, mais artistas. É uma sociedade que relança a vida, que permite um recomeço. Hoje podemos ter múltiplas vidas.
domingo, 20 de maio de 2007
FREI BETTO e o ABORTO
Vidas em suspensão
Frei Betto
O frade dominicano lamenta as dificuldades que a igreja impõe ao debate sobre o aborto e admite sua aplicação em casos pontuaisFREI BETTOESPECIAL PARA A FOLHA
O terapeuta se depara com o drama de mulheres que abortaram. Como religioso, solicitam-me aquelas que, diante de gravidez indesejada, sofrem a angústia da dúvida. Raramente vêm acompanhadas por seus parceiros -o que é preocupante sintoma. Em pleno século 21, questões sérias como o aborto são, ainda, consideradas tabus. Lamento as dificuldades que a Igreja Católica impõe à discussão. Se a teologia é o esforço de apreensão racional das verdades de fé, o teólogo tem o dever de manter-se aberto a todos os temas que dizem respeito à condição humana, mormente se encerram implicações morais. Embora contrário ao aborto, admito a sua descriminalização em certos casos e sou favorável ao mais amplo debate, pois se trata de um problema real e grave que afeta a vida de milhares de pessoas e deixa seqüelas físicas, psíquicas e morais.
Ao longo da história, a igreja nunca chegou a uma posição unânime e definitiva. Oscilou entre condená-lo radicalmente ou admiti-lo em certas fases da gravidez. Atrás dessa diferença de opiniões, situa-se a discussão sobre qual o momento em que o feto pode ser considerado ser humano. Até hoje, nem a ciência nem a teologia têm a resposta exata. A questão permanece em aberto. Santo Agostinho (século 4ø) admite que só a partir de 40 dias após a fecundação se pode falar em pessoa. São Tomás de Aquino (século 13) reafirma não reconhecer como humano o embrião que ainda não completou 40 dias, quando então lhe é infundida a "alma racional". Essa posição virou doutrina oficial da Igreja Católica a partir do Concílio de Trento (século 16).Mas foi contestada por teólogos que, baseados na autoridade de Tertuliano (século 3ø) e de santo Alberto Magno (século 13), defendem a hominização imediata, ou seja, desde a fecundação trata-se de um ser humano em processo.
Direto e indireto
Contudo a discussão se encerra oficialmente com a encíclica "Apostolica Sedis" (1869), na qual o papa Pio 9ø condena toda e qualquer interrupção voluntária da gravidez.No século 20, introduz-se a discussão entre aborto direto e indireto. Roma passa a admitir o aborto indireto em caso de gravidez tubária ou câncer no útero. Mas não admite o aborto direto nem mesmo em caso de estupro. Bernhard Haering, um dos mais renomados moralistas católicos, admite o aborto quando se trata de preservar o útero para futuras gestações ou se o dano moral e psicológico causado pelo estupro impossibilita aceitar a gravidez. É o que a teologia moral denomina ignorância invencível. Nem a igreja tem o direito de exigir sempre de seus fiéis atitudes heróicas. Roma é contra a descriminalização do aborto baseada no princípio de que não se pode legalizar algo que é ilegítimo e imoral: a supressão voluntária de uma vida humana. A história demonstra, porém, que nem sempre a Igreja o aplicou com igual rigor a outras esferas, pois defende a legitimidade da "guerra justa" e da revolução popular em caso de tirania prolongada e inamovível por outros meios ("Populorum Progresio").É o princípio tomista do mal menor. Em muitos países, a igreja aprova a pena de morte para criminosos. Embora a igreja defenda a sacralidade da vida do embrião em potência, a partir da fecundação, ela jamais comparou o aborto ao crime de infanticídio e nem prescreve rituais fúnebres ou batismo in extremis para os fetos abortados É preciso encarar com seriedade as razões que induzem uma gestante ao aborto. A opção de abortar é moral e política. Pode ser encarada pelo ângulo do poder do mais forte sobre o frágil. Tão frágil que podem ser encontradas justificativas científicas para negar-lhe o título de humano. Para a genética, o feto é humano a partir da segmentação. Para a ginecologia-obstetrícia, desde a nidação. Para a neurofisiologia, só quando se forma o cérebro. E para a psicossociologia, quando há relacionamento personalizado.Em suma, o feto é uma espécie de subproletário biológico.Tão reduzido à sua impotência que não tem como protestar ou rebelar-se. Em muitos casos de aborto, o feto paga pela rejeição que a mulher tem ao homem que a fecundou ou pelos preconceitos que a atemorizam e a tornam tão escrava de conveniências sociais que, paradoxalmente, decide extraí-lo em nome de sua suposta liberdade. Liberdade que teme e da qual foge quando se trata de admitir uma relação adúltera, assumir-se como mãe solteira ou exigir de seu parceiro, ainda que casado com outra mulher, que se assuma como pai diante da evidência de uma vida em processo.Há homens que, confrontados com uma inesperada gravidez, reagem com uma covardia inominável, como se o problema fosse apenas da mulher. E há mulheres coniventes com a omissão masculina, não raro por ter de optar entre o feto e o afeto...Partilho a opinião de que, desde a fecundação, já há vida com destino humano e, portanto, histórico. Sob a ótica cristã, a dignidade de um ser não deriva daquilo que ele é, e sim do que pode vir a ser. Por isso, o cristianismo defende os direitos inalienáveis dos que se situam no último degrau da escala humana e social. O debate sobre se o ser embrionário merece ou não reconhecimento de sua dignidade não deve induzir ao moralismo intolerante, que ignora o drama de mulheres que optam pelo aborto por razões que não são de mero egoísmo ou conveniência social.
O dom da vida
Trata-se de mulheres muito pobres, que, objetiva e subjetivamente, não têm condições de assumir o filho; de prostitutas que dependem de seus corpos para sobreviver e dar de comer aos dependentes; de casais que se deparam com uma gravidez imprevista que viria desestabilizar a vida conjugal e familiar; de mulheres mentalmente enfermas, incapacitadas para cuidar de uma criança; ou que engravidam involuntariamente após os 40, quando aumenta a possibilidade de nascer um filho com deficiência. É a defesa do sagrado dom da vida que levanta a pergunta se é lícito manter o aborto à margem da lei, pondo em risco também a vida de inúmeras mulheres que, na falta de recursos, tentam provocá-lo com chás, venenos, agulhas ou a ajuda de curiosas, em precárias condições higiênicas e terapêuticas. Uma legislação em favor da vida faria esse problema humano emergir das sombras para ser adequadamente tratado à luz do direito, da moral e da responsabilidade social do poder público. O teólogo González Faus opina que, "mais do que o moralista, a existência de situações-limite deve ser contemplada pelo legislador civil, que não está obrigado a assegurar toda a moralidade, e sim a convivência pacífica, nem está obrigado a prescrever a heroicidade ou a procurar um "melhor" inimigo do bem, senão que muitas vezes há de contentar-se em evitar o mal maior. E é possível que, nas atuais circunstâncias de nossa sociedade, a descriminalização legal do aborto seja um mal menor" ("Este Es el Hombre", ed. Cristandad, Madri, 1986, pág. 277).A morte clandestina no ventre elimina qualquer risco à propriedade e à imagem pública do proprietário. Para este, aliás, não há ilegalidade nessa matéria. Basta enviar a gestante a uma clínica particular e tudo se resolve. Mas como ficam as mulheres pobres que não podem ter filhos, senão sob o risco de perderem o emprego e deixarem a família na miséria? São inúmeras as que, para obter trabalho, se vêem obrigadas a esconder que são casadas e a impedir ou interromper a gravidez.Se os moralistas fossem sinceramente contra o aborto, lutariam para que não se tornasse necessário e todos pudessem nascer em condições sociais seguras. Ora, o mais cômodo é exigir que se mantenha a penalização do aborto. Mas como fica a penalização do latifúndio improdutivo e das causas que levam à morte, por ano, cerca de 26 entre cada mil crianças brasileiras que ainda não completaram 12 meses de vida?
Promover campanhas
A descriminalização não reduz o número de abortos clandestinos. Muitas mulheres continuam a preferir o anonimato, para evitar danos à sua imagem social e/ou à do parceiro. Diminui é o número de óbitos em conseqüência do aborto. Em países onde o aborto não é criminalizado, inúmeras gestantes, ao procurar os serviços sociais decididas a fazê-lo, são convencidas a ter o filho -o que não ocorreria se vigorasse a criminalização."No plano dos princípios" -declarou o bispo Duchène, presidente da Comissão Episcopal Francesa para a Família-, "lembro que todo aborto é a supressão de um ser humano. Não podemos esquecê-lo. Não quero, porém, substituir-me aos médicos que refletiram demoradamente no assunto em sua alma e consciência e que, confrontados com uma desgraça aparentemente sem remédio, tentam aliviá-la da melhor maneira, com o risco de se enganar" ("La Croix", 31/3/79). Não se trata, pois, de legalizar o aborto, como se fez com o divórcio. Antes, de impedi-lo e defender os direitos da vida em embrião. Assim, uma legislação em favor da vida deve obrigar o poder público a promover amplas campanhas contra o aborto; esclarecer suas implicações morais, físicas e psicológicas; prever sanções aos empregadores que recusam mulheres casadas ou não dão suficiente apoio às gestantes; criar postos de atendimento às gestantes que pensam em abortar, onde médicos, psicólogos, assistentes sociais e, inclusive, ministros da confissão religiosa da interessada procurem convencê-la a assumir o filho, demovendo preconceitos; ampliar a rede de casas da Mãe Solteira, de modo a evitar que as gestantes solteiras sejam induzidas ao aborto por desamparo afetivo, moral ou econômico; assegurar salário-maternidade e multiplicar o número de creches; criar sistema telefônico de atendimento a mulheres angustiadas por gravidez imprevista, o SOS Futuras Mães; oferecer ajuda financeira a famílias que adotam crianças rejeitadas pelas mães. Em suma, assegurar o direito à vida do embrião e amparo moral, psicológico e econômico à gestante bem como prescrever medidas concretas que socialmente venham a tornar o aborto desnecessário.
CARLOS ALBERTO LIBÂNIO CHRISTO, o Frei Betto, 62, é frade dominicano e escritor. É autor de, entre outras obras, "A Mosca Azul - Reflexão sobre o Poder" (Rocco). Foi assessor especial da Presidência da República (2003-2004).
Artigo da FolhaMAIS, 20.05.2007.
Artigo da FolhaMAIS, 20.05.2007.
sábado, 19 de maio de 2007
ZYGMUNT BAUMAN ( I ) Entrevista
- O que é a ‘Vida líquida’? E por que o senhor rejeita o conceito de pós-modernidade?
- Líquido são substâncias que não podem manter a forma por muito tempo, assim como o mundo em que vivemos e nossos hábitos, reflexões e credos... Modernizamos nossas instituições hoje para considerá-las ultrapassadas amanhã. O que está em voga agora logo será condenado, objetos de culto e desejo desaparecem sem deixar pistas, pois o “interesse público” se move a uma velocidade que não permite que nenhum conceito seja propriamente assimilado. As regras do jogo líquido mudam tão rapidamente que não têm tempo para solidificarem-se em hábitos. Nas relações humanas talvez seja mais importante aprender a se desconectar do que conectar-se, em uma sociedade onde a tendência aponta para redes e não em estruturas que significaria trabalho regular e rotina. Assim, pensar a longo prazo é cada vez mais difícil, as regras do jogo mudam sem alertas indicando que ele terminou. Prefiro então usar modernidade líquida do que pós-modernidade, que sugere que não somos mais modernos. Nós somos! Mais do que antes: por escolha ou necessidade, modernizadores obsessivos e compulsivos.
- No livro o senhor diz que hoje a eternidade é rejeitada, mas não a infinitude.
O que eu sugiro é que a eternidade, assim como qualquer outro objeto ou desejo, precisa ser aplicado a um uso instantâneo. A ‘esperança de recompensa’ que costumava ser usada como a principal doutrina de vida no começo da modernidade – e de acordo com Max Weber foi também o segredo de seu espetacular sucesso – tende agora a parecer algo irrefletido, já que as mudanças desaparecem tão rápido quanto chegam. Há duas décadas foram criados os cartões de crédito com o slogan “Acabe com a espera do desejo”. Este apelo parece ter ressoado por quase todas as demandas universais. A tendência é viver entre um momento e outro esperando por aquele que represente o big bang. Então a última experiência não cumpriu esta expectativa, tudo bem. Há dezenas de outros momentos pela frente... Nossa capacidade atual de renegociar o significado do tempo é imensa. Cada unidade de tempo parece conter dentro de si uma nova chance de big bang, deixando um cemitério de fantasias e possibilidades negligenciadas. Ou, dependendo do ponto de vista, um cemitério de chances perdidas.
* ZYGMUNT BAUMAN, sociólogo polonês de 81 anos. Tem 11 livros publicados no Brasil, entre eles O mal estar na pós-modernidade e Globalização: as conseqüências humanas. Vida Líquida. Sociedade Líquida. Amor Líquido. (Entrevista do JB/Idéias & Livros, 24/03/2007, fl.3).
- Líquido são substâncias que não podem manter a forma por muito tempo, assim como o mundo em que vivemos e nossos hábitos, reflexões e credos... Modernizamos nossas instituições hoje para considerá-las ultrapassadas amanhã. O que está em voga agora logo será condenado, objetos de culto e desejo desaparecem sem deixar pistas, pois o “interesse público” se move a uma velocidade que não permite que nenhum conceito seja propriamente assimilado. As regras do jogo líquido mudam tão rapidamente que não têm tempo para solidificarem-se em hábitos. Nas relações humanas talvez seja mais importante aprender a se desconectar do que conectar-se, em uma sociedade onde a tendência aponta para redes e não em estruturas que significaria trabalho regular e rotina. Assim, pensar a longo prazo é cada vez mais difícil, as regras do jogo mudam sem alertas indicando que ele terminou. Prefiro então usar modernidade líquida do que pós-modernidade, que sugere que não somos mais modernos. Nós somos! Mais do que antes: por escolha ou necessidade, modernizadores obsessivos e compulsivos.
- No livro o senhor diz que hoje a eternidade é rejeitada, mas não a infinitude.
O que eu sugiro é que a eternidade, assim como qualquer outro objeto ou desejo, precisa ser aplicado a um uso instantâneo. A ‘esperança de recompensa’ que costumava ser usada como a principal doutrina de vida no começo da modernidade – e de acordo com Max Weber foi também o segredo de seu espetacular sucesso – tende agora a parecer algo irrefletido, já que as mudanças desaparecem tão rápido quanto chegam. Há duas décadas foram criados os cartões de crédito com o slogan “Acabe com a espera do desejo”. Este apelo parece ter ressoado por quase todas as demandas universais. A tendência é viver entre um momento e outro esperando por aquele que represente o big bang. Então a última experiência não cumpriu esta expectativa, tudo bem. Há dezenas de outros momentos pela frente... Nossa capacidade atual de renegociar o significado do tempo é imensa. Cada unidade de tempo parece conter dentro de si uma nova chance de big bang, deixando um cemitério de fantasias e possibilidades negligenciadas. Ou, dependendo do ponto de vista, um cemitério de chances perdidas.
* ZYGMUNT BAUMAN, sociólogo polonês de 81 anos. Tem 11 livros publicados no Brasil, entre eles O mal estar na pós-modernidade e Globalização: as conseqüências humanas. Vida Líquida. Sociedade Líquida. Amor Líquido. (Entrevista do JB/Idéias & Livros, 24/03/2007, fl.3).
*JEAN DELLUMEAU responde
O senhor pesquisou muito sobre os medos da humanidade. Quais são os medos contemporâneos?
Até o final do século XVIII, o principal medo vivido pelos homens era o perigo originado da natureza. As epidemias, a peste era algo enorme e horrível na Europa. E havia o medo dos terremotos, da fome, do mar. Depois, as coisas mudaram. Vieram a Revolução Francesa e a instituição de grandes exércitos profissionais. As armas foram aperfeiçoadas e se apelou cada vez mais às populações para que lutassem. Chegamos à situação de guerra total em que estamos hoje.
Comparados aos medos passados, os perigos naturais não desapareceram. Ainda há terremotos, ciclones e inundações. No entanto, as infilicidades provocadas pela natureza são muito menores do que aqueles originadas dos homens. O maior medo que devemos ter hoje é o medo do homem. A peste negra era muito mais grave para os homens do que a passagem dos exércitos. Mas, hoje, a Aids é menos importante do que uma bomba atômica. O perigo dos homens supera cada vez mais os perigos da natureza.
O filósofo F. Nietzsche denunciou o cristianismo como causa da infelicidade do homem, por insistit no sentimento de culpabilidade. No livro O pecado e o medo, o senhor mostra como a Igreja difundiu essa mensagem culpabilizadora, insistindo em um Deus inquisidor e vingativo.
Eu coloco muitas nuances. Convido o leitor a não tirar conclusões apressadas. É verdade que dou relevo a esse processo de culpa, que pode levar o homem a ter medo de Deus. Quis diferenciar o receio reverencial de Deus, que é normal da parte dos homens em relação ao Criador e Salvador, do medo do Deus que julga, e que teria condenado a maioria da humanidade ao Inferno. É a fórmula de Santo Agostinho, da massa de perdição.
Dois discursos foram trumáticos na história do cristianismo nesse sentido. De uma parte, o discurso de Santo Agostinho, completado por uma fórmula que está no Evangelho: muitos chamados e poucos eleitos. Isso era um provérbio, e um provérbio não é uma afirmação teológica. Jesus, e depois São Paulo, sempre disseram que lá onde o pecado se multiplicou a graça foi abundante. Ressaltei um discurso eclesiástico que tendia a esquecer essa fórmula de São Paulo, que colocava a ênfase mais sobre o pecado do que sobre o perdão.
Não há paraíso na Terra, é preciso esperar o além-morte para encontrar a felicidade.
Essa é a sua mensagem como crente e historiador?
Falo como historiador, que vê raramente situações de felicidade perdurarem na Terra. Ao mesmo tempo, estou convencido de que é preciso que todos trabalhemos juntos para melhorar a situação na Terra, fazer com que ela seja o menos possível um vale de lágrimas, para nos prepararmos para o vale de felicidade no além.
*Jean Dellumeau, historiador francês, costuma citar uma fórmula da colega inglesa Marjorie Reeves: "O sonho dos homens constituem uma parte de sua história e explicam muito de seus atos". Escreveu, entre outros livros: História do medo no Ocidente; O pecado e o medo. As respostas acima foram retiradas do livro: Entre Aspas - Diálogos contemporâneos - Fernando Eichenberg, Ed. Globo, 2006, pgs.437/438).
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